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O Iluminismo é o ponto de partida do desenvolvimento de Hegel, como ocorre com quase todos os homens significativos da Alemanha da época. Aqui também encontramos um terreno vasto tanto quanto pouco estudado da história da filosofia. Entretanto, os historiadores alemães da literatura e da filosofia se esforçaram durante muito tempo para levantar uma muralha chinesa entre o Iluminismo e o período clássico. Com completa falsificação da realidade se interpretou o Sturm und Drang [Tempestade e Impulso] nos últimos decênios, quando a ciência histórica começou a retocar no sentido apologético-reacionário inclusive o próprio Iluminismo, deu a maior importância a conexões que partem dela, com objetivo de interpretar com este novo estilo e um sentido reacionário as figuras mais importantes do período clássico, uma vez alcançada a imagem reacionária do Iluminismo alemão.
Uma história marxista da filosofia terá que estudar aqui em detalhe o caráter de classe do iluminismo alemão, bem como a influência do iluminismo francês e inglês nele. Terá de revelar as contradições de classe que dominaram no seio do Iluminismo alemão. Pois é visível, além disso, para qualquer conhecedor da história da Alemanha que o Iluminismo deste país serviu ideologicamente também aos objetivos do absolutismo feudal dos pequenos estados teutônicos e aos dos revolucionários burgueses que então se organizavam ideologicamente. Marx desde A ideologia alemã esta contradição do Iluminismo teutônico. A situação de mais progresso de França, com a correspondente maior diferenciação classista, a maior clareza e decisão da luta de classes, converteram-se em França de um modo mais natural aos principais iluministas em ideólogos preparadores da revolução burguesa. Como na Alemanha a revolução burguesa não estava na ordem do dia no terreno da realidade, a influência dos iluministas franceses foi menos confusa e contraditória que na própria França.
O absolutismo feudal e seus ideólogos tentaram muitas vezes na época aproveitar determinados aspectos do Iluminismo para seus próprios fins. A oposição, e especialmente a oposição político-social dos iluministas alemães, era muito débil, muito mais do que haveria sido em um país economicamente mais desenvolvido. E este caráter do Iluminismo alemão se reflete em todos os terrenos ideológicos. Enquanto a linha principal do desenvolvimento ideológico tende em França cada vez mais claramente para um resoluto materialismo de Diderot, Holbach e Helvetius, o Iluminismo alemão está simplesmente dominado pela ideia da “religião racional”. Ateus e materialistas são na Alemanha da época meras exceções, e na maior parte dos casos personalidades isoladas em todos os sentidos, como por exemplo, B. J. Ch. Edelmann. O radicalismo mais extremado que conseguiu alcançar os representantes principais do Iluminismo alemão é um panteísmo spinozista. Contudo, mesmo propugnar esta ideologia, como fizeram Lessing maduro ou o jovem Goethe, provoca a indignação e o espanto nas fileiras dos iluministas médios alemães. É extraordinariamente peculiar o fato de que Lessing não tenha revelado seu espinozismo ao iluminista Moses Mendelsohn, que tão próxima amizade teve com ele, e que Mendelsohn se sentira tão profundamente afetado quando da morte de Lessing, se fizeram públicas suas verdadeiras ideias pela aparição de suas conversas com F. H. Jacobi.
O marco deste estudo nos permite, naturalmente, uma investigação especial da Ilustração alemã. Para nossas finalidades basta a comprovação de que a educação recebida na Fundação de Tubinga, onde o jovem Hegel passou seus primeiros anos de estudo, era uma ilustração adaptada às condições da corte. Possuímos faz pouco tempo uma série de apontamentos (publicados por Hoffmeister) dos quais de depreende sem margem à duvidas que o jovem Hegel conheça muito intimamente o Iluminismo alemão, francês e inglês. Também seus estudos posteriores em Berna nos mostram um Hegel intensamente ocupado com a literatura do Iluminismo, não limitada à ciência histórica e à filosofia, inclusive as Belas Artes do período. (Assim, por exemplo, nas anotações de Berna se encontra uma citação de um romance de Marivaux.) A parte principal dessas leituras são, sobretudo a princípio, dos iluministas alemães. Nos resumo de Tubinga, já citados, encontramos praticamente textos de todos os iluministas alemães, inclusive dos de menor importância, e não só citados, mas estudados mais ou menos detalhadamente. Especialmente no início do período de Berna, Hegel se refere em suas anotações frequentemente à Jerusalém de Mendelssohn, então muito famosa. Com especial frequência se apresentam os escritos e peças artísticas de Lessing, sobretudo Nathan o Sábio.
Porém, com isto não se esgota o âmbito de leituras do jovem Hegel, nem sequer pelo que fez no período de estudos em Tubinga. De seus estudos e anotações se depreende claramente que conhecia muito bem aos grandes do Iluminismo francês, Montesquieu e Voltaire, Diderot, Holbach, Rousseau e outros. Seus estudos históricos devem ter sido muito amplos, sobretudo em Berna. Dos seus resumos descobrimos que estudou detalhadamente as obras de Grocio, a História índia de Raynald, a História da Grã-Bretanha de Hume,e a Decadência e Queda do Império Romano, de Gibbon.s A estes se acrescentem a leitura das obras históricas de Schiller, alguns estudos de Benjamin Constant e escritos do revolucionário alemão Georg Foster. Dada a natureza da educação da época, não é demais dizer que Hegel conhecia bem aos filósofos e historiadores da Antiguidade. Porém, é importante indicar que sua interpretação dos antigos historiadores e filósofos movia-se plenamente dentro da linha do Iluminismo anglo-francês. Também o jovem Hegel – como mostraremos detalhadamente a seguir – viu na antiga Cidade-estado (polis) não um fenômeno social passado e caduco surgido em determinadas condições concretas e desaparecida em outras, mas o modelo eterno, o protótipo inalcançável da modificação atual da sociedade e do Estado.
Já não basta para apreciar claramente a direção em que se movem as leituras do jovem Hegel. No marco das lutas de tendências que atravessam o Iluminismo alemão, o jovem Hegel vai encontrando-se cada vez mais com a esquerda democrática, a qual critica e combate os traços do Iluminismo alemão que se deve a sua adaptação ao mundo especificamente alemão dos pequenos estados absolutistas. O desenvolvimento de Hegel entre Tubinga e Berna se produz numa direção tal que o interesse do jovem pensador aponta cada vez mais aos dos Iluministas franceses e ingleses, deixando em segundo plano os alemães. Por isso é peculiar e chama a atenção que Hegel apele tantas vezes em suas notas à crítica da religião contida no citado drama de Lessing, crítica que, para a situação alemã da época, é extremamente radical. Não menos ilustrativo e característico é o citado juízo de Hegel sobre as relações entre a Antiguidade e o presente, formulado a propósito do problema das relações entre a arte antiga e cristã, se baseie em concepções expressas nas Ansischten von Niederrhein (Visões do Baixo Reno), de Georg Foster. Hegel tomou extensas citações deste livro; e se isso é característico para Hegel, peculiar para seus modernos editores é admitir que Hermann Nohl, por exemplo, se bem se vê obrigado a admitir dessas citações, não as reproduza em sua edição, com objetivo de dificultar ao leitor a compreensão da importância dessas citações para o desenvolvimento de Hegel.
Mais tarde teremos que nos ocupar detalhadamente do fato curioso de que o jovem Hegel haja sido bastante indiferente aos problemas filosóficos no sentido estreito. Sem dúvida leu aos filósofos antigos, Espinoza e Kant, porém a única leitura documentalmente comprovada das obras de Espinoza, por exemplo, é o Tratado teológico-político. E o estudo deste livro pode haver estado perfeitamente relacionado com seus estudos da crítica da religião e da história das religiões.
Neste contexto deve-se citar também a leitura da História da Igreja, de Moshein, pois todos os modernos editores e expositores do desenvolvimento do jovem Hegel concedem uma importância extraordinária a esta leitura, pela qual querem demonstrar os interesses religiosos e teológicos do pensador em formação. Ocuparmo-nos detalhadamente desse problema mais à frente. Pelo momento bastará dizer que as obras históricas já citadas do período do Iluminismo tratam também amplamente da história das religiões, especialmente a do cristianismo. E enquanto Hegel tomou poucas citações de Mosheim referentes a fatos históricos, em seus comentários toma resolutamente posição a favor da crítica radical ao cristianismo que se encontra nos escritos de Gibbon, Foster, etc. O fato que em todo este contexto Hegel estudou também a mística alemã (o mestre Eckhart, Tauler, etc.) não prova as construções de Dilthey, Nohl e consortes. Pois, como também veremos detalhadamente mais à frente, as seitas são de uma grande importância para a concepção do cristianismo que faz Hegel à época. Do mesmo modo que descobriu e criticou no cristianismo primitivo o caráter de organização em seitas, pode haver-se ocupado já nesta época, por interesses histórico-polêmicos, do problema das seitas posteriores.
Para voltar ao problema das leituras filosóficas do jovem Hegel, é preciso destacar, naturalmente, sobretudo o conhecimento de Kant, o qual retroage, certamente, à época de estado de ânimo da jovem geração filosófica de então, que tanto no jovem Hegel quanto no jovem Schelling se encontre no centro do interesse a Crítica da Razão Prática. Este é o caso mais acentuadamente em Hegel do que em Schelling. Não se encontra em todo período de Berna uma só anotação de Hegel que aluda a uma ocupação profunda com os problemas da Crítica da Razão Pura, com problemas epistemológicos no sentido mais estreito. Também se depreende claramente da correspondência com Schelling que o jovem Hegel começou a estudar com vacilações, sem interesse sério, os primeiros escritos de Fiche, e se encontrou a seguir ao que parece pelos materiais que encontramos, com uma atitude muito crítica diante deles. Por outro lado, é característico que as Cartas sobre a educação estética, de Schiller, suscitaram nele verdadeiro entusiasmo, e isso, de acordo com a tendência geral da época de seu pensamento, não tanto por seu conteúdo estético-filosófico quanto por sua contundente crítica da ausência de cultura na Idade Moderna, por sua comparação dessa decadência cultural com a grandeza cultural dos antigos.
