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No início do século XIX, as forças que conduziriam finalmente à desintegração dos padrões sociais feudais e da servidão na Rússia começaram a cristalizar. Este processo gradual, juntamente com o desenvolvimento das primeiras fases do capitalismo, tinha começado algum tempo antes, mas só agora a nova ordem parecia declaradamente obsoleta e um obstáculo ao progresso do país. A indústria russa nesta altura estava a desenvolver-se, havia cada vez maior número de fábricas e era preciso trabalho assalariado para as pôr a funcionar. Entretanto, os camponeses estavam ainda ligados à terra, eram considerados propriedade dos senhores, e este facto impedia a formação de uma classe operária, essencial para a indústria nascente. O comércio desenvolvia-se rapidamente, o mercado crescia, enquanto a grande maioria das massas trabalhadoras permanecia numa situação de servidão e de incapacidade de se dedicar livremente ao comércio, o que significava que uma nova esfera do desenvolvimento económico estava impossibilitada de se desenvolver por causa da servidão. Estava em formação uma nova classe, a burguesia, mas o seu desenvolvimento era também travado pelos padrões sociais e pelos códigos da sociedade feudal: surgiram mesmo situações ridículas em que ricos mercadores servos, ou donos das fábricas, lidavam com grandes capitais, empregavam centenas de operários, mas estavam ainda oficialmente registados como servos pertencendo a um proprietário qualquer que tinha o direito de os vender ou de lhes tirar os seus bens, porque eles próprios eram oficialmente propriedade do senhor. O aparecimento de relações capitalistas na agricultura nesta época exigia camponeses livres e senhores das suas coisas. Assim ocorriam espontaneamente revoltas dos servos cada vez com mais frequência. Estas revoltas multiplicaram-se particularmente depois da guerra patriótica de 1812. Depois da vitória sobre Napoleão, os camponeses protestaram: «Libertamos a nossa pátria do tirano, mas estamos agora a ser tiranizados pelos nossos próprios senhores.» «A luta entre os povos e os imperadores» que tinha estalado na Europa Ocidental, espalhava-se agora pela Rússia. Uma revolta camponesa particularmente ampla rebentou na área do Don em 1818 - 1820. Também houve agitação e descontentamento no exército czarista.
O principal estadista do Império, depois da guerra de 1812, foi o limitado e grosseiro tirano Arakcheyev, amigo íntimo de Alexandre I, que foi depois conhecido como «opressor de toda a Rússia». Foi ele que deu ordens para introduzir no exército a prática do chicote para eliminar nos soldados o espírito de amor à liberdade. Foi ainda promulgada a lei marcial em muitas aldeias junto de Novgorod e de Kharkov; os camponeses eram obrigados simultaneamente a trabalhar no campo e a servir no exército. O trabalho dos campos tinha de ser feito de uniforme e como um rígido exercício, sendo a mais pequena insubordinação castigada com o chicote. Mesmo as mulheres dos camponeses estavam sujeitas a castigo senão acendessem o forno à hora marcada ou se acendessem velas de noite. Os camponeses foram privados de parte das suas terras e não tinham autorização de vender os seus produtos. As aldeias sujeitas a esta disciplina chamavam-se «estabelecimentos militares». A reacção feudal ainda dominava na Rússia.
Foi neste contexto que surgiram na Rússia as primeiras sociedades revolucionárias secretas. Os primeiros revolucionários russos são conhecidos como Decembristas, porque a sua primeira revolta se deu em Dezembro (1825). Os Decembristas eram na sua maior parte jovens oficiais da nobreza que tinham tomado parte na guerra contra Napoleão, que acordara a sua consciência política. Embora eles próprios viessem da nobreza proprietária de terras, a sua Consciência e o seu sentido de honra impediam-nos de apoiar a servidão, que consideravam o maior mal do país. Compreenderam que a mais importante tarefa da Rússia era abolir a servidão e a autocracia. Os Decembristas eram patriotas ardentes e sonhavam com uma ordem nova; com o apoio de tropas aliadas, planejaram organizar uma revolta armada, derrubar a autocracia, abolir a servidão e juntamente com todos os estratos da população fazer uma constituição revolucionária que fosse a base de uma nova sociedade. Esboços desta constituição revolucionária foram elaborados na Sociedade do Norte dirigida per Nikita Muravyov e na Sociedade do Sul dirigida por Pavel Pestel.
