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A duplicidade liberal apresenta o seu jogo do coelho e do ouriço com a emancipação, instrumentalizando a sua dupla mentira de "liberdade" e "bem-estar": Se se fala do alegado aumento material do bem-estar, face a surtos de pobreza que já não podem ser ignorados, então a "liberdade" burguesa é afirmada como um valor ético; se, em algum momento, os momentos repressivos e autodestrutivos da "escravidão livre" vierem à luz, então o alegado aumento do nível de vida é invocado como uma gratificação reconfortante. Ao mesmo tempo, a esfera pública oficial e as suas instituições não se esquivam a qualquer falsificação estatística, nem ao embelezamento ou óbvio retoque da pobreza da economia de mercado. Até as favelas são pintadas como "paisagens florescentes" se necessário, um pouco sujas talvez, mas cheias de vida feliz, tão belas e pitorescas. A este respeito, mesmo os clássicos do cinismo liberal são verdadeiros campeões mundiais na "mentira-verdade" de Orwell. Adam Smith, por exemplo, não hesita em afirmar, no meio da miséria do capitalismo pré-industrial e do início da industrialização:
“Na Grã-Bretanha, nos tempos em que vivemos, parece evidente que os salários do trabalho são superiores ao que é estritamente necessário para permitir ao trabalhador manter uma família […] A remuneração real do trabalho, ou seja, a quantidade real de bens necessários e confortos materiais que o salário pode assegurar ao trabalhador, tem aumentado, no decurso deste século, talvez em uma proporção ainda maior do que o preço dos salários em dinheiro […]” (Smith 1996/1776, 124ss.)
O leitor esfrega os olhos, pois algumas páginas antes o mesmo autor, em santa ira contra os tumultos "não naturais" e as associações dos assalariados, deixa-se levar pela seguinte afirmação:
“Entretanto, quer se trate de conchavos ofensivos, quer defensivos, todos são sempre alvo de comentário geral. No intuito de resolver com rapidez o impasse, os trabalhadores sempre têm o recurso ao mais ruidoso clamor, e às vezes à violência mais chocante e atroz. Desesperam-se agindo com a loucura e extravagância que caracterizam pessoas desesperadas que estão a morrer de fome […] (ibid., 119s.)
Aqui "obviamente" há uma contradição flagrante, que, no entanto, não perturba particularmente Smith nem os seus comentadores científicos, porque para eles parece mais uma vez "natural" que a manutenção supostamente suficiente e os maravilhosos aumentos salariais reais possam estar em harmonia com o "desespero das pessoas que estão a morrer de fome". Este problema é um pouco esclarecido quando se vê o que Smith entende por aumento do nível de vida:
“As batatas, por exemplo, hoje não custam, na maior parte do Reino Unido, a metade do preço que costumavam custar 30 ou 40 anos atrás. O mesmo pode-se dizer do nabo, da cenoura, do repolho [...] Os grandes aperfeiçoamentos introduzidos nas indústrias do linho e da lã garantem aos trabalhadores roupa mais barata e de melhor qualidade [...] O sabão, o sal, as velas, o couro e licores fermentados se tornaram bem mais caros [...] Todavia, a quantidade desses artigos que o trabalhador pobre é obrigado (!) a consumir é tão irrelevante, que o aumento de seu preço não compensa a diminuição no preço de tantas outras coisas. A queixa comum de que o supérfluo se estende até as camadas mais baixas do povo, e de que o trabalhador pobre actualmente não se contentará mais com a mesma comida, a mesma roupa e alojamento que o satisfazia em tempos anteriores, pode convencer-nos de que o aumento não foi somente no preço da mão-de-obra em dinheiro, mas também na sua remuneração real” (ibid., 128)
Batatas, nabos e serapilheiras suficientes como "aumento do bem-estar" (os tempos relativamente exuberantes do final da Idade Média já foram esquecidos há muito), sabão e sal, por outro lado, são quase incomportáveis, mas "não tão importantes" para os pobres (recordemos a declaração de Friedrich List sobre as condições alemãs décadas depois) — este quase admirável sangue frio liberal só é superado pelo facto de que Smith simplesmente toma as queixas descaradas dos "melhores ganhadores" sobre a crescente insatisfação do material humano como "prova" da exactidão da sua afirmação de crescente prosperidade. Inocentemente acrescenta que "em nenhuma parte da Inglaterra o salário chega a esse limite inferior ainda (!) compatível com nossa ideia de humanidade" (loc. cit., 64). É uma estranha consolação que os principais ideólogos históricos do liberalismo têm para a pobreza artificial criada sob as restrições capitalistas. Pois os empobrecidos actuais e futuros da economia de mercado devem desfrutar da "riqueza relativa" da sua pobreza, que supostamente até eleva a indigência sob condições capitalistas muito acima de todas as condições pré-capitalistas de existência — uma mentira e falsificação tão bem sucedida que gradualmente penetrou profundamente na moderna consciência de massas. Mandeville já está praticando essa argumentação bizarra nas dissertações sobre a sua Fábula das Abelhas:
“Cairia no ridículo o homem que encontrasse luxo no traje simples de uma pobre criatura que perambulasse com um vestido grosseiro, doado pela igreja a miseráveis, com uma camisa ordinária; e, no entanto, quantas pessoas, quantos diferentes ofícios, e quantas variedades de habilidades e ferramentas devem ser empregados para ser ter o mais ordinário tecido do Yorkshire?” (Mandeville, ob. cit., 176.)