Como é natural, tudo isto não significa que o jovem Hegel possa ser simplesmente alienado do Iluminismo em todos os terrenos de sua concepção do mundo. Pois seu ponto de vista idealista lhe separa desde o início dos franceses e ingleses. Hegel não oscilou seriamente jamais para o materialismo filosófico, como fizeram, por outro lado, muitos seus contemporâneos importantes. No seu Materialismo e empiriocriticismo, Lenin assinalou a presença dessa oscilação em Kant; também nos primeiríssimos trabalhos do jovem Schiller, quando este estudava medicina, se encontram certas tendências ao materialismo; quando estudarmos o desenvolvimento de Hegel durante o período de Iena poderemos mostrar as enérgicas oscilações as vezes em Schelling, durante o período da “Filosofia da Natureza”. Muito mais coerente que os pensadores citados, Hegel foi toda sua vida um filosofo idealista. Sua aproximação ao materialismo, no sentido em que registra Lenin em suas observações à lógica de Hegel, se produzem ao redor do idealismo objetivo, através do alcance enciclopédico de seu saber e por sua sóbria observação sem preconceitos dos fatos. Porém seu pensamento filosófico consciente sempre foi idealista.
Já indicamos que no período de Tubinga e Berna o jovem Hegel ocupou-se profundamente de problemas propriamente filosóficos, que seu interesse nessa época não se dirigiu a problemas da teoria do conhecimento. Apesar disso, surge nele uma atitude unitária para o juízo dos fenômenos da sociedade e da história. Há poucos indícios de que em Berna tenha se ocupado seriamente de problemas filosóficos-naturais. O jovem Hegel não investiga filosoficamente os fundamentos filosóficos de seu ponto de vista unitário. Como muitos importantes contemporâneos, quer aplicar a problematização kantiana da Crítica da Razão prática à sociedade e à história. O ponto de vista kantiano é dominante nos dois sentidos; primeiro, porque Hegel concebe os problemas sociais principalmente como problemas morais; segundo, porque o problema da prática – ou seja, da transformação da realidade social do homem – é o problema central de seu pensamento.
Porém num ponto decisivo Hegel vai, já em sua primeira juventude, além de Kant. Este estuda os problemas morais do ponto de vista do indivíduo; o fato moral fundamental é para ele a consciência moral. E não consegue uma aparente objetividade idealista senão projetando sobre um sujeito fictício, aparentemente ultraindividual, mas na realidade individual e mistificado – o chamado “eu inteligível” – os traços comuns, a legalidade geral da ética que pretende descobrir. Os problemas sociais crescem diante de Kant secundariamente, pelo acréscimo posterior dos sujeitos individuais que são os primariamente estudados.
Por outro lado, o subjetivismo do jovem Hegel, orientado à prática, é desde o primeiro momento coletivo e social. Para Hegel, o ponto de partida e o objeto central da investigação é sempre a atividade, a prática da sociedade. Encontra-se aqui uma metodologia que tem determinados pontos de contato com a de Herder. Este foi o primeiro iluminista alemão que problematizou a prática social coletiva, mesmo sem ser capaz de fixar, conceitualmente de um modo claro a natureza do sujeito que assim atua nem as leis reais de seu modo de atuar; precisamente do ponto de vista metodológico fica sempre característica nele uma semiobscuridade impenetrável. O jovem Hegel não se apoia em nenhum momento concreto e demonstrável nas investigações históricas de Herder, e nem sequer contamos com documentos para provar que foi impressionado de modo especial por Herder. Mas as ideias deste estavam no ar na Alemanha da época, e seria, portanto ocioso trabalho filosófico buscar passos paralelos entre Herder e o jovem Hegel.
Porém, o seguinte ponto é importante para todo o desenvolvimento de Hegel: este parte do conceito herderiano, nada esclarecido, de sujeito coletivo. No seu período de Berna não faz o menor esforço para esclarecer conceitual e epistemologicamente a essência desse sujeito. Ainda estuda este sujeito coletivo, e seus fatos e destinos, no curso do acontecimento histórico, da transformação da realidade social. Veremos que da decadência deste sujeito coletivo, sua decomposição em indivíduos “privados” cuja simples “soma” passa a compor a sociedade, desempenha o papel decisivo no seu pensamento a este respeito.
Em sua época de Berna, o jovem Hegel toma, como veremos, essa decomposição como simples fato históricas, sem obter dele posteriores consequências filosóficas. Seu problema capital nesse período é um problema prático: se problematiza a pergunta de como foi possível essa decomposição da subjetividade coletiva das antigas repúblicas-cidades. Assim aparece nele o reflexo mental da importante ilusão histórica que guiou a ação dos dirigentes jacobinos da Revolução Francesa, de Robespierre, ou de Saint-Just. Somente depois da derrota do jacobinismo, após o Termidor, aparece já em Frankfurt, quando a grande crise de seu pensamento, o problema de uma valorização positiva da sociedade moderna, da sociedade burguesa, do indivíduo “privado”, e veremos como surgem dessa crise, em íntima relação, tanto da ocupação com os problemas da economia política como a concepção dialética da realidade social.