Se fossem adoptados, estes projectos de constituição teriam representado um grande avanço: infligiriam um grande golpe ao domínio da nobreza do país, à servidão e à autocracia e possibilitariam o rápido desenvolvimento capitalista do país.
A sociedade secreta tinha cada vez maior número de membros, e chegou a incluir muitos famosos e honrados membros da nobreza russa. Depois de entrar na sociedade, o poeta Kondraty Ryleyev, com outro membro poeta, Alexander Bestuzhev, escreveu inspiradas canções revolucionárias para o povo. As simpatias de Ryleyev eram marcadamente republicanas.
Foi em nome da transformação revolucionária da sua pátria que estes revolucionários pegaram em armas em Dezembro de 1825 na primeira revolta revolucionária contra o domínio czarista. Os Decembristas viriam mais tarde a ser conhecidos como «os primeiros campeões da liberdade».
Ora, em Novembro de 1825, o czar Alexandre I morreu de repente e no interregno viveu-se numa atmosfera muito tensa. O czar não tinha filhos e devia suceder-lhe o seu irmão Constantino. Este, contudo, tinha secretamente renunciado ao seu direito ao trono, o que significava que o novo czar seria o insensível déspota seu irmão, Nicolau, que era altamente impopular no exército. Como a decisão de Constantino não fora tornada pública com suficiente antecedência, as tropas e a população que juraram lealdade a Constantino quase imediatamente depois tiveram de fazer novo juramento a Nicolau. Ora se já antes havia agitação no exército, depois dos dois juramentos de lealdade, a situação tornou-se ainda mais tensa.
No dia indicado para o juramento de lealdade a Nicolau I — 14 de Dezembro—, os membros da sociedade secreta decidiram, organizar uma revolta nos seus regimentos e levar as tropas revoltosas para a Praça do Senado, para impedir o Senado de jurar lealdade ao novo czar. Prepararam então um manifesto revolucionário ao povo russo, que proclamava a abolição da servidão e a dissolução do governo. O manifesto também incitava à convocação de uma assembleia constituinte para decidir se a Rússia se devia tornar uma república ou uma monarquia constitucional e eleger um novo governo. Este documento outorgava também ao povo russo a liberdade de expressão e de imprensa e a liberdade de culto, sendo reduzidas as obrigações militares. No Sul foi planeada uma outra revolta armada em simultâneo com a de S. Petersburgo, mas nunca foi materializada.
Cerca de três mil soldados revoltosos chegaram à Praça do Senado conduzidos pelos oficiais Decembristas. Reuniu-se-lhes uma enorme multidão que apoiava este protesto revolucionário. No entanto, os Decembristas hesitaram em confiar no apoio das massas populares. Não conseguiram proclamar o seu manifesto e a revolta não se processou como tinham planeado. Na noite anterior, os Decembristas haviam eleito um ditador de entre as suas fileiras — um veterano membro da sociedade, o príncipe Trubetskoy. Contudo, ele não apareceu na praça, abandonando os seus companheiros e traindo a causa comum. Depois de esperarem em vão por muito tempo os Decembristas escolheram outro chefe, o príncipe Obolensky.
Mas já era demasiado tarde. Nicolau I tinha tomado a iniciativa e ao cair da noite o Czar tinha dado ordens para que as suas tropas leais abrissem fogo sobre a multidão e a revolta foi logo esmagada.
Esta revolta falhada dos Decembristas marcou um ponto de viragem na história russa. Com ela pode dizer-se que começou a luta revolucionária. Gerações subsequentes de bravos revolucionários russos haviam de receber o facho revolucionário e de continuar a luta contra a servidão e a autocracia.
Em meados do século XIX, a crise da sociedade feudal russa era mais declarada do que nunca. As contradições entre as relações sociais capitalistas que se desenvolviam e a obsoleta sociedade feudal tornavam-se cada vez mais agudas. A partir dos anos 30, as pequenas manufacturas começaram a ser substituídas por fábricas, e as máquinas desalojaram gradualmente o trabalho manual da indústria. A introdução de maquinaria exigia um adequado fornecimento de operários assalariados mais qualificados do que os camponeses analfabetos. Com o desenvolvimento do capitalismo nasceu uma nova classe — o proletariado. Em 1837 foi inaugurado o primeiro caminho de ferro entre S. Petersburgo e Tsarskoe Selo e cerca de 1851 foi aberta a primeira linha entre S. Petersburgo e Moscovo. O país precisava de aumentar a produção agrícola para fornecer as cidades em desenvolvimento e neste aspecto também o primitivismo da agricultura serva era um obstáculo ao desenvolvimento económico. A mecanização da agricultura avançou pouco neste período porque era mais vantajoso para os proprietários utilizar trabalho manual barato do que adquirir maquinaria agrícola.
No início de 1830, a Rússia foi varrida por uma onda de «motins de cólera». Corria o boato de que uma séria epidemia de cólera tinha sido causada pelos oficiais e proprietários czaristas que teriam deliberadamente posto veneno nos poços. O verdadeiro motivo destes motins era o ódio à servidão. Alguns dos camponeses revoltosos explicavam assim as razões do descontentamento popular:
«Os loucos é que prestam atenção ao veneno e à cólera, o que nós precisamos é de livrar-nos da raça dos porcos, da nobreza.»
Mais tarde, revoltas camponesas em larga escala iam alastrar pela Ucrânia, sobretudo por volta de 1850. As autoridades czaristas capturaram o líder do movimento camponês, Ustim Karmelyuk, por várias vezes, mas ele iludia-as e fugia para voltar a comandar os camponeses revoltados. Muitas vezes as autoridades tiveram de ordenar ao exército que esmagasse as revoltas camponesas e foi-lhes necessário mesmo usar artilharia. Contudo, estas revoltas não tinham coesão nem objectivos definidos e por isso não conseguiram pôr fim à servidão.
Longe de desaparecer depois da revolta Decembrista, o movimento revolucionário russo em breve reuniu novas forças e mobilizou importantes figuras — democratas revolucionários, líderes dos interesses do povo e dos milhões de camponeses oprimidos e empobrecidos.
Os grandes campeões do povo neste período foram pessoas como Alexandre Herzen (1812-1870), Nikolai Ogarev (1813-1877) e o seu amigo Vissarion Belinsky (1811-1848). Opunham-se todos à servidão e à autocracia e estavam prontos a lutar para defender os seus ideais. Ao contrário de outros revolucionários, procuravam a sua principal fonte de apoio entre as massas populares. Um papel particularmente importante na propagação das novas ideias coube a Belinsky, ardente porta-voz do povo, herói da geração progressista e percursor dos raznochintsi (revolucionários da classe média radical).
Herzen, Ogarev e Belinsky lutavam não só pela abolição da servidão e pelo derrube da autocracia mas como socialistas sonhavam com o tempo em que acabaria a exploração do homem pelo homem e em que a sociedade que criou a exploração pertencesse ao passado. Mas não conheciam os métodos científicos a utilizar para conseguir estes fins. Foram socialistas utópicos.
Prisões e exílios frequentes tornavam impossível a Herzen continuar com eficiência o seu trabalho de propaganda na Rússia, e teve de emigrar para a Europa Ocidental onde continuou a sua luta contra o czarismo; em breve se lhe juntaria o seu amigo Ogarev. Herzen fundou a primeira imprensa livre russa fora das fronteiras do Império, e nela atacava audaciosamente a servidão e a autocracia, denunciavam os seus males intrínsecos e exortava o povo a opor-se à decadente ordem social que mantinha a Rússia no atraso e no analfabetismo.