Meio século depois, Adam Smith usa exactamente o mesmo argumento na Riqueza das Nações em sua celebração da divisão capitalista do trabalho (aparentemente até mesmo copiando de Mandeville sem citar a fonte) para dar aos pobres modernos essa consolação absurda:
“Observe-se a moradia do artesão ou diarista mais comum em um país civilizado e florescente, e se notará que é impossível calcular o número de pessoas que contribui com uma parcela — ainda que reduzida — de seu trabalho, para suprir as necessidades deste operário. O casaco de lã, por exemplo, que o trabalhador usa para agasalhar-se, por mais rude que seja é o produto do trabalho conjugado de uma grande multidão de trabalhadores. O pastor, o selecionador de lã, o cardador, o tintureiro, o fiandeiro, o tecelão, o pisoeiro, o confeccionador de roupas, além de muitos outros, todos eles precisam contribuir com suas profissões específicas para fabricar esse produto tão comum de uso diário” (Smith 1996/1776, 70).
A pobreza capitalista, portanto, deve consolar-se com o facto de até o abastecimento da sua pobreza ser ainda o produto daquela altamente complexa e admirável "bela máquina" que transformou todas as pessoas em rodas dentadas da sua engrenagem. E a fim de tornar este pensamento plausível, o Sr. Mandeville e o Sr. Smith novamente pintam carinhosamente na parede os supostos horrores das condições de vida pré-capitalistas e não-capitalistas. Mandeville, que já tinha usado a imagem dos antepassados "comedores de bolotas", refere-se novamente neste caso ao passado sombrio para tornar o "relativo luxo" da "grosseira bata dos pobres" palatável aos pobres modernos:
“Nas primeiras eras o homem sem dúvida alimentava-se de frutos da terra, sem qualquer preparação prévia, e repousava-se nu como os outros animais sobre o colo de sua mãe comum.” (Mandeville, ob. cit., 175)
Sem dúvida! Adam Smith, que, de acordo com os tempos, se refere aos "selvagens" africanos, que desde o século XVIII figuram na consciência da modernização europeia e dos seus protagonistas filosóficos como o "estágio mais baixo" de um desenvolvimento da humanidade linearmente concebido, cuja conclusão culminante é o capitalismo "natural", atinge o mesmo nível. Os "selvagens" africanos, oceânicos e americanos são assim equiparados com os tempos pré-históricos "selvagens" e não desenvolvidos, por assim dizer, como instrução visual viva (e, por sinal, também são tratados, com a mais elevada bênção filosófica, como os animais). Esses homens animais na cabeça de Adam Smith são agora também excelentemente adequados como medida de comparação, a fim de relativizar a pobreza capitalista:
“Talvez seja verdade que a diferença de necessidades de um príncipe europeu e de um camponês trabalhador e frugal nem sempre é muito maior do que a diferença que existe entre as necessidades deste último e as de muitos reis da África, que são senhores absolutos das vidas e das liberdades de 10 mil selvagens nus” (Smith, ibid., 15)
Foi má sorte de ideólogos como Mandeville e Smith quanto à sua credibilidade que, pelo menos alguns dos compatriotas ingleses seus contemporâneos pobres e humilhados tivessem sido colocados em posição de examinar, a partir da própria experiência, o constructo livremente inventado dos "selvagens nus" que deitam a cabeça na terra nua. Os marinheiros da armada e da frota mercantil, que, como ingleses "livres", eram tratados de acordo com os critérios da disciplina prisional e espancados à paulada pelos seus superiores, que recebiam frequentemente comida podre e eram considerados como a categoria mais miserável de "trabalhadores pobres", entraram muitas vezes bastante em contacto directo com os "selvagens" e as suas reais condições de vida, desde que ainda não tivessem sido destruídas pela escravidão colonialista.
A comparação que resultou foi bastante diferente da de Mandeville e Smith. E há um famoso incidente que indirectamente expôs os constructos dos ideólogos liberais como fraude. Foi o caso da "Revolta na Bounty", sem dúvida não o único evento deste tipo, mas de significado paradigmático. O fundo real, apresentado como uma mera história de aventura e como um livro infantil, parece pouco claro; mas surge mais claro nos documentos sobreviventes. Em 29 de abril de 1789, uma grande parte da tripulação do navio "Bounty" ("Recompensa") amotinou-se contra o Capitão Tenente William Bligh e seus oficiais, após quase dois anos de viagem nos Mares do Sul.
Bligh foi navegador a bordo do famoso explorador James Cook (1728-1779) em sua terceira grande expedição, durante a qual Cook foi morto por ilhéus. Quando assumiu o comando da "Bounty", ele foi considerado pelos padrões da frota inglesa como um "cão particularmente duro" que não dava nada à sua gente. Em romances sobre a "Bounty" e o seu destino, os intoleráveis abusos de Bligh são muitas vezes apresentados como o verdadeiro motivo da revolta. Mas a história de modo nenhum se resume a isso. O material documental sobre o motim foi traduzido para Alemão em 1791 e 1793, por Johann Reinhold Forster e seu filho Georg Forster, o conhecido filósofo iluminista alemão, que tinham participado na segunda viagem de James Cook em 1772-1775. Hermann Homann, o novo editor e revisor deste material, defende o Capitão Bligh: ele aparentemente "não era melhor nem pior que os comandantes dos navios naquela época" e não era de modo nenhum "desumano" (Homann 1973, 15s.). Em seu relatório autêntico, o próprio Capitão Bligh dá informações surpreendentes sobre os verdadeiros motivos do motim, que naquela época "causou alvoroço muito para além da Inglaterra e activas tomadas de posição a favor e contra" (loc. cit., 13):
"Ora questionemos o que poderia ter causado tal motim. Só posso responder com a suposição de que os amotinados no Taiti prometeram a si próprios uma vida mais feliz do que provavelmente teriam de esperar em Inglaterra. Isto e alguns laços com as mulheres do Taiti foram, na minha opinião, as principais causas do infeliz acontecimento. As mulheres taitianas têm boas formas, são gentis, alegres, sensíveis e habilidosas o suficiente para serem amadas e admiradas. A nobreza do Taiti tinha um grande afecto pela nossa gente e encorajou-a a ficar com eles, mesmo prometendo-lhes bens consideráveis na ilha. Sob tais circunstâncias, não surpreende que alguns marinheiros tenham sido seduzidos a instalar-se na ilha mais bonita do mundo, onde não precisavam de trabalhar (!) e onde o incentivo à libertinagem é maior do que se pode imaginar [...] Ocorreram deserções em vários navios que visitaram as Ilhas da Sociedade, mas sempre os comandantes conseguiram obter a rendição dos fugitivos junto dos chefes. Mas talvez tenha sido precisamente por saber que a deserção era insegura que a minha gente teve a ideia de apreender todo o navio, ainda que pequeno" (Bligh, citado por Homann, op. cit., 148s.).
O capitão Bligh, é claro, representa aqui o mundo burguês oficial do "trabalho" e o anátema capitalista contra os "excessos" do material humano que não se quer poupar para os fins do capital; mas, falando em causa própria, ele involuntariamente revela o conhecimento que tinham os amotinados e desertores de que mesmo entre os "selvagens" podiam esperar uma vida melhor do que na Inglaterra civilizada. Aparentemente, os simples marinheiros e oficiais subalternos (o líder dos amotinados, Fletcher Christian, de acordo com Bligh, vinha "de uma boa casa") achavam os "selvagens" apenas metade tão selvagens quanto as imposições do capitalismo e da marinha inglesa. Assim, a revolta na "Bounty" pode ser lida como um embaraço histórico para os ideólogos apologéticos do liberalismo.