De imediato, pois, teremos de ocuparmos desse sujeito histórico coletivo, conceitualmente, sem analisar. E sabemos também que todos os problemas sociais e históricos que surgiram ao jovem Hegel neste contexto na forma de problemas morais. De tal problematização segue necessariamente que nessas reflexões histórico-filosóficas a religião tem de representar um papel decisivo. Este é um dos pontos mais aproveitados pela filosofia reacionária do período imperialista para falsificar o perfil de Hegel. Caracteristicamente Hermann Nohl intitulou, sua edição dos fragmentos teológicos juvenis de Berna e Frankfurt de Hegels theologische Jugendschriften [Escritos teológicos juvenis de Hegel]. Com isso pretende sublinhar a ideia de que Hegel somente cursou a teologia na Fundação de Tubinga como estudo inevitável para ganhar a vida, mas como se os problemas teológicos constituíssem o fundamento e o ponto de partida de todo seu pensamento. Esta tendência se encontra também no outro editor recente de Hegel, Georg Lasson. Para este, a religião e a teologia são o eixo de todo o sistema hegeliano; Lasson critica a todo comentarista de Hegel, por reacionário que seja, que não coloque de um modo absoluto o ponto de vista religioso no centro da interpretação do filósofo. Neste mesmo âmbito de ideias se encontra também a tese capital da maior monografia moderna sobre o jovem Hegel, a de Th. L. Haering o qual vê em Hegel um “pedagogo popular” deformando hermeneuticamente o ponto de partida prático de Hegel, que já analisamos, no sentido de uma tentativa de doutrinação religiosa do povo.
O que tem de verdade sobre esse caráter “teológico” dos escritos juvenis de Hegel? O leitor atento e sem preconceitos encontrará nesses escritos assombrosamente pouca teologia; e além disso, encontrará no jovem Hegel um estado de ânimo resolutamente hostil à teologia. Como já sublinhamos, a questão religiosa desempenha, naturalmente um papel no complexo de problemas históricos do jovem Hegel e, como sabemos, a religião nunca deixa de desempenhar tal papel no sistema de Hegel.
Porém o que convém estudar concretamente é: primeiro, em quê consiste esta posição do jovem Hegel com a religião; segundo, quais são os fundamentos da posição problemática, e quais suas circunstâncias e condições históricas. Se começamos pela segunda pergunta, comprovamos a seguir que o problema do conteúdo histórico, da atividade ou eficácia histórica das religiões, especialmente o cristianismo, sempre foi um problema central de todo o Iluminismo alemão, até Reimarus e Lessing. E é preciso acrescentar ainda que este problema torna a aparecer na época da dissolução do hegelianismo nos escritos de Strauss, Bruno Bauer, Feuerbach, etc. O jovem Hegel se encontra, pois, deste ponto de vista, na linha geral do Iluminismo alemão. Engels descobriu claramente os motivos reais deste fenômeno: “Porém, a política era então um terreno muito espinhoso, e por isto a luta principal se dirigiu contra a religião; essa luta era, ademais, desde 1840, uma luta indiretamente política.”(1)
Este caráter indiretamente político da religião e da luta contra a religião existe plenamente no período em que Hegel escreve seus “Escritos teológicos juvenis”: enquanto que no período preparatório imediato da revolução de 1848 o radicalismo filosófico passou rapidamente da crítica da teologia – como atividade desanimada, como forma insuficiente de oposição ideológica – a formas mais políticas de crítica na discussão da teologia tinha de se sentir como muito mais revolucionária. Neste ponto se situam os “Escritos teológicos juvenis” de Hegel. Em sua tendência fundamental, são escritos contra a religião cristã. Aludimos a ideia central da filosofia da história de então professada por Hegel, segundo a qual a decadência das antigas cidades-estados significou a decadência da sociedade da liberdade e da grandeza humanas, a transformação do heroico citoyen [cidadão] republicano da polis no simples e egoísta “homem privado” da sociedade moderna, o burguês. Antecipando aqui sucintamente o resultado final da análise da religião cristã feito por Hegel nesta época, temos que dizer: o jovem Hegel, vê no cristianismo precisamente a religião do “homem privado”, do burguês, a religião da perda da liberdade humana, a religião do despotismo milenar e da servidão milenar. Com estas ideias se move Hegel na linha do Iluminismo em geral.
Porém, há que aditar a seguir que o jovem Hegel, como todos os iluministas alemães em geral, não chegou, na luta contra a religião cristã, tão longe quanto os ingleses e franceses. Sua luta contra o cristianismo, não chegou a ser um ateísmo materialista. Antes ao contrário, o núcleo de seus esforços é religioso; consiste em descobrir as condições sociais nas quais a religião e o despotismo e a servidão poderiam ser de novo substituída por uma religião, da liberdade segundo o modelo da Antiguidade.
Dadas as circunstancias alemães, não há neste fato nada que possa chamar a atenção. Engels mostrou inclusive que no próprio Feuerbach a luta contra a religião, o desmascaramento dela, se converte as vezes na exigência de uma nova religião “pura”. E se deve também a Engels a observação de que a sobrevalorização do significado histórico da religião, a ideia de que os grandes pontos de inflexão do desenvolvimento da humanidade estejam condicionados pelos a acontecimentos religiosos, segue sendo ainda característica da concepção histórica professada por Feuerbach. Tudo isto se pode dizer, ainda mais contundentemente, dos iluministas alemães cuja obra precede à de Hegel. Que se pense, sobretudo, em um pensador honesto e importante como Lessing, cujas obras iluministas se desenvolveram sempre no seio de um horizonte religioso. Por outro lado, entretanto, não se pode esquecer, mesmo no Iluminismo alemão nunca alcançou na luta antirreligiosa a solução materialista e ateia que se encontra em Diderot, Holbach e Helvetius, chegou, por outro lado, às vezes (Lessing, Herder) mais longe que os pensadores franceses na compreensão histórica da origem das religiões, das raízes sociais da evolução de suas formas.