Apesar do pesado jugo da servidão e da exploração a que os camponeses eram submetidos pelos seus senhores, ocorreu um notável florescimento cultural progressista no contexto da luta contra as injustiças sociais. Foi lutando contra a injustiça e a opressão que muitos escritores, músicos e artistas russos produziram obras de grande mérito, florescendo também as tradições de arte popular.
Cenas da vida russa ficaram imortalizadas nas obras de poetas universalmente admirados como Puchkin e Lermontov, nas histórias de Gogol e nos romances de Turgenev. Temas, como o anacronismo da servidão e a Obsoleta ordem social, encontram-se lado a lado com profundos estudos psicológicos em Yevgeny Onegin de Puchkin, em Um Herói do Nosso Tempo de Lermontov, Almas Mortas de Gogol e em Apontamentos de um Desportista de Turgenev. A Literatura destes anos foi aceite com entusiasmo pelos leitores e trouxe-lhes uma maior consciência social e constituía ela mesma um apelo à luta pela justiça social.
A música russa conheceu um desenvolvimento notável neste período, na obra do grande compositor Mikhail Glinka. Amargos ataques contra a servidão encontravam-se nos talentosos quadros de Pavel Fedotov («O Namoro do Major», «A Morte de Fidelka», etc.). Na sua enorme tela «Cristo perante o povo». Alexander Ivanov pintou o povo comum em termos realistas, e em primeiro plano.
Importantes progressos ocorreram também na esfera da ciência. Nikolai Lobachevsky inventou um sistema de geometria não euclidiana que se ia tornar um importante marco na história da matemática. O notável químico Nicolai Zinin foi o primeiro cientista a sintetizar tintas de anilina, o que deu origem a um novo ramo da indústria. Nikolai Pirogov que realizou importantes experiências na antissepsia e na anestesia foi um dos fundadores da cirurgia de campo.
A cultura russa deste período está repleta de humanismo, amor e respeito por todos os membros da raça humana e contém um audacioso apelo à luta contra tudo o que era obsoleto e impedia o progresso social em nome de uma ordem nova e justa.
As contradições inerentes à sociedade russa tornaram-se tanto mais agudas quando a guerra, que de há muito se preparava entre a Rússia por um lado e a Inglaterra e a França por outro, estalou finalmente em 1853.
O Czar e o seu governo, sentindo que desta vez a sua posição não era forte, decidiram utilizar a fraqueza do Império Turco para consolidar o controlo do Bósforo e dos Dardanelos e assegurar a passagem livre dos navios russos do mar Negro para o Mediterrâneo. Daqui adviriam maiores lucros aos interesses dos proprietários de terras, promovendo o desenvolvimento agrícola das províncias do Sul, e adiar-se-ia, esperava-se, a queda da servidão. Contudo, estados capitalistas mais fortes e mais progressistas, tais como a Inglaterra e a França, não estavam dispostos a ficar de braços cruzados enquanto a Rússia fortalecia as suas posições no Médio-Oriente; de resto não lhes desagradava a perspectiva de conquistarem presas ricas como a Crimeia e o Cáucaso. O curso da guerra ia revelar o atraso da Rússia, quando a guerra se travou em terra e no mar. A esquadra da Rússia era formada por navios à vela, enquanto as esquadras inglesa e francesa tinham desde há muito barcos a motor; as suas armas e artilharia também eram superiores às do exército russo. As más comunicações isolavam o exército russo dos seus centros de abastecimento e o aprovisionamento de munições e víveres era totalmente inadequado e sujeito a frequentes demoras.
Apesar de todas estas dificuldades, o inimigo ficou surpreendido com o heroísmo dos soldados russos e o talento de seus chefes. A armada russa obteve uma retumbante vitória na batalha de Sinop sob o comando do Almirante Nakhimov logo no princípio da guerra. Depois de mal sucedidas tentativas por parte dos aliados para se apoderarem das comunicações com S. Petersburgo, Kronstadt, a costa do Báltico e Kamachatka, concentraram as suas forças na península da Crimeia. Os aliados avançaram em direcção a Sebastopol mas a sua tentativa de tomar de assalto o porto, acabou num fracasso então organizaram um cerco que durou 349 dias.
