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O que começa a manifestar-se no debate crítico do valor sobre a abstracção trabalho e é também tematizado por Postone é o problema do real apriori na constituição social. Ou melhor dizendo: o trabalho abstracto é um conceito da produção ou apenas da circulação, o ponto de partida ou apenas um ponto de passagem? Temos de retomar aqui com mais pormenor este problema já esboçado acima, da redução à circulação do conceito de trabalho abstracto no marxismo tradicional, a fim de analisar as suas implicações. No fundo é estranho que este problema não tenha ocorrido ao marxismo do movimento operário clássico, o que pode ser atribuído no essencial à sua função de ideologia da modernização. O trabalho abstracto converte-se assim por um lado numa definição positivista e irreflectida (no socialismo real, positivada para "uso doméstico" como em Günter Mittag e Cia.). Por outro lado, é tratado implicitamente como conceito da circulação, o que, como foi assinalado, se torna explícito nos teóricos ocidentais reflectidos como Sohn-Rethel, no conceito de trabalho abstracto como "abstracção da troca", apenas para além da esfera da produção. O mesmo acontece evidentemente também em Dieter Wolf: "Apenas na troca os vários trabalhos são relacionados uns com os outros como trabalho humano abstracto de modo que esse se torne trabalho na forma historicamente específica" (Dieter Wolf, Der dialektische Widerspruch im Kapital. [A Contradição Dialéctica no Capital], ibidem, p. 79).
Tal corresponde evidentemente por completo à subdivisão do processo de reprodução capitalista em uma esfera ontológica-transhistórica do trabalho concreto, do processo de produção material, por um lado, e em uma esfera especificamente capitalista da troca, ou do mercado, da regulação "anárquica" do mercado, por outro, onde se pretende "libertar" a ontologizada esfera da produção da esfera da circulação especificamente capitalista ("libertação do trabalho"). Paradoxalmente, "o trabalho" como "trabalho sob a sua forma historicamente específica", "converte-se" assim não no próprio trabalho, e por isso, também não em dispêndio efectivo de força de trabalho no processo de produção real, mas apenas no seu além social, como processo de troca ou acto de mercado fora do trabalho, quando já nem sequer se trata de trabalho activo, mas apenas do seu reflexo fetichista nos produtos como mercadorias.
Postone quebrou este padrão ao retirar o trabalho abstracto explicitamente da sua mera determinação na circulação e assim desontologizou a reprodução capitalista como um todo. Como se pode compreender sem dificuldade, semelhante princípio não poderia nascer apenas do contexto de um esforço de análise crítica da história da teoria marxista, mas teve igualmente como campo de referência o contexto do debate socio-ecológico dos anos oitenta. Nessa altura a destruição dos pressupostos naturais da vida pela "externalização dos custos" da economia empresarial estava no primeiro plano do debate e estavam em voga palavras de ordem como "Trabalhar de outro modo, viver de outro modo". Esse debate ainda permanecia totalmente irreflectido com respeito à determinação da forma social pelo trabalho abstracto e pela lógica do valor; Postone foi o primeiro a querer fazer valer nesta discussão um desenvolvimento ulterior da teoria de Marx transformado pela crítica do trabalho e do valor. Esta formulação do problema é hoje mais actual e premente do que nunca.
Se o marxismo tradicional sempre derivou de um modo reduzido a dimensão social do processo real de produção capitalista, o carácter de sujeição social da esfera funcional da economia empresarial, da determinação jurídica da propriedade apenas entendida de um modo superficial e conforme à vontade subjectiva (os meios de produção não "pertencem" aos produtores), e não da essência da própria lógica de produção concreto-abstracta como processo de valorização, o que corresponde à sua positivação e ontologização da esfera da produção pretensamente apenas "concreta", ele teve, por conseguinte, ou de escamotear por completo o carácter ecologicamente destrutivo do processo de produção capitalista (como aconteceu com alguns ideólogos do socialismo real na apologia da economia empresarial "socialista" igualmente destrutiva para os pressupostos naturais da vida), ou de reduzir este problema precisamente da mesma maneira à questão jurídica da propriedade na acepção tradicional.
A ideia no fundo óbvia de tirar proveito do conceito de Marx de trabalho abstracto, no sentido de uma crítica socio-ecológica do processo de produção capitalista mesmo no que diz respeito à sua "lógica de produção" material, ficou assim bloqueada. O marxismo, com a sua fixação tradicional na circulação (anarquia do mercado), na distribuição (luta pela distribuição na forma do dinheiro), e com isso na dimensão politico-jurídica entendida de modo superficial (relações de propriedade, intervenções do estado) teve, por isso, de passar ao lado da problemática socio-ecológica, que tinha ganho actualidade no seio da sociedade, enquanto o movimento socio-ecológico, por seu lado, permaneceu sem conceitos e concretista, ou seja, incapaz de uma crítica da "substância do capital"; o que apenas pôde agravar-se em vez de ser suplantado pelo facto de os marxistas terem falhado o tema.
O ponto decisivo consiste em saber se a abstracção trabalho ou abstracção real pode ser pensada consequentemente como lógica da produção, ou se permanece reduzida à circulação. A isso equivale a questão da prioridade do trabalho abstracto. Será que ele constitui o apriori da reprodução capitalista como totalidade, sendo assim a sua validade estabelecida já no próprio processo de produção "concreto", o será que se trata apenas de uma "abstracção da troca" secundária? O marxismo tradicional na maior parte dos casos admitiu implicitamente que este último era o caso, uma vez que apenas era capaz de pensar a forma capitalista da produção industrial de modo muito superficial e a lógica da abstracção como força destrutiva totalitária ainda não estava historicamente amadurecida; e onde a formulação foi explicitada, como em Sohn-Rethel, não passou de uma posição definidora sem referência discursiva.
O trabalho abstracto como apriori social ou apenas como "abstracção da troca" e, com isso, produto secundário da circulação, sendo que esta alternativa é idêntica àquela que inquire se o valor das mercadorias é "produzido" no processo da sua produção, ou se "surge" apenas na esfera da circulação. É que o trabalho abstracto como substância do capital afinal não é outra coisa senão a "substância formadora do valor", ou seja, aquilo que constitui o valor. À primeira vista, o problema parece desconcertante. Porque é evidente que o valor é produzido pelo trabalho, ou não será assim? Não é este o credo solene do marxismo do movimento operário, o seu "ponto de vista do trabalho", a sua glorificação do proletariado "criador de valor"? A ironia da questão é que o marxismo tradicional se vira de certo modo de pernas para o ar no seu próprio "ponto de vista", uma vez que, embora afirme a "classe criadora de valor" como sendo a produtiva, reduz ao mesmo tempo a abstracção do valor à esfera da circulação.
Por um lado pretende-se que a produção seja determinada apenas pelo "trabalho concreto", e com isso pela produção de "valores de uso", enquanto o processo de abstracção supostamente apenas é efectuado secundáriamente na esfera da circulação; por outro lado, fala-se de um modo absolutamente positivo da "produção" do valor pelo "trabalho". Por um lado temos, portanto, o orgulho dos produtores no sentido de uma criação de valor de uso supostamente superior ao reles valor de troca e a que apenas exteriormente se teria sobreposto a lógica do valor capitalista (no sentido da definição jurídica da propriedade entendida de um modo reduzido); por outro lado, é o mesmo orgulho dos produtores no sentido da própria "criação de valor", onde é logo a generalidade abstracta capitalista que figura como a "dignidade" do trabalho. É significativo que o marxismo nem tenha dado por esta sua própria contradição flagrante. Ao movimentar-se em tal contradição, assim se pode dizer, este pensamento reflecte a totalidade ou unidade negativa do trabalho abstracto e concreto, mas de um modo completamente inconsciente e sem uma concepção crítica dessa totalidade.
Entretanto o problema amadureceu de tal modo, tanto em termos objectivos, no desenvolvimento histórico das forças destrutivas do capitalismo, como em termos discursivos, pela formulação do princípio da crítica do valor, que já tem de ser formulado explicitamente mesmo pela auto-apologética do marxismo tradicional. Assim, por exemplo, o politólogo de Berlim Michael Heinrich, que preconiza uma espécie de mistura de teoria do valor feita de posições meio marxistas tradicionais e meio pós-modernas, intitula o capítulo dedicado à "fantasmática objectividade" da forma da mercadoria, na sua recém-publicada introdução à crítica da economia política, expressamente com a questão: "Teoria da produção ou teoria da circulação do valor?" (Michael Heinrich, Kritik der politischen Ökonomie. Eine Einführung [Crítica da Economia Política. Uma Introdução], Estugarda 2004, p. 51). E evidentemente decide-se pela teoria da circulação: "Assim sendo, é apenas a troca que realiza a abstracção que está na base do trabalho abstracto... As mercadorias não possuem objectividade do valor como uma objectivação de trabalho concreto, mas como uma objectivação de trabalho abstracto. Mas se, como acabamos de esboçar, o trabalho abstracto é uma relação de validade social apenas existente na troca (trabalho despendido a título privativo é considerado como trabalho abstracto, criador de valor), então também a objectividade do valor das mercadorias só existe na troca" (Heinrich, ibidem, p. 48, 51).
Para Heinrich, portanto, em absoluta sintonia com o marxismo tradicional, o trabalho abstracto não é uma relação de produção, mas apenas uma relação secundária de circulação, ou "relação de validade" neste sentido, que implica que a actividade produtiva real e propriamente dita no capitalismo é "apenas concreta", e que a "relação de produção" enquanto capitalista é unicamente determinada pela questão da propriedade jurídica estabelecida de uma forma puramente exterior. Perante a situação avançada do problema, Heinrich nem sequer derruba a barra, mas salta a uma distância segura abaixo dela. Na sua delimitação do princípio da crítica do valor, ele orgulha-se de representar o Marx pretensamente "autêntico" e "inteiro", contrariamente à historicização de um "duplo Marx" pela crítica do valor; mas precisamente neste ponto é o próprio Marx autêntico quem desmente Heinrich.
Para uma argumentação como a de Heinrich, o valor ou a objectividade do valor é idêntico ao valor de troca, isto é, relacionamento mútuo das mercadorias na relação entre "forma do valor relativa" e "forma equivalente", sendo que esta última "representa" o valor de troca da primeira na sua forma natural, até à constituição do dinheiro como a "forma equivalente geral" (a "mercadoria à parte" que assume essa forma de representação para todas as outras mercadorias). Mas se o valor, a objectividade do valor ou a "forma valor" é idêntico ao valor de troca, nesse caso o valor realmente é apenas constituído na circulação, como "forma do valor" no sentido da relação mútua de mercadorias. Neste caso o valor não "é" outra coisa senão essa relação, e uma mercadoria única não pode existir como tal sozinha — os produtos no fim do processo de produção, por exemplo no armazém da fábrica, ainda não seriam mercadorias no sentido da forma do valor, mas primeiro meros bens de uso, que apenas pela venda no mercado podem afinal assumir a forma do valor e com ela a forma da mercadoria. Heinrich di-lo de modo bem explícito: "A objectividade do valor nem sequer é uma qualidade que uma coisa possa possuir isoladamente, por si só. A substância do valor que está na base desta objectividade não chega às mercadorias a título individual, mas apenas em comum e na troca" (Heinrich, ibidem, p. 51).
Ora, esta não é nem por sombras a argumentação de Marx. Já não o é dum ponto de vista puramente lógico ou "metódico", visto que nesse caso a determinação da essência "valor" seria idêntica à forma de aparência "valor de troca", ou seja, a essência e a aparência seriam imediatamente coincidentes (o que é, de resto, típico do pensamento pós-moderno, que precisamente por isso passa sistematicamente a milhas da problemática da constituição socio-histórica). Marx, pelo contrário, estabelece a diferença entre a essência e a aparência, na qual ele vê fundamentada, antes de mais, a necessidade da reflexão teórica: "... toda a ciência seria supérflua se a forma de aparência e a essência das coisas fossem imediatamente coincidentes" (Karl Marx, Das Kapital [O Capital], vol. III, Berlim 1965, MEW 25, 825). Por isso, Marx volta sempre a fazer referência à diferença decisiva "entre todas as formas de aparência e o seu pano de fundo oculto. As primeiras reproduzem-se de modo imediatamente espontâneo, como formas do pensamento usuais, o outro tem de ser primeiro descoberto pela ciência" (O Capital, vol. I, MEW 23, p. 564).
Como é perfeitamente óbvio, Heinrich, ao fazer coincidir imediatamente a essência e a aparência, o valor ou objectividade do valor e o valor de troca, satisfaz-se com o que se "reproduz espontaneamente", com as "formas do pensamento usuais". Fica colado à forma de aparência e perde de vista o seu "pano de fundo oculto", e assim neste ponto de certo modo se revela publicamente como um economista vulgar marxista. Marx, pelo contrário, reflecte de modo perfeitamente claro, no que diz respeito ao trabalho abstracto e ao valor, a diferença em relação à forma de aparência do valor de troca. Partindo primeiro deste último, ele demonstra precisamente a impossibilidade de explicar a forma de aparência por si mesma: "O valor de troca parece, por isso, algo de fortuito e puramente relativo, um valor de troca interior, imanente à mercadoria... ou seja, uma contradictio in adjecto" (MEW 23, p. 51).
Na equiparação das diversas mercadorias existentes no mercado, porém, está implícita a sua substância comum, isto é, algo de comum que seja inerente a ambas e assim a cada uma por si, e que já tem de existir antes de serem colocadas em relação umas com as outras: "Qual é o significado desta equação? Que algo de comum e da mesma dimensão existe em duas coisas diferentes... Assim, ambas são iguais a uma terceira, que em si e por si não é nem uma nem outra. Cada uma das duas, na medida em que possua valor de troca, terá de poder ser reduzida a essa terceira" (MEW 23, p. 51). Por isso, as mercadorias como objectividades do valor "são", já antes da troca, "gelatinas" do "dispêndio de força de trabalho humano sem olhar à forma do seu dispêndio. Essas coisas já apenas representam que na sua produção foi despendida força de trabalho humano, acumulado trabalho humano. Como cristais desta substância social que lhes é comum, são valores — valores de mercadoria" (ibidem, 52). São-no, portanto, já como valores, não tão-só como valores de troca, mas já como objectos e resultados da produção, não apenas da circulação. Por isso, o valor e o valor de troca não são imediatamente idênticos; o valor é a determinação da essência, o valor de troca, a sua forma de aparência: "O elemento comum que se apresenta na relação de troca ou no valor de troca da mercadoria é portanto o seu valor. A continuação do inquérito trar-nos-á de volta ao valor de troca, como expressão ou forma de aparência necessária do valor, o qual no entanto primeiro tem de ser examinado independentemente desta forma" (ibidem, 53).
Precisamente isso, a saber, examinar primeiro a "forma valor" independentemente da sua "forma de aparência valor de troca", é tão impossível a Michael Heinrich como a todo o marxismo tradicional e a toda a economia vulgar burguesa. Todos eles consideram o valor apenas como valor de troca, apenas como um fenómeno que ocorre na relação mútua de mercadorias diversas. Marx, pelo contrário, diz expressamente que semelhante consideração é reduzida e verdadeiramente errada: "Se, no intróito do presente capítulo, se disse da maneira usual: a mercadoria é valor de uso e valor de troca, tal foi, rigorosamente falando, errado. A mercadoria é valor de uso ou objecto de uso e ‘valor’. Ela apresenta-se como o duplicado que ela é, mal o seu valor possua uma forma de aparência própria diferente da forma natural, a forma de valor de troca, e ela nunca possui esta forma quando observada isoladamente, mas sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria diferente. Mas, uma vez que se saiba isso, o referido modo de falar não traz nenhum prejuízo, mas serve de atalho" (MEW 23, p. 75).
A mercadoria em si, também já a título individual, "é", portanto, objectividade de uso e objectividade de valor; esta última, porém, apenas "aparece" ("se apresenta") na relação de troca. Mas, para que algo possa aparecer ou apresentar-se, tem de existir em si. Por isso, Marx ainda remata reforçando: "A contradição interna envolvida na mercadoria, entre valor de uso e valor, é portanto representada por uma contradição externa, isto é, pela relação entre duas mercadorias" (MEW 23, p. 75). Cada mercadoria individual já contém em si a contradição interna entre o valor de uso e o valor, mas esta apenas pode ser "representada" pela contradição externa da relação entre a forma do valor relativa e a forma equivalente, na relação de troca. Em Heinrich, pelo contrário, a contradição interna nem sequer existe, subsistindo apenas a externa; ele confunde a "representação" da coisa com a própria coisa, a essência com a forma de aparência. Assim sendo, não sabe ou não quer saber o que Marx pressupõe de conhecimentos para que o "modo de falar" do valor de troca "não (traga) nenhum prejuízo"; e é por isso que em Heinrich não deixa de trazer prejuízo, nomeadamente o da banalização da análise conceptual de Marx.
O valor é a objectividade social da mercadoria, também da mercadoria individual, da mercadoria antes e independentemente da relação de troca secundária, na qual, sob condições capitalistas, o fenómeno do valor de troca na forma equivalente geral do dinheiro é idêntico à realização da mais-valia, isto é, ao regresso do capital à sua forma de dinheiro quantitativamente acrescida. O valor e a mais-valia, porém, já são determinações da essência da mercadoria como objectividade do valor antes desta "realização" (na medida em que a mercadoria está desde sempre determinada como a forma específica da riqueza das sociedades capitalistas), realidade que em nada se altera quando essa realização não ocorre — o carácter de valor da mercadoria, nesse caso, manifesta-se em que seja escusadamente tratada como lixo em vez de consumida, o que só é possível precisamente pelo facto de a sua essência social consistir a priori na objectividade do valor, e não na objectividade da necessidade.
A mercadoria individual é objectividade do valor, não no sentido quantitativo contabilizável isoladamente, que — como se pretende demonstrar adiante — apenas é determinado na média social, mas em sentido qualitativo, como coisa social individual, como coisa de valor. Esta não é uma determinação jurídica, política ou de outra dominação externa (a relação jurídica, interpretada erroneamente como relação de vontades apenas subjectivas, no entendimento do marxismo tradicional, só pode aparecer reduzidamente como exterior), mas a determinação da essência interna da própria mercadoria, quer chegue à troca ou não. Precisamente por isso a objectividade da mercadoria é o fantasmático, o oculto, o que não é imediatamente visível no corpo da mercadoria, como Marx deixa claro logo no início da sua análise da forma do valor: "A objectividade do valor das mercadorias distingue-se de Mrs. Quickly pelo facto de não se saber onde apanhá-la. Exactamente ao contrário da sensivelmente grosseira objectividade dos corpos das mercadorias, nem um átomo de matéria natural integra a objectividade do seu valor. Por isso, podemos olhar para uma mercadoria individual do ângulo que quisermos, que ela continua a não ser apreensível como coisa de valor. Mas se nos recordarmos de que as mercadorias só possuem objectividade de valor na medida em que são expressão da mesma unidade social (o trabalho humano), de que a objectividade do seu valor é puramente social, também vai de si que ele apenas possa aparecer na relação social de mercadoria para mercadoria" (MEW 23, p. 62).
A mercadoria individual é qualitativamente na sua essência uma coisa de valor, mas como tal "não é palpável" em termos sensíveis. Ao reduzir o problema da objectividade do valor, à laia da economia vulgar, à "palpabilidade" aparente na "relação social de uma mercadoria para com outra", Heinrich anda à volta do carácter fantasmático da objectividade da mercadoria, refugiando-se na plausibilidade aparente da esfera da circulação. É um facto que ele pressente que tal abre uma brecha na sua argumentação, nomeadamente no que se refere à produção, e neste aspecto ele tenta fugir ao assunto como um paralítico, depois de fazer uma breve referência a que segundo Marx o carácter de valor das coisas "já é relevante na sua produção". Heinrich interpreta este facto da seguinte maneira: "O facto de o valor ‘ser relevante’, de o valor futuro ser aquilatado pelos produtores, no entanto, é diferente de dizer que o valor já existe" (Heinrich, ibidem, 53 s.). Com isso, porém, o valor, a objectividade do valor, é estabelecido como algo completamente exterior à produção, como o pensamento meramente subjectivo de algo de "futuro" que se supõe apenas ocorrer na esfera da circulação.
O Marx "autêntico", por sua vez, diz precisamente o contrário. Ele divide a sua análise do processo de produção em dois subcapítulos, nomeadamente o processo de produção como processo de trabalho (MEW 23, p. 192) e como processo de valorização (MEW 23, p. 200). Na transição para este último, diz: "Com efeito, como aqui se trata da produção de mercadorias, até agora evidentemente apenas observámos um lado do processo. Tal como a própria mercadoria é a unidade entre valor de uso e valor, o seu processo de produção deve ser a unidade entre os processos de trabalho e de constituição de valor" (MEW 23, p. 201). Longe de situar a objectividade do valor apenas para lá do processo de produção, na sua forma de aparência da esfera da circulação, Marx entende o próprio processo de produção como um processo de constituição de valor. O que ainda é objecto de uma referência explícita em outro trecho: "Todo este percurso, a transformação do seu (do capitalista, R.K.) dinheiro em capital, ocorre e não ocorre na esfera da circulação. Através da mediação da circulação, uma vez que depende da compra da força de trabalho no mercado das mercadorias. Não na circulação, uma vez que esta é um mero prelúdio do processo de valorização, que se desenrola na esfera da produção" (MEW 23, p. 209). Na circulação, a constituição de valor apenas se processa na medida em que a circulação cumpre um papel "mediador", através da compra da mercadoria força de trabalho no mercado de trabalho. A relação entre produção e circulação afinal é cruzada; a qualquer produção precedem actos de circulação e a qualquer circulação precedem actos de produção. A constituição do valor como tal, porém, claramente não se processa na circulação, mas na esfera da produção. O processo de produção é um processo de constituição de valor, e no caso do capitalismo até o é de um modo essencial. Que a sua "validade" quantitativa apenas se realize na média de todo o processo social de produção e circulação (realização) não altera em nada esse facto.
Com esta definição da mercadoria individual já como objectividade do valor e do processo de produção como processo de constituição do valor também não estamos perante uma chamada "teoria do valor pré-monetária" (um conceito forjado por Hans-Georg Backhaus no debate do conteúdo conceptual da análise da forma do valor de Marx), ou seja, a presunção de uma relação de valor anterior à relação do dinheiro e independente desta em sentido histórico. Como é sabido, Marx começa explicitamente com o conceito de mercadoria como a forma de riqueza nas sociedades capitalistas modernas — as suas deduções são essencialmente lógicas e não históricas. Por isso o dinheiro sempre já está pressuposto, não só como equivalente geral, mas como forma do capital, como fim-em-si processante e como forma de realização da mais-valia. Trata-se de explicar isto, já pressuposto, em passos dedutivos lógicos; não de deduzir a génese histórica do dinheiro de uma relação de valor pré-monetária.
Tal é precisamente o pressuposto do capital, ou seja, da forma do dinheiro reacoplada a si mesma como processo de valorização, que faz do processo de produção já um processo de constituição de valor, e do produto individual como mercadoria já objectividade do valor; fora da forma de reprodução capitalista e portanto da forma do dinheiro já plenamente desenvolvida tal não aconteceria de modo nenhum. A mercadoria individual já é a priori objectividade do valor, só porque a produção é desde logo um processo de valorização, visando unicamente a realização da mais-valia incorporada. Tal como o Homem socializado no capitalismo já é sempre a priori um sujeito do dinheiro, independentemente de em dado momento estar de facto a puxar pela carteira ou por um cheque, a mercadoria produzida de modo capitalista já é sempre objectividade do valor, independentemente de em um dado momento estar de facto a ser vendida no mercado.
Heinrich não pode portanto invocar Marx de modo nenhum. Porém, o que está aqui em causa não é a letra de uma ortodoxia, mas precisamente a coisa em si. E aqui há que dar razão a Marx, em detrimento de Heinrich: o valor é produzido, é uma relação de produção e não uma mera "relação de validade" na circulação (ainda veremos na segunda parte deste estudo que este aspecto desempenha um papel decisivo na determinação do trabalho abstracto como relação quantitativa, e por isso na teoria da crise).
Mas, se o valor é regularmente produzido, então a mercadoria já antes do seu ingresso no mercado, isto é, na circulação, é uma "objectividade do valor", ou seja, uma "objectividade fantasmática", enquanto não "palpável" como tal na sua forma sensível. No entanto, para podermos compreender o valor em geral, temos de o determinar precisamente sob esta forma fantasmática, que não é imediatamente palpável, e não apenas na forma de aparência do valor de troca.
Eu já tinha tematizado este problema num ensaio de 1987 (Robert Kurz, Abstrakte Arbeit und Sozialismus [Trabalho abstracto e socialismo], in: Marxistische Kritik 4), como "Os dois níveis do conceito de forma do valor" (ibidem, p. 62), tendo descrito o valor de troca, que aparece na relação entre duas mercadorias, ou seja, na relação entre a forma do valor relativa e a forma equivalente, como "forma de uma forma": a forma social em si é a forma do valor no sentido da objectividade do valor da mercadoria individual, cujo valor foi "produzido" na esfera da produção. Esta forma essencial, que não é "palpável" na mercadoria individual, a "forma valor", "aparece" na forma secundária do valor de troca, e nessa medida como (aparente) "forma da forma" (da forma essencial "valor"). Ou seja, de acordo exactamente com a apresentação da questão em Marx, ainda que o problema não seja explícito em Marx, no sentido da confrontação com os neomarxistas com um toque pós-moderno como Heinrich; talvez por Marx não ter sido capaz de imaginar algo como um economista vulgar marxista.
Ora esta definição da "forma de uma forma" parece hoje totalmente incompreensível também a um marxista tradicional anticrítico do valor como Alexander Gallas: "... ‘forma de uma forma’?... Estes disparates pelos vistos não são um produto do desmazelo, mas sintoma de um problema de peculiaridade crítica" (Alexander Gallas, Marx als Monist? Versuch einer Wertkritik [Marx como monista? Ensaio de uma crítica da crítica do valor], trabalho de mestrado, Berlim 2003, p. 23). Tal falta de conceitos, que ainda por cima se arvora em anticrítica, remete para o facto de que, tanto para os marxistas tradicionais como para os neomarxistas (em especial para os tais com enriquecimentos pós-modernos), muito ao contrário de Marx, não existe diferença entre forma da essência e forma da aparência, entre valor e valor de troca; eles permanecem agarrados à superfície do conceito circulatório de valor de troca, uma vez que não querem entender o conceito de trabalho abstracto como apriori do processo de reprodução, mas apenas como uma "abstracção da troca" secundária.
O trabalho abstracto é precisamente um prius [antes], não apenas no sentido de, como momento do próprio processo de produção no sentido de um processo real de constituição de valor, ser anterior à abstracção da troca que aparece na circulação, ou seja, não apenas como prioridade de uma determinada esfera particular, da produção, face a uma outra esfera particular, da circulação. Pelo contrário, a determinação como apriori social do trabalho abstracto é uma determinação da totalidade (totalidade designa aqui a reprodução determinada pela forma capitalista como um todo em sentido mais restrito, que no entanto não é idêntico à reprodução total real, a qual também inclui sempre outros momentos dissociados [abgespaltene]). Isto significa que o trabalho abstracto se estende a todo o processo de reprodução capitalista, como força motriz da abstracção do valor. O que "aparece" no valor de troca da esfera da circulação é a pré-processsada objectividade do valor das mercadorias, em que se manifesta o trabalho abstracto, que define o próprio processo de produção. Trabalho abstracto e objectividade do valor não são mais que diversos estados de agregação da única e mesma abstracção real, em que se movem o processo de reprodução determinado pela forma capitalista e a respectiva história; dos quais o valor de troca é a forma de aparência quotidiana, aparentemente sem história.