Neste ponto se encontra precisamente a importância dos escritos juvenis de Hegel. O jovem Hegel situa com grade radicalismo no centro de seus estudos o problema das origens sociais do cristianismo. Com esta sobrevalorização idealista do papel histórico da religião, à que nos referimos, Hegel vê no cristianismo a causa última de todos os acontecimentos e todas as situações sociais e políticas da vida moderna contra as quais dirige exatamente sua luta principal. Seu objetivo prático central – a renovação da democracia da polis, de sua liberdade e de sua grandeza – requer, segundo suas concepções da época, uma fundamentação histórica e política, como consequência da qual o cristianismo se converteu em religião dominante. O objetivo de Hegel é eliminar todo esse complexo histórico. Busca as causas de sua origem para poder apontar a perspectiva de seu fundamento.
Não fará falta para ver mais claramente como todas estas concepções do jovem Hegel nascem da base posta pela influência da Revolução Francesa. O entusiasmo inicial de Hegel pela Revolução Francesa é um fato universalmente conhecido. Sabe-se também que os amigos juvenis de Hegel, Hölderin e Schelling, plantaram com ele ainda em Tubinga uma árvore da liberdade em torno da qual dançaram cantando em coro canções revolucionárias. Segundo a tradição, constituem também na Fundação de Tubinga no centro de um clube secreto que se dedicava a leitura de escritos proibidos sobre a Revolução Francesa. Este entusiasmo se enquadra naquele estado de ânimo geral diante da Revolução Francesa que existiu na maior parte da intelectualidade alemã da época, fenômeno ao que antes referimos. Quando estudei, em outro livro, este tema aludi ao fato de muito escritores destacados da época aquele entusiasmo durou pouco. Os acontecimentos de 1793-94 não estavam ao alcance da compreensão da maior parte dos alemães contemporâneos. A ditadura plebeia dos jacobinos de Paris espantou e indignou a maioria deles (a Klopstock, por exemplo, a Schiller, etc.). Contudo a tese de que por aquela decepção se converteram em opositores inimigos da Revolução Francesa e abandonaram os princípios de 1789 é uma de muitas fábulas forjadas pela historiografia burguesa. Na maioria dos casos ocorreu justamente o inverso. Tal é precisamente o caso do jovem Hegel.
Em carta a Schelling (Natal de 1794) escreve, por exemplo, o pensador: “Certamente sabeis que Carrière foi guilhotinado. Seguis lendo os diários franceses? Se não estou enganado, me disseram que em Württemberg estão proibidos. O processo de Carrière é muito importante, e revelou toda a vergonha dos robespierristas”(2). Esta carta mostra com nitidez que o jovem Hegel é hostil ao jacobinismo plebeu. A peculiaridade da posição de Hegel entre seus contemporâneos alemães consiste, portanto, em seu radicalismo. Não somente Foster foi bastante mas longe que ele deste ponto de vista – passando além disso à prática -, senão também Fichte; e velhos iluministas como Herder o Wieland conservaram durante muito tempo uma viva simpatia inclusive pelos extremos da Revolução Francesa, mantiveram entretanto durante toda sua vida a necessidade histórica daquela Revolução, e seguiram sempre vendo nela o fundamento da moderna sociedade burguesa.
Por certo que as ideias de Hegel a propósito da sociedade burguesa sofreram modificações radicais. No período juvenil de Berna, que é aquele que aqui nos ocupamos, Hegel vê na revolução burguesa, apesar de sua oposição à política de Robespierre, o fundamento da futura renovação da sociedade. Mais tarde, após a crise de Frankfurt, quando consegue uma compreensão mais profunda da base econômica da sociedade burguesa, concebe a Revolução Francesa não como o impulso e o veículo que deveriam levar a uma futura renovação da sociedade, porém, ao contrário, como o fundamento histórico passado – mas historicamente necessário – da realidade que existe na sociedade de seu presente. Com isto chega finalmente a um entusiasmo – certo que misturado na prática pela perspectiva histórica – pelos aspectos radicais da Revolução Francesa.