As tropas russas eram comandadas pelos almirantes Nakhimov, Kornolov e Istomin. Depois de quase um ano de cerco durante o qual os defensores sofreram pesadas baixas, a cidade caiu. Só no Cáucaso, as tropas russas, sob o comando de Nikolai Muravyov, amigo do Decembristas, obteve vitórias de importância, o que deu aos Russos a possibilidade de garantir o seu domínio sobre a Crimeia e o Cáucaso. A guerra acabou com a elaboração do Tratado de Paris, em 1856, cujos termos eram extremamente pesados para a Rússia, pois esta ficava sem o direito de ter navios de guerra no mar Negro e era obrigada a derrubar as fortificações costeiras naquela região.
A guerra da Crimeia revelou ao mundo a fraqueza e a atrofia da sociedade feudal russa. A parte principal do fardo que resultara do fracasso desta guerra foi suportada pelo povo comum, pois roubou-lhe muitas vidas e trouxe atrás de si um grande rastro de pobreza. Levadas ao desespero pela vida dura e pela necessidade, as massas responderam a todas as iniciativas do poder estabelecido com uma violenta resistência. As classes dominantes não conseguiram preservar o velho status por mais tempo, agora que o povo se recusava abertamente a viver no sistema antigo. Os senhores não conseguiam manter o controlo sobre os servos com os métodos que tinham utilizado no passado. Nesta altura, já existia aquela combinação de elementos objectivos de transformação a que Lenine chamaria uma situação revolucionária.
Tanto Marx como Lenine acentuaram nos seus escritos que as revoluções não se dão antes de se desenvolverem situações revolucionárias, embora nem toda a situação revolucionária provoque uma revolução. A principal razão por que não ocorreu nenhuma revolução nos anos 1859-1861 foi a incapacidade de os camponeses revoltosos reunirem a sua força a nível de massas, que seria o passo principal para derrubar ou pelo menos para limitar os poderes do Czar.
O governo sentiu-o e aproveitou para fazer certas concessões. Assim, com algumas reformas, o governo manteve-se.
A mais importante das reformas arrancadas ao governo pelas revoltas em massa e pelas correntes de oposição revolucionária foi a abolição da servidão, em 1861. O caminho para esta importante reforma tinha sido preparado havia muito pelo desenvolvimento do processo económico do país e pela ameaça de ruptura dos padrões sociais feudais.
Em 19 de Fevereiro de 1861, o czar Alexandre IV (1855-1881) assinou uma lei que proclamava que a servidão havia sido abolida. A reforma foi feita de maneira a adaptar-se o mais possível aos interesses dos proprietários de terras, mas os camponeses ficaram convencidos de que toda a terra lhes seria entregue de graça. Na prática, porém, a emancipação da servidão feudal revelou-se puramente formal e os camponeses receberam apenas alguns lotes de terra que teriam de pagar por um preço que excedia os valores por que teriam podido comprá-las pelas vias normais. A terra que os camponeses receberam era absolutamente inadequada às suas necessidades e era de tão fraca qualidade que muitas vezes eles viram-se obrigados a voltar aos seus antigos senhores, que lhes pagavam miseravelmente. E mais, o salário ganho voltava aos bolsos dos senhores, quer sob a forma de renda pelas terras que os proprietários lhes alugavam, quer sob a forma de pagamento de empréstimos contraídos pelos camponeses.
O protesto dos camponeses nunca tinha estado em tão larga escala como no ano em que foi abolida a servidão. Os camponeses responderam com novas revoltas à sua «emancipação». No decurso de apenas doze meses houve mais de mil; as autoridades mandaram a tropa reprimir muitas revoltas e nalguns casos utilizou-se mesmo a artilharia. Entre as mais sérias de todas, contam-se as que ocorreram na aldeia de Bezdna, chefiada pelo camponês Anton Petrov, e na aldeia de Kandeyevka, onde camponeses marcharam ao encontro das tropas czaristas com uma bandeira vermelha.
Muito antes da reforma de 1861 alguns democratas revolucionários tinham começado a fazer uma ampla propaganda contra o regime czarista e a servidão. Desempenhou um papel importante nesta campanha o jornal revolucionário Kolokol (O Sino) que Herzen e Ogarev publicavam no estrangeiro, e a revista Sovremennik (O contemporâneo) editada por alguns dos principais democratas revolucionários da época, Nikolai Chernychevsky (1828-1889), Nikolai Dobrolyulov (1836-1861) e o poeta revolucionário Nikolai Nekrasov (1821-1877). Esta revista, apesar da mão impiedosa da censura, manteve uma ousada campanha em nome da revolução camponesa. A sede editorial do Sovremennik tornou-se o centro dos revolucionários russos do interior, enquanto o Kolokol se tornava o quartel-general dos revolucionários russos que viviam no exílio. Ambos os centros estavam em íntimo contacto e colaboravam um com o outro.
Foi então que os revolucionários russos estabeleceram uma nova organização revolucionária, objectivo a que já aspiravam antes da reforma. Em 1861, fundava-se uma grande organização secreta, Zemlya i Volya (Terra e Liberdade) que era chefiada por Chernychesvskv e Dobrolyulov e reconhecia Herzen e Ogarev como chefes dos exilados políticos.
Zemlya i Volya era uma federação de vários círculos revolucionários e contava centenas de membros com filiais espalhadas em toda a Rússia. O seu objectivo principal era organizar uma revolta à escala nacional, cuja eclosão os revolucionários esperavam desde que o Czar fizera a reforma de 1861. A revolta não ocorreu como eles esperavam, porque as rebeliões camponesas eram demasiado dispersas e os revolucionários estavam divididos quanto aos meios usados e aos fins a atingir. Os membros da Zemlya i Volya depositavam a sua esperança em 1863, mas este ano também não trouxe a revolta dos camponeses unidos que eles esperavam, embora estalassem revoltas em larga escala na Polónia, na Lituânia e na Bielo-Rússia. Nestes entrementes a organização havia de sofrer pesados reveses, quando Dobrolyulov morreu e Chernychevsky, Serno-Solovyevich e muitos outros chefes foram presos. Um conjunto de selvagens represálias acabou por enfraquecer e minar o movimento camponês, e em 1864 Zemlya i Volya — a maior organização revolucionária desde a revolta Decembrista — dissolveu-se de moto próprio, antecipando-se às autoridades czaristas que desejavam fazê-la cair e livrar-se de centenas de revolucionários activos. No entanto, o progresso económico e a pressão do movimento camponês e a luta revolucionária tinham sido tão grandes que mais uma série de reformas foram promulgadas no período de 1863-1874. Assim alguns princípios da autonomia foram introduzidos na administração rural e urbana, embora fossem determinados sobretudo pelos interesses de classe dos proprietários de terras. Criaram-se os Zemstvo (locais, distritais e comerciais), eleitores e conselhos urbanos, que foram tornados responsáveis pelos serviços sociais nas províncias ou distritos individuais (questões como comunicações locais, fornecimento de alimentos, segurança mútua, assistência social, supervisão do comércio e indústria local, etc.). Contudo, era ainda a nobreza que tinha a última palavra no trabalho das organizações dos Zemstvo. A autonomia para as cidades foi planeada segundo princípios semelhantes quando foram criadas as dumas (conselhos). A reforma legal de 1864 — a mais coerente das reformas burgueses deste período — introduziu o julgamento por jurados com conselhos de defesa e de acusação. Contudo, lado a lado com os novos tribunais, ainda havia os antigos, e as reformas legais não se aplicavam a todas as províncias do Império. O castigo corporal foi abolido, foram feitas reformas educacionais, introduzindo a censura.
Esta ordem social feudal, anacrónica na Rússia, e a servidão, um dos principais pilares desta ordem, foram finalmente substituídas por estruturas capitalistas que naquela época eram progressistas e davam ao país a possibilidade de evoluir rapidamente.
Inclusão | 27/09/2016 |