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Escrito: .....
Primeira Edição: trecho do texto "A religião do capital" publicado originalmente no jornal Le Socialiste de 27 de fevereiro de 1886.
Fonte: desconhecida.
Transcrição de: Alexandre Linares.
HTML de: José Braz para The Marxists Internet Archive.
Capital, pai nosso, que estais na terra, Deus Todo-Poderoso, que mudais o curso dos rios e ergueis montanhas, que reparais os continentes e unis as nações; criador das mercadorias e fonte de vida, que governais os reis e os servos, os patrões e os assalariados, que o vosso reino se estabeleça em toda a Terra.
Dai-nos muitos compradores para as nossas mercadorias, sejam elas más ou boas.
Dai-nos trabalhadores miseráveis que aceitem sem revolta todos os trabalhos e se contentem com o mais vil dos salários.
Dai-nos todos que acreditem nas nossas promessas.
Fazei com que os nossos devedores paguem integralmente as suas dívidas(1) e que os bancos descontem as nossas letras.
Fazei com que a prisão de Mazas(2) nunca se abra para nós e afastai para longe a falência.
Concedei-nos rendimentos perpétuos. Amém.
Creio no capital que governa a matéria e o espírito.
Creio no lucro, seu tão legítimo filho, e no crédito, o Espírito-Santo, que dele procede e com ele é adorado.
Creio no Ouro e na Prata, os quais, torturados na Casa da Moeda, fundidos nos cadinhos e martelados nas máquinas, reaparecem ao mundo como moeda legal; e que, depois de circularem por toda a terra, descem às caves do banco para ressuscitar como Papel-Moeda.
Creio no juro de cinco por cento, de quatro ou três por cento e na Cotação real dos valores.
Creio no Grande Livro da Dívida Pública, que protege o Capital dos riscos do Comércio, da Indústria e da Usura.
Creio na Propriedade individual, fruto do trabalho dos outros e na sua continuidade até ao fim dos séculos.
Creio na necessidade da Miséria, fonte dos assalariados e mãe do sobretrabalho.
Creio na Eternidade do Salariato, que livra o trabalhador das preocupações da propriedade.
Creio no prolongamento do dia de trabalho e na redução dos salários e também na falsificação dos produtos.
Creio no dogma sagrado: COMPRAR BARATO E VENDER CARO. E, do mesmo modo, creio nos princípios eternos da nossa Santa Igreja, a Economia política oficial. Amém.
Salvé, Miséria, que esmagais e dominais o trabalhador, que dilacerais as suas entranhas com a fome, atormentadora infatigável, que o condenais a vender a liberdade e a vida por uma côdea de pão. Vós que quebrais o espírito de revolta, que infligis no produtor, na sua mulher e nos seus filhos, os trabalhos forçados das prisões capitalistas. Salvé, Miséria, cheia de graça.
Virgem Santa, que engendrais o Lucro capitalista, deusa formidável que nos dais a classe aviltada dos assalariados, bendita sejas.
Mãe terna e fecunda do Sobretrabalho, que geras as rendas, os juros, os rendimentos, guardai-nos a nós e aos nossos.
Amém.
O Ouro, mercadoria miraculosa, que trazes em ti as outras mercadorias.
Ó Ouro mercadoria primogénita, em que se converte toda a mercadoria.
Ó Deus que tudo sabes medir.
Tu, a mais perfeita, a mais ideal materialização do Deus-Capital.
Tu, o mais nobre, o mais grandioso elemento da natureza.
Tu, que não conheces bolor, nem caruncho, nem ferrugem.
Ó Ouro, mercadoria inalterável, flor resplandecente, raio brilhante, sol reluzente. Metal sempre virgem, que, arrancado às entranhas da terra, antiga mãe das coisas, de novo te escondes, longe das luzes, nos cofres-fortes dos usurários e nas caves dos Bancos e que, do fundo dos esconderijos onde te amontoas, transmites ao papel vil e miserável a tua força que ele multiplica.
Ó Ouro inerte que removes o universo, diante da tua esplendorosa majestade os séculos ajoelham-se e adoram-te humildemente.
Concede a tua graça divina aos fiéis que te imploram e que, para te possuírem, sacrificam a honra e a virtude, a estima dos homens, o amor da mulher que amam dos filhos da carne, e que arrastam o desprezo por si próprios.
Ó Ouro, senhor soberano, sempre invencível, eternamente vitorioso, escuta as nossas preces.
Construtor de cidades e destruidor de impérios.
Estrela polar da moral.
Tu, que pesas as consciências.
Tu, que ditas as leis às nações e que fazes curvar sob o seu jugo os Papas e os Imperadores, escuta as nossas preces.
Tu, que ensinas o sábio a falsificar a ciência, que persuades a mãe a vender a virgindade da filha e que obrigas o homem livre a aceitar a escravatura na fábrica, escuta as nossas preces.
Tu, que produzes flores e frutos desconhecidos da natureza.
Que semeias os vícios e as virtudes.
Que engendras as artes e o luxo, escuta as nossas preces.
Tu, que prolongas os anos inúteis do ocioso e abrevias os dias do trabalhador, escuta as nossas preces.
Tu, que sorris ao capitalista no seu berço e que açoitas o proletário no seio da sua mãe, escuta as nossas preces.
Ó Ouro, viajante infalível, que gozas com as fraudes e as intrujices, atende as nossas súplicas.
Intérprete de todas as línguas.
Medianeiro subtil.
Sedutor irresistível.
Padrão dos homens e das coisas, atende as nossas súplicas. Mensageiro da paz e fautor da discórdia.
Distribuidor do descanso e do sobretrabalho.
Auxiliar da virtude e da corrupção, atende as nossas súplicas.
Deus da persuasão, tu, que fazes ouvir os surdos e que soltas a língua aos mudos, atende as nossas súplicas.
Ó Ouro, maldito e invocado por inumeráveis preces, venerado pelos capitalistas e amado pelas cortesãs, atende as súplicas.
Distribuidor do bem e do mal.
Desgraça e alegria dos homens.
Cura das doenças e bálsamo das dores, atende as nossas súplicas.
Tu, que seduzes o mundo e pervertes a razão humana.
Tu, que embelezas as fealdades e enfeitas as desgraças.
Pacificador universal, tu, que rendes homenagem à vergonha e à desonra, que tornas respeitáveis o roubo e a prostituição, atende as nossas súplicas.
Tu, que cobres a cobardia com as glórias devidas à coragem.
Que concedes à fealdade as homenagens devidas à beleza.
Que doas à decrepitude os amores devidos à juventude.
Mágico do mal, atende as nossas súplicas.
Demónio que desencadeias a morte e a loucura, atende as nossas súplicas.
Chama que alumia os caminhos da vida.
Guia, protector e salvação dos capitalistas, atende as nossas súplicas.
Ó Ouro, rei da glória, Sol da justiça.
Ó Ouro, força e alegria da vida. Ó Ouro, ilustre vem a nós.
Espelho dos prazeres. Tu, que dás aos que nada fazem os frutos do trabalho, vem a nós Tu, que enches os celeiros e as pipas dos que não ceifam o trigo nem podam as vinhas, vem a nós.
Tu, que alimentas de carne e peixe os que não guardam os rebanhos nem afrontam as tempestades do mar, vem a nós.
Tu, a força, a ciência e a inteligência do capitalista, vem a nós.
Tu, a virtude e a glória, a beleza e a honra do capitalista, vem a nós.
Oh! Vem a nós Ouro Sedutor, esperança suprema, começo e fim de toda acção, de todo o pensamento, de todo o sentimento capitalista.
Amém.
Notas:
(1) O "Pai-Nosso" dos Cristãos, redigido por mendigos e vagabundos para pobres diabos cheios de dívidas, pedia a Deus o perdão dessas dívidas: "demite nobis debita nostra" diz o texto latino. Mas quando proprietários e usurários se converteram ao cristianismo, os padres da igreja traíram o texto latino e traduziram descaradamente "debita" por pecados, ofensas. Tertuliano, doutor da igreja e rico proprietário, que tinha sem dúvida um grande número de devedores, escreveu uma dissertação sobre a Oração Dominical e defendeu que era preciso entender a palavra "dívidas" unicamente no sentido de pecados, as únicas dívidas que os cristãos absolvem. A religião do capital, em progresso sobre a religião católica, viria a exigir o pagamento integral das dívidas: o crédito é a alma das transações capitalistas. (retornar ao texto)
(2) Prisão inaugurada em 1850, no local do boulevard Diderot. Foi a primeira concebida segundo o modelo celular. O banqueiro Mirés, símbolo da especulação do Segundo Império, foi aí encarcerado em 1861. Viria a ser destruída em 1898. (retornar ao texto)
(3) Este capítulo vem reproduzido no Dicionário Socialista, de Compère- Morel, no artigo 'Ouro'. (retornar ao texto)
Inclusão | 17/01/2005 |
Alteração | 08/03/2009 |