E o que aconteceu à "Bounty"? Os amotinados levaram o navio capturado para o Taiti, onde não se sentiam seguros das garras do Estado britânico. Então levaram suas esposas locais e um número de homens taitianos aventureiros a bordo e vagaram algum tempo pelo Oceano Pacífico, antes de finalmente se estabelecerem na remota e pequena ilha de Pitcairn. Essa miniatura utópica levou à catástrofe, mas não económica: os marinheiros brancos, que acabavam de escapar dos seus próprios senhores, começaram a mostrar as piores maneiras de homem branco em relação aos "nativos". Houve assassínio e homicídio involuntário, embriaguez e loucura. Somente passados dez anos o último sobrevivente dos amotinados, John Adams, conseguiu formar com as dez mulheres e, entretanto, dezanove crianças de Pitcairn uma colónia viável, com a ajuda das suas ideias de uma "comunidade cristã". Nas décadas seguintes, as pessoas de Pitcairn foram ocasionalmente descobertas e esquecidas. O motim prescreveu. O capitão inglês Beechey, que desembarcou em Pitcairn em Dezembro de 1825, descreveu os "factos estranhos e emocionantes" que lá encontrou:
"Ele andou pela aldeia, que consistia de casas modestas, mas limpas, rodeadas de pandanos e coqueiros. A prosperidade parecia prevalecer entre os colonos, que tinham galinhas e porcos, campos de inhame, bananas e taro. O ilhéu, uma mistura de ingleses e polinésias, tinha um rosto amigável e agradável, e aos seus membros bem constituídos não faltava destreza nem força" (Homann, op. cit., 298).
Não, a aventura da "Bounty" e a colónia de Pitcairn não podem ser consideradas como uma pequena utopia bem sucedida. Cortada de todas as potencialidades sociais, nada mais poderia sair dela do que uma sofrível sobrevivência parada a meio caminho, com meios simples e favorecida pelo clima tropical. A revolta na "Bounty" não foi um paradigma positivo, mas um paradigma negativo. Não é a utopia da ilha que é aqui decisiva, mas a sentença aniquiladora sobre o capitalismo europeu: Mesmo a vida com economia de subsistência, pouco atraente em muitos aspectos, sob as condições do chamado "povo primitivo", era preferível ao inferno capitalista do trabalho e às estruturas panópticas da modernização; e só em comparação com as crianças raquíticas dos "trabalhadores pobres" europeus, as crianças de Pitcairn com seus "membros bem constituídos" poderiam ser consideradas relativamente felizes. Hoje, cerca de duzentos descendentes dos amotinados ainda vivem em Pitcairn uma vida provavelmente ainda muito modesta e monótona — e ainda assim (ou já de novo) deverão estar "relativamente melhor" do que muitas pessoas nas favelas de Londres, Nova Iorque, Moscovo ou Rio de Janeiro. Não foi só a verdadeira revolta na "Bounty" que alimentou a fantasia na sociedade capitalista em crescimento. A utopia da ilha foi procurada em toda a Europa por defensores e críticos do modelo de sociedade de mercado livre. E a este respeito, também, o "capitalismo marítimo" britânico forneceu os modelos. Dois verdadeiros "livros universais", familiares a todas as crianças até hoje, assumiram este tema. Já em 1719 Daniel Defoe (1660-1731) havia publicado o Robinson Crusoé; em 1727 foram publicadas as Viagens de Gulliver de Jonathan Swift (1667-1745). Como muitas vezes acontece com livros de grande poder paradigmático, essas duas narrativas também se tornaram familiares como leituras de aventura para jovens, ao mesmo tempo em que representam, por assim dizer, modelos históricos de reforma social e de crítica social.
