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Primeira Edição: Die Maschine der Selbstverantwortung in www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo em 08/06/1997 com o título A génese do absolutismo de mercado.
Tradução: José Marcos Macedo.
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Em seu próprio nome o liberalismo lança mão do conceito de ''liberdade''. O pathos liberal evoca a iniciativa privada e a auto-responsabilidade do indivíduo. À primeira vista, isto sempre soa bem. Quem desejaria contradizer este belo conceito? Como criaturas esclarecidas da modernidade, nós sabemos porém que não se deve confiar nas palavras. Quando George Orwell escreveu ''1984'', sua utopia negativa, não por acaso escolheu como tema uma linguagem pública cujos conceitos dizem essencialmente o oposto do que significam oficialmente. A título de forma retórica de paliação, tal figura de linguagem já era conhecida pelos antigos e recebeu o nome de ''eufemismo''. Por puro medo, os gregos antigos se referiam às divindades demoníacas da vingança, cujos cabelos eram serpentes sibilantes, como ''as bem-intencionadas''. Talvez o conceito de liberalismo tenha surgido num contexto semelhante.
Para chegar à verdade sobre um fenômeno da vida social, sempre é aconselhável remontar às suas origens. O liberalismo nasceu no século 17 e 18 como oposição aos Estados militares proto-modernos das monarquias e principados absolutistas. Mas na mesma época havia também uma oposição ainda maior das massas populares, que nada tinham a ver com o liberalismo. E é muito instrutivo comparar estas duas formas de oposição.
O absolutismo tinha então constituído o primeiro nível do moderno modo de produção capitalista, ao desencadear a economia monetária e de mercado para suprir as demandas de seu gigantesco aparato militar e burocrático. A grande maioria das pessoas sentiu este desenvolvimento como uma repressão insolente e francamente monstruosa. De fato, o antigo e ''simples'' feudalismo sugara apenas superficialmente os camponeses e artesãos da economia natural agrