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Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
No século 19, quando a modernidade começou a refletir sobre si mesma, um de seus maiores profetas, ao lado de Karl Marx, foi o historiador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859). Ele previu não apenas o triunfo da democracia de mercado, mas também o advento histórico das duas superpotências, Estados Unidos e Rússia:
"Existem hoje na Terra dois grandes povos, que, de pontos de partida diversos, parecem encaminhar-se para o mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos. (...) Para alcançar seu objetivo, o americano conta com o interesse privado e deixa atuarem a força e a razão do indivíduo, sem dirigi-las. O russo concentra, de certa forma, todo o poder da sociedade num único homem. Para um, o estímulo é a liberdade; para o outro, a servidão. Seus pontos de partida são diversos, diversos são seus caminhos; e, no entanto, por um desígnio secreto da providência, cada qual parece fadado a guiar, um dia, o destino de sua metade da Terra".
Essa passagem célebre, datada do ano de 1835, prevê uma época que, hoje, já deixamos para trás. Com a ruptura histórica de 1989, aquela história profetizada por Tocqueville chegou ao fim. Para o observador superficial, a década passada sentenciou o fim somente de uma dessas superpotências: os Estados Unidos seguem radiantes como vencedores históricos, ao passo que a Rússia capitulou e retornou à classe de aluno, de parceiro mirim. Mas, sob a superfície, há muito amadureceu aquela identidade interna das duas potências mundiais pressentida por Tocqueville _identidade que determina, inclusive, seu destino comum.
Quanto mais os Estados Unidos tentam, como superpotência única, impingir ao mundo o seu próprio sistema e o seu arbítrio, mais eles assumem traços despóticos e burocráticos. Hoje em dia, para o grosso da população mundial, a liberdade de mercado e a mais dura servidão coincidem sob a égide solitária dos Estados Unidos. E, inversamente, a mudança de sistema na Rússia piorou de vez a situação das pessoas. A cada passo das reformas de mercado, a fim de aproximar-se do Ocidente, o caos político e econômico expande suas fronteiras.
O desmembramento da União Soviética na frágil Comunidade de Estados Independentes (CEI), com 13 unidades monetárias diversas, foi apenas o começo. Nos anos 90, uma série de guerras e conflitos civis abalaram todo o território da antiga superpotência. E o germe não tardou a se espalhar ao resto da federação russa: na guerra sangrenta contra a Tchetchênia, no Cáucaso, Boris Ieltsin, depositário das esperanças democráticas, revelou subitamente as feições de déspota asiático.
Este presidente, a quem chefes de governo ou de Estado ocidentais como Clinton, Kohl e Chirac chamam de "amigo do peito", parece cada vez mais o protagonista de um péssimo filme hollywoodiano sobre a derrocada da Roma antiga: a ordem de ataque ao Cáucaso foi comunicada à opinião pública pela televisão, por um Ieltsin balbuciante, empunhando um copo de champanhe; em entrevistas à imprensa no exterior, ele muitas vezes não sabe nem sequer onde se encontra.
O império espoliado pelos czares durante o século 18 e 19 se dissolveu. As populações, as culturas regionais e religiosas, nunca fundidas numa sociedade homogênea, e que a própria União Soviética só manteve unida superficialmente, com seu burocratismo grosseiro, se desfizeram em pequenos territórios mafiosos, nos quais passou a triunfar o direito do mais forte. E, como se não bastasse, a classe política embrutecida ainda cultiva a arrogância do poder. Isso vale tanto para Ieltsin quanto para os seus adversários do chamado Partido Comunista.
Na Rússia, o antigo conceito social e revolucionário do comunismo há muito degenerou em sinônimo de nostalgia populista, que suspira pela perdida grandeza imperial. Quer se trate de Boris Ieltsin ou do líder do Partido Comunista, Guennadi Ziuganov, do autoritário ex-general Alexander Lebed ou da figura obscura de Vladimir Jirinovski, cada vez mais a oligarquia de mercado, cuja origem está na velha nomenklatura, lança ameaças surdas e confusas, que só provam a sua total falta de perspectiva.