Mais tarde poderemos estudar detalhadamente este desenvolvimento de Hegel seguindo passo a passo suas manifestações ainda existentes, até chegar ao célebre capítulo da Fenomenologia do espírito. O que agora nos importa é conhecer de perto e concretamente o estado de ânimo de Hegel na época. Em uma carta a Schelling datada um pouco mais tarde (16-IV- 1795) escreve Hegel:
“Não creio que se haja para a época sinal melhor do que este fato de que a humanidade se represente ante si mesma. Isso é uma prova de que está se dissipando o limbo que aureolava as cabeças opressoras e os deuses da terra. Os filósofos ensinam e proclamam essa dignidade da humanidade, e os povos aprenderão a senti-la, e a não pedir mais direitos humilhados no pó, mas tomá-los por si, apropriando-os. A religião e a política jogaram a mesma carta. A religião ensinou que o despotismo quis: o desprezo ao gênero humano, a incapacidade deste para qualquer coisa boa, para ser algo por si. Com a difusão da ideia de como deve ser tudo, desaparecerá a indolência de pessoas sentadas, que estão dispostas a tomar tudo eternamente como é”.(3)
Esta carta é interessante de vários pontos de vista. Por uma parte mostra até que ponto a Crítica da razão prática foi o ponto de partida do jovem Hegel. Muito diferente de suas concepções posteriores, nas quais colocará precisamente no centro da metodologia das ciências sociais a atenção à realidade e a recusa do “dever ser” abstrato kantiano, Hegel contrapões aqui, a maneira de Kant, o dever-ser transformador ao inerte e reacionário ser. Mas ao mesmo tempo é visível que sem preocupar-se muito com os fundamentos epistemológicos de sua operação, Hegel está modificando hermeneuticamente a Kant: o dever-ser tem agora um significado puramente político-social, enquanto que seu caráter inicial kantiano, de pura moralidade, constitui apenas seu fundamento geral idealista. A isso se acrescenta que a contraposição entre o ser e o dever não se coloca aqui na psique individual, entre o empírico e o inteligível – como é o caso de Kant -, mas entre tendências progressistas e tendências reacionárias na vida político-social.
O que faz esse conteúdo político-social em si, se aprecia claramente que a luta de Hegel contra a filosofia e a religião dominantes são aspectos ideológicos de sua luta da época contra o despotismo em geral. Ao conceber a crítica do cristianismo como elemento da luta geral contra o despotismo feudal e absolutista, Hegel se encontra na linha do Iluminismo e, mais especialmente com as grandes lutas de classes que tiveram lugar em França em torno da religião. Engels destacou acertadamente como característica essencial da Revolução Francesa – diferente de todas as outras revoluções burguesas – sua essência irreligiosa. Enquanto que as revoluções anteriores burguesas, inclusive a inglesa do século XVII, lutaram ainda sob bandeira religiosa, a Revolução Francesa apela “a ideias jurídicas e políticas... e se preocupa com a religião na medida em que esta fecha o caminho, sem que lhe ocorra colocar uma religião nova no lugar da velha; como é sabido, a única tentativa nesse sentido, a de Robespierre, terminou em fracasso”.(4)
Com essa observação Engels caracterizou a linha fundamental do que realmente ocorreu na Revolução Francesa, neste campo. Ao considerar a posição do jovem Hegel em relação a estes acontecimentos não há que esquecer o que foi dito antes a respeito, a saber, o fato de que o reflexo dos acontecimentos em Alemanha, em consequência do atraso político e econômico, sofreu uma deformação característica. Pois por muito as direções políticas da Revolução Francesa estivessem gravadas por diversos preconceitos e ilusões (em parte porque também o que faz no problema religioso), o fato que trataram como políticos reflexivos. A relação entre o estado revolucionário francês e a religião católica ficou determinada pelo fato de que a Igreja católica constituiu o centro ideológico e organizativo da contrarrevolução da realeza, assim como pela circunstância de que os principais políticos compreenderam, ou perceberam pelo menos, que a influência da religião católica nas massas camponesas não poderia ser extirpada senão decretando sua supressão. A caracterização dada por Engels se confirma plenamente quando segue com detalhes os complicados fatos históricos que constituem a as reviravoltas e oscilações da linha de desenvolvimento deste problema durante a Revolução Francesa.(5)
Os historiadores burgueses dos movimentos religiosos, durante a Revolução Francesa coincidem todos superestimar extraordinariamente sua verdadeira importância. Assim, por exemplo, Mathiez deu grande importância às relações entre a conspiração de Babeuf e os teofilantropos, apesar de sua própria exposição e dos fatos que ele mesmo forneceu se depreende claramente que Babeuf e seus companheiros não utilizaram as reuniões religioso-morais daquela seita apenas para preocupar-se com a legalidade relativamente segura para suas próprias reuniões.(6) E dos fatos publicados por Aulard e Mathiez se se depreende também claramente que a luta de Danton e Robespierre contra as concepções religiosas de Hébert. Chaumettre, etc., tiveram na realidade um fundamento politico, a saber, o temor de que sua agitação extremista acabasse por empurrar aos camponeses nas fileiras da contrarrevolução da realeza.
Inclusive a tentativa de fundar uma nova religião, leva a cabo por Robespierre, no último período de seu domínio, no culto do “Ser Supremo”, ainda tem, sem dúvida, matizes que emanam das concepções rousseaunias de Robespierre, das ilusões que alimentavam ele e os seus partidários sobre as perspectivas e as possibilidades de desenvolvimento da Revolução democrático-burguesa, entretanto, pela sua essência, é primariamente um ato político e não religioso, mesmo que seja a ação de um político desesperado numa situação também desesperada do ponto de vista sociológico objetivo.
O fato de que Robespierre haja posto cada vez mais energicamente a questão da moral no centro do terror revolucionário dos jacobinos reflete sua luta desesperada contra as tendências capitalistas desencadeadas pela própria revolução, as quais empurravam inevitavelmente para a liquidação da ditadura jacobina da plebe e para a aberta ditadura sem adornos da burguesia, ou seja, para o Termidor. O Terror em nome da virtude republicana da luta contra todas as formas de degeneração e corrupção, é em Robespierre, o aspecto ideológico de sua defesa do modo plebeu de dirigir a revolução democrático-burguesa não só contra a contrarrevolução da realeza, contudo contra a própria burguesia também. O fato que essa politica de Robespierre se baseasse suas perspectivas em simples ilusões, o fato de que a ditadura plebeia dos jacobinos, depois de haver cumprido sua missão – salvar a revolução da intervenção estrangeira mediante a mobilização das massas plebeias – tinha forçosamente que cair, em nada contradiz o caráter predominantemente político dos atos de Robespierre no último período de seu governo, tampouco no que fez na questão religiosa.
Quando, pois, Robespierre diz em seu discurso à Convenção de 5 de fevereiro de 1794 que se está fazendo uma contrarrevolução moral para preparar uma contrarrevolução política, tem do seu ponto de vista e uma vez descontadas, naturalmente, suas inevitáveis, ilusões, completa razão.(7) E seu esforço para fundar uma nova religião, a religião do “Ser Supremo”, se baseia precisamente em que para assegurar e continuar a revolução necessita criar nas concepções morais do povo uma ampla base que seja o contrapeso tanto da agitação da Igreja contrarrevolucionária quanto da decomposição e corrupção que partem da burguesia.(8)
No curso das oscilantes lutas de classes que ocorreram em consequência de Termidor, surgem em França diversas seitas que igualmente se propõem manter o espírito republicano mediante a influência religiosa-moral sobre as massas. As mais importantes dessas seitas é a dos teofilantropos. Esta seita está composta por republicanos moderados, e alcança conseguir temporariamente influência sobre certos membros do Diretório de ideias republicanas. A seita parte do fato que as velhas religiões são inadequadas para transformar os costumes num sentido republicano, e de que, por outro lado, sem tal reforma moral a República ficaria sem apoio das massas, nos costumes do povo.
Já Robespierre considerava as grandes festas populares, a introdução de costumes republicanos nos principais acontecimentos da vida diária (nascimento, matrimônio, enterro) como meio importante para conseguir essa influência religiosa-moral do povo. Em seu discurso à Convenção que acabamos de citar fala extensamente da importância das solenidades populares gregas, especialmente da importância que tinha a atividade autônoma que o povo desenvolvia nelas; termina o discurso abrindo a perspectiva de que tudo isso possa repetir-se e renovar-se com maiores dimensões em França: “Um sistema de tais festas seria ao mesmo tempo o mais suave laço de fraternidade e o mais poderoso instrumento de regeneração”(9). Como é natural, esses momentos mais exteriores da “renovação religiosa” desempenham no movimento das seitas posteriores a Termidor um papel muito maior que no político Robespierre.
Indicamos já que os historiadores como Aulard e Mathiez superestimaram claramente a importância desses movimentos religiosos. Porém o mais importante para nossa problematização não é a importância que esses movimentos hajam tido realmente em França revolucionária, entretanto, o modo como teve lugar sua recepção na atrasada Alemanha e especialmente o modo como influenciaram o jovem Hegel.
Não possuímos, certamente, uma prova direta de que Hegel se haja interessado profundamente por essas correntes religiosas em França revolucionária. Porém, a probabilidade de que as haja conhecido é extraordinariamente grande. Mathiez(10) oferece em seu livro uma detalhada bibliografia dos jornais em que se publicaram artigos a favor ou contra os teofilantropos. Dentre esses jornais se encontra Deutsche Merkur [O Mercúrio Alemão], de Wieland, uma das publicações mais lidas à época na Alemanha, assim como a Minerva de Archenholz. Da última revista sabemos, com certeza, que Hegel a conhecia e lia(11). E como também sabemos que durante sua estadia em Suíça leu, com extremo cuidado as mais diversas publicações francesas, é inverossímil, dado seu interesse pela renovação religiosa-moral da humanidade em relação à Revolução francesa que não haja sabido nada dos movimentos religiosos que se produziam lá.
Porém, mais importante que esta ligação externa é a interna. No curso deste capítulo, quando tratarmos da concepção hegeliana da Antiguidade, falaremos detalhadamente da grande importância que atribuía às festas populares gregas e a atividade autônoma do povo nelas e na religião grega em geral; suas ideias estão neste ponto em contato íntimo com o citado discurso de Robespierre. E pelo que faz a ideia de influenciar de modo geral nos costumes mediante a nova religião que é preciso criar sobre a base de uma renovação da Antiguidade, pode se dizer que esta questão se encontra precisamente no foco dos interesses de Hegel à época.
Como a maioria dos idealistas alemães de então, Hegel considera a renovação moral do povo menos como consequência da revolução que como premissa sua. Esta concepção havia sido já apresentada por Schiller nas Cartas sobre a educação estética, cuja impressão sobre o jovem Hegel já indicamos. Porém, a concepção de Schiller é pessimista. Precisamente porque considera que a renovação moral do povo é um pressuposto inevitável da revolução alcançada, desespera a possibilidade que esta, ainda pensa que uma necessidade histórica e moral da eliminação do sistema feudal absolutista característico da Alemanha da época. E é característico que também em Schiller, e muito importante e fato que esta questão da renovação moral do povo considere impossível toda ação educativa do Estado
O jovem Hegel se distingue neste ponto de Schiller precisamente pelo seu otimismo no que se refere à possibilidade de uma renovação da humanidade, de um período revolucionário no qual voltariam a despertar a liberdade e a virtude da humanidade. Por isso desempenha tão grande papel a religião em sua concepção idealista juvenil. Hegel vê – também nisto de acordo com a ética e a teoria social de Kant – que o estado não é capaz de impor aos cidadãos mais que a obediência externa à lei, a legalidade e não a moralidade. Porém, como pensa que a solidez de um regime depende exatamente de suas raízes nas concepções e nos sentimentos morais de seus cidadãos, busca na história os fatores que determinam essas concepções, e descobre que a religião é a mais eficaz de todos eles.. Assim, por exemplo, diz no seu estudo mais importante do período de Berna, A possibilidade da religião cristã, falando dessa relação do cidadão com o Estado: O Estado “não consegue levar ao cidadão a servir-se dessas instituições senão pela confiança nelas que tem de suscitar. A religião é sobretudo este meio de suscitá-la, e o que seja capaz de satisfazer seu fim depende do uso que o Estado faça dela. Este fim está claro nas religiões de todos os povos, as quais coincidem todas em que se encaminham em produzir o ânimo e a consciência, o qual não pode ser objeto de leis civis...”(12)
Acreditamos que nestas linhas podem ver-se claramente que há decerto no caráter “teológico” dos escritos juvenis de Hegel. O jovem Hegel pensa que os pontos de inflexão da História que resultam importantes – a passagem da liberdade antiga ao despotismo medieval e moderno e a esperada passagem desse despotismo à nova liberdade – estão ligados do modo mais profundo com inflexões religiosas; que tanto a democracia como o despotismo necessitam de religiões adequadas a seus respectivos fins para poder subsistir duradouramente. O dito até agora bastará para deixar claro que o modo como Hegel se coloca metodologicamente questão da religião futura e de suas relações com a renovação da Antiguidade está intimamente aparentada com as ilusões dos revolucionários franceses, com os esforços religiosos-morais que se produzem no seio da Revolução Francesa. É uma consequência da autenticidade alemã de Hegel o fato de que em sua juventude haja reagido tão intensamente a este respeito, no fundo marginal, do desenvolvimento ideológico da Revolução francesa. Porém, mais adiante veremos que também deste afastado ponto de vista adjetivo tenha sido capaz de compreender alguns momentos objetivamente importantes do desenvolvimento social.
Certo que é um traço essencial da filosofia idealista o superestimar desmedidamente o papel histórico da religião. E que esta superestima atravessa permanentemente todo o desenvolvimento de Hegel. Como veremos, ele revisou radicalmente mais tarde suas opiniões juvenis pelo que faz a todas as grandes questões da concepção da história. Porém entretanto em seus cursos de Berlim, sobre a filosofia da História torna ao mesmo questionamento, precisamente nos lugares que se referem já a revolução de 1830. Nesse lugar polemiza com o liberalismo dos países da Europa ocidental e diz: “Pois é um princípio falso o de que as cadeias do direito e da liberdade possam romper-se sem a libertação da consciência, o princípio de que seja possível uma revolução sem Reforma”(13). Como se vê, o ponto de partida metodológico do jovem Hegel pelo qual faz a eficácia histórica das religiões o acompanha – mesmo, sem dúvida com grandes modificações de conteúdo – durante toda sua vida. Trata-se de uma herança insuperável do idealismo filosófico. Porém, apesar de tudo isso a tese de que existe um período “teológico” do jovem Hegel é, com foi visto, uma lenda histórica dos apologistas reacionários do imperialismo.
Notas de rodapé:
(1) Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia clássica alemão, Berlim, 1952, p. 13. (retornar ao texto)
(2) K. Rosenkranz, Hegels Leben, Berlim, 1844, p. 66. Esta obra se citará doravante por Rosenkranz. (retornar ao texto)
(3) Publicado em Rosenkranz, p. 70. (retornar ao texto)
(4) Engels, Feuerbach, op. cit., p. 33. (retornar ao texto)
(5) As monografias mais importantes sobre esta temática são: Aulard, Le culte de la Raison et le culte de l´Être Supreme [O culto da Razão e o culto ao Ser Supremo], Paris, 1909. Mathiez, Les origines des cultes révolutionaires [ A origem dos cultos revolucionários], Paris 1904. Mathiez, La theophilanstrophie et le culte decaderé 1796-1801, Paris, 1904 [A teofilanstrofia e o culto deposto 1796-1801] (retornar ao texto)
(6) Mathiez, Theofilanstrophie, p. 40 e ss. (retornar ao texto)
(7) Oeuvres [Obras] de Robespierre, ed. por Vermorel, Paris, 1867, p. 302 (retornar ao texto)
(8) Discurso à Convenção de 7 de maio de 1794, ibidem, p 308 e ss. (retornar ao texto)
(9) Ibidem, p. 329 e ss. (retornar ao texto)
(10) Mathiez, op. cit., p. 390 e ss. (retornar ao texto)
(11) Carta a Schelling do Natal de 1794, Rosenkranz, p. 65 (retornar ao texto)
(12) Nohl, p. 175. (retornar ao texto)
(13) Hegel, Werke, Berlim, 1840, volume IX, p. 542. (retornar ao texto)
Inclusão | 26/09/2018 |
Última atualização | 24/07/2019 |