É pouco conhecido que Defoe e Swift eram antípodas a este respeito. Defoe, vindo de uma família que pertencia à seita protestante dos "dissidentes", e ele próprio activo como comerciante (mas falido) de classe média, trouxe consigo os pré-requisitos ideais para a construção de uma visão burguesa do mundo. Em seu Robinson, que, como mais tarde a história da "Bounty", também remonta a um evento autêntico (as experiências do naufragado marinheiro escocês Alexander Selkirk), ele dá um esquema positivo da economia de mercado emergente: Através da "transformação interior de Crusoé, de marinheiro irreflectido e sem Deus para administrador piedoso da sua alma e humano missionário do selvagem" (Reisiger o. J., 562) Defoe desenha a imagem do homem branco racional e diligente, que sistematicamente cria um mundo confortável a partir do nada e, além disso, civiliza o colorido "nativo" chamado "Sexta-Feira" pelo comércio e pelo "trabalho" nos maravilhosos comportamentos burgueses. Não é por acaso que Rousseau fez de Robinson uma leitura obrigatória no seu Émile.
O que se pode dizer de outra personagem romanesca de Defoe, a "famosa Moll Flanders", aplica-se ainda mais a Robinson Crusoe: "O personagem principal de Defoe e a forma da sua narrativa reflectem [...] um dos desenvolvimentos mais importantes do século XVIII, o desenvolvimento de um indivíduo auto-responsável, que em seu pensamento e actuação se orienta pelo senso comum, a moralidade social vinculante para todos" (Fache 1979, 401s.). O que na ignorância democrático-burguesa é aqui entendido positivamente como apreciação do pensamento iluminista, no entanto, apenas se torna reconhecível à luz das reflexões posteriores de Kant e Bentham: O "senso comum" deve então ser decifrado como a figura pseudomoral da máquina capitalista mundial. Basicamente, a "Robinsonada" forneceu um modelo original da economia capitalista, ou seja, uma metáfora poderosa do indivíduo abstracto e da naturalização ideológica das relações sociais; mas não, como em Hobbes, no espírito de uma imagem macabra do Homem, mas numa primeira versão do optimismo do progresso e com uma pitada de preocupação burguesa, daquela desde então frequentemente usada máscara pequeno-burguesa para a cabeça de Górgona do liberalismo.
Em contraste, As Viagens de Gulliver eram uma fábula satírica, na qual Swift usou as fantásticas patranhas dos marinheiros sobre bizarras criaturas míticas em partes distantes do mundo, que desde as viagens dos descobrimentos circulavam como base de comparação para no fundo zombar da sociedade capitalista da modernização. Depois de o herói descrever as condições e mentalidades da sua pátria inglesa ao rei do gigantesco império de "Brobdingnag", por exemplo, ele comenta que a maioria dos "nativos ingleses" são provavelmente "o tipo mais prejudicial de verme pequeno e hediondo [...] que a natureza já pôs a rastejar sobre a superfície da Terra" (Swift 1991/1726,189). E, no reino dos cavalos falantes, os humanos são uma espécie de animais sujos, movidos por instintos associais, que caricaturam o motivo da maximização do lucro, amontoando "pedras brilhantes" em seus estábulos com excrementos. A este respeito, o Gulliver de Swift, como se diz na introdução de uma edição alemã recente, é um "anti-Robinson" consciente e, neste sentido, uma paródia das "virtudes do homem burguês" de Defoe.
A errante polémica de Swift é historicamente sem pátria, e muitos pensamentos pouco limpos próprios da época também entram na obra. No entanto, a visão pessimista que Swift tem do ser humano, ao contrário de Hobbes, visa precisamente o facto de que o ser humano merece ser chamado de cão se aceitar o capitalismo. Assim, o reitor da catedral de São Patrício em Dublin, caluniado de ateu, e em cuja lápide está gravada a orgulhosa palavra "indignação selvagem", deixou ao capitalismo "livre", além do Gulliver, outra marca que ainda atinge o alvo mais de 250 anos depois. Em 1729, quase simultaneamente com a publicação dos tratados de Mandeville sobre a Fábula das Abelhas, ele apresentou ao público burguês a sua memorável Modesta Proposta de tornar benéficas para a República as crianças filhas de pais pobres:
“É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola […] Penso que todos os Partidos Políticos estão de acordo que este número prodigioso de crianças […] na actual e deplorável situação desta república, é uma lástima enorme e suplementar […] Foi-me garantido pelos nossos comerciantes que um rapaz, ou uma rapariga, antes dos doze anos de idade não é mercadoria vendável. E, mesmo quando chegam a essa idade, não poderão vir a render no mercado mais do que três libras, ou três libras e meia coroa no máximo. Uma verba que não chega para dar compensação nem aos pais, nem ao reino, dado as despesas com a alimentação e com os farrapos que custam, pelo menos, quatro vezes aquele valor. Passarei agora, humildemente, a apresentar os meus próprios pensamentos os quais, segundo espero, não serão susceptíveis de merecer qualquer objecção. Foi-me garantido por um muito sábio americano do meu conhecimento, em Londres, que uma criança jovem e saudável, bem alimentada, com um ano de idade, é do mais delicioso, o alimento mais nutriente e completo — seja estufada, grelhada, assada, ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que poderá igualmente ser servida de fricassé ou num «ragout». Portanto ofereço humildemente à consideração pública que, das 120 mil crianças já computadas, se possam reservar vinte mil para criação. Desta parte, apenas um quarto deverá ser de machos — o que já é mais do que permitimos às ovelhas, ao gado bovino e ao suíno [..]. Deste modo, as restantes cem mil, com um ano de idade, poderiam ser oferecidas para serem vendidas às pessoas de qualidade e fortuna reino fora — advertindo sempre a mãe para que as deixe mamar à vontade no último mês a fim de as tornar rechonchudas e gordas, dignas de uma boa mesa. Uma criança dará duas doses numa festa de amigos; e se for a família a jantar sozinha, os quartos da frente, ou de trás, proporcionarão um prato razoável. Se temperada com um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará ainda bem conservada no quarto dia, especialmente no Inverno.[...] Concedo que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto, estará muito adequada aos senhorios — e dado que estes já devoraram a maior parte dos pais, poderão ter direito de preferência sobre os filhos” (Swift 2004/1729, 1ss.).
O ataque de Swift é dirigido directamente aos apologistas da imagem capitalista do ser humano, como Mandeville & Cª. E esta sátira amarga não está longe da realidade até hoje, porque cada "fazedor" capitalista, com a sua atenciosa respeitabilidade, tem mais crianças a pesar-lhe na consciência do que o rei Herodes, mesmo que ele mesmo não as mate e devore, mas o canibalístico devorar das crianças aconteça sempre apenas indiretamente e por meio dos efeitos da "bela máquina" sem sujeito.
A vista para o século XVIII é a vista para o inferno do nosso próprio futuro. Podemos deixar de ser "pessoas cães"? Esta questão da responsabilidade não pode ser eliminada com objectivações "científicas". Por mais que todos os participantes sejam sempre "filhos de seu tempo", eles também são actores desse tempo. Não há nada a desculpar. Os senhores Defoe, Mandeville, Smith, Kant, Bentham, etc. reagiram com suas ideias às objectivações já existentes da economia de mercado, mas, por sua vez, essas ideias também foram efectivamente incorporadas na posterior objectivação desse sistema prisional paranóico. A maioria dos mais ou menos famosos filósofos da modernização do Iluminismo (e também os representantes da grande Revolução Francesa) eram apenas "oposicionistas" às capas decrépitas da dominação, mas não à dominação como tal. Pelo contrário, estilizaram a base sem sujeito do novo sistema de dominação, a máquina mundial do capital, como um ídolo secular. E as suas ideias, o fundamento espiritual do liberalismo como ideologia dos ídolos do "trabalho abstracto" e da concorrência total, coagularam hoje numa forma geral de pensamento, jazendo como um pesadelo no cérebro humano. A sátira desesperada de Swift e, por outro lado, a revolta na "Bounty" mostram que este desenvolvimento não era de modo nenhum inevitável nem linearmente "progressista" desde o início, como o "materialismo histórico" dos marxistas gostaria de fazer crer.
Mas, acima de tudo, a ideologia capitalista da concorrência total não tem nada a ver com a alegada essência do ser humano. Desde tempos imemoriais, os indivíduos humanos na sua maioria nunca tiveram a ambição de ser "vencedores" em alguma competição louca, de acumular riquezas absurdas na forma abstracta do dinheiro ou de se aliviar numa sanita dourada. Se alguma coisa pode ser lida na história da modernização, então é o desejo profundamente sentido do ser humano, degradado a um material, para ser finalmente deixado em paz, para finalmente não mais ser exposto aos poderes cegos de estruturas alienadas, para finalmente não mais ser privado do descanso nem apressado pela dinâmica de um "desenvolvimento" autonomizado, para finalmente não mais ter de ver as diversas caras dos grandes senhores da máquina do mundo, e para não mais ter de ouvir o contínuo paleio dos seus pedagogos, instigadores e administradores de seres humanos.
Tradução de Boaventura Antunes