Há, sem dúvida, uma razão bastante palpável para tal arrogância: hoje, a Rússia é a máfia à frente da segunda maior potência atômica mundial, dotada de um arsenal gigantesco de mísseis intercontinentais e de sua própria base de lançamento na Sibéria. Esse portentoso legado militar e político, estrategicamente fundamental, da antiga União Soviética contrasta com uma economia catastrófica que, depois da transição para a economia de mercado, não só se acha em queda livre, mas também adota, desde então, a estrutura "clássica" de um país do Terceiro Mundo: enquanto os bens de consumo e os componentes da produção industrial, ou mesmo os alimentos, têm de ser importados, a exportação se restringe em grande parte a matérias-primas, sobretudo o petróleo e o gás natural, cujo controle é exercido pela enigmática empresa Gazprom, que detém o monopólio e constitui um centro de estruturas mafiosas — um Estado dentro do Estado.
Quase todas as empresas estão endividadas até o pescoço com seus fornecedores, sem ter como pagá-los. Em muitos ramos, o mercado foi substituído pela primitiva troca em espécie. Os trabalhadores são mandados para casa ou remunerados pelos seus ofícios com produtos naturais, de sutiãs a rolimãs, e não têm saída senão se desfazer dessas mercadorias no mercado negro. Boa parte da população do campo retornou a formas pré-modernas de subsistência familiar. Os atrasos no pagamento das miseráveis aposentadorias se prolongam meses a fio, a exemplo dos salários de professores, funcionários públicos e empregados das minas do Estado.
Multiplicam-se, por isso, os protestos sociais: os mineiros siberianos já bloquearam importantes linhas ferroviárias e foram, até agora, contentados com um misto de esmolas e ameaças. Ao mesmo tempo, a infra-estrutura é dilapidada, em razão do descaso do Estado e das oligarquias mafiosas: na Rússia atual, as viagens aéreas são tidas como uma ameaça à vida, e os meios de comunicação se encontram em situação semelhante à de um país africano pobre. O petróleo vaza de oleodutos enferrujados e contamina o campo. Catástrofes ambientais, provocadas pela indústria ou pelas guerras, despovoaram regiões inteiras: o maior desastre atômico de toda a história, o de Chernobyl (1986), não foi um fenômeno isolado, antes teve um caráter paradigmático.
Este cenário como que apocalíptico só é superado pela situação do Exército. Não é apenas a estação espacial "Mir" que ameaça a todo momento cair aos pedaços, mas é o aparato militar em seu conjunto que desafia nossa capacidade de compreensão. A derrota inconfessa na Tchetchênia acelerou o curso da desmoralização. Volumes colossais de material bélico de alta periculosidade enferrujam ao ar livre, e o controle sobre as armas atômicas há muito se tornou precário. O soldo dos militares, tal como os salários dos funcionários públicos, não é pago; jovens soldados a pedir esmolas são um fenômeno habitual nas cidades, e boa parte dos oficiais não tem moradia. Basta uma só fagulha para que esse barril de pólvora vá pelos ares _é quase um milagre que a revolta militar há tanto esperada ainda não tenha eclodido.
Tudo isso só comprova que a Rússia, assim como a maioria das outras regiões da Terra, é incapaz de ser integrada ao sistema mundial dominado pelo Ocidente. Essa tentativa só pôde ser sustentada pelo modelo de simulação do capital financeiro: a exemplo do que ocorreu em grande parte do mundo, na Rússia o desastre econômico e social das reformas de mercado foi encoberto por uma fachada monetária. O atrelamento do rublo ao dólar sugeriu uma estabilidade inexistente do valor da moeda e atraiu o capital especulativo de curto prazo. No caso da Rússia, esse modelo geral de simulação alcançou um timbre especial, pois a falta de seriedade do projeto financeiro e político era clara desde o início.
Contudo, talvez por pavor da máfia munida de armas atômicas, o Ocidente enfiou goela abaixo de Ieltsin e de sua camarilha um bilhão após o outro, no que foram seguidos bravamente pelos fundos monetários internacionais. Só com os alemães, a Rússia soma US$ 80 bilhões em dívidas.
Todos esses bilhões fluíram para o célebre saco sem fundo, porque só podiam servir para tapar os buracos mais graves. A fim de não cair na insolvência, o governo russo saiu a mendigar de chapéu em punho. Créditos adicionais do G7 e do FMI se perderam em vão _como o último deles, uma brutal injeção financeira de outros 22 bilhões de dólares. O primeiro-ministro Serguei Kirienko, yuppie nomeado por Ieltsin como fogo de artifício, explicou que passaria a tesoura nos gastos sociais e nos recursos do Exército para sanear as finanças públicas. Se Kirienko falasse a sério, seu programa "profissional" mataria de fome um terço da população e metade do Exército.
O fato de Ieltsin, nesse meio tempo, ter descartado seu pupilo e reconduzido ao cargo justamente Tchernomirdin, homem da Gazprom que precedera o malogrado governo do jovenzinho yuppie, é prova de uma política desesperada, que já não pode mais tapar o sol com a peneira: a Rússia, embora com os inevitáveis floreios, declarou de fato sua moratória. Ao contrário do México em 1995 e do Sudeste Asiático em 1997, a débâcle ocorreu antes, e não depois, das tentativas de ajuda do FMI.
É evidente que a Rússia se aproxima de seu segundo colapso, dessa vez sob os auspícios da economia de mercado. Sob as atuais circunstâncias, a fuga de capital monetário internacional é irreversível. Assim, os "emerging markets" (mercados emergentes) se transformam definitivamente em "emergency markets" (mercados de emergência), pois a declaração de insolvência russa irradia sobre as demais regiões em crise. Agora não se trata mais de casos regionais, porém de um processo de escalada global. A desvalorização irreversível do rublo potencializa a pressão nas moedas asiáticas, e esta se reflete na América Latina.
Tão devastadoras quanto as consequências externas do desastre financeiro da Rússia são as consequências internas. Quatro são as razões por que a inflação, supostamente derrotada, será aquecida. Primeiro, como todos os países com moedas desvalorizadas, as importações se tornam drasticamente mais caras e arrastam consigo o preço dos produtos internos. Segundo, a moratória dos empréstimos estatais internos ameaça levar à falência os 1.500 bancos que se refinanciavam com a negociação desses empréstimos.
É de esperar, assim, que os oligarcas mafiosos, fortemente engajados no setor, exijam crédito estatal para os bancos, que só poderá vir da emissão de moeda. Terceiro, os juros e a amortização da dívida externa vencem com dois dígitos na casa dos bilhões, e os dólares dos fundos internacionais não se encontram mais à disposição. Por isso, essas dívidas têm de ser pagas em rublos, com o que os custos, em resultado da desvalorização, se tornam tão exorbitantes que também só podem ser financiados pela emissão monetária. Quarto, finalmente, a situação social já catastrófica se tornará insustentável por ocasião de um surto inflacionário, o que levará a lutas por aumentos salariais e pela compensação das perdas.
Os dias da "era Ieltsin" estão contados. Novos créditos externos só agravariam a crise, no médio prazo; além disso, esgotaram-se todos os meios das instituições ocidentais. Provavelmente, o colapso financeiro russo conduzirá a uma ditadura populista de alguma facção da máfia, que por sua vez só acarretaria um novo caos.
O desastre russo poderia chamar a atenção do mundo para o fato de que a última potência do globo é economicamente tão frágil quanto o seu antigo opositor. Em 1998, o déficit comercial norte-americano atingirá a cifra inusitada de US$ 240 bilhões; 30% do consumo interno do país se baseiam apenas numa ascensão irreal no curso das ações. Basta apenas um forte motivo externo para desencadear essa crise potencial interna norte-americana _e a exclusão da Rússia do sistema mundial unipolar, sob direção dos Estados Unidos, seria um tal motivo. De fato, ao contrário do México ou da Indonésia, o colapso russo não ficará limitado a estragos econômicos, mas causará abalos políticos e militares.
Ainda que sob a direção de um "warlord" desvairado, o Exército russo não é mais capaz de grandes agressões estratégicas. Mas o poderio dos armamentos atômicos e convencionais ameaça insinuar-se nas crescentes regiões de conflito marcadas pelo estigma do colapso econômico russo. A idéia aterradora de armas atômicas nas mãos de grupos terroristas se converte numa realidade palpável. Os Estados Unidos há muito perderam seu poder de supervisão e controle, seja político ou econômico.
Seus mísseis se destinam apenas aos demônios que eles próprios criaram ao tentar modelar o mundo segundo a sua própria imagem deformada. Para cada cabeça que eles derrubam da hidra do terrorismo com seus "Tomahawks", crescem mais duas. Bill Clinton, o presidente das calças arriadas, é uma figura tão constrangedora quanto seu amigo Ieltsin. A arrogância do poder se tornou sórdida. A dominação mundial norte-americana, de que o mundo já está farto, não tem muito mais futuro, no limiar do ano 2000, do que o Império Otomano no final do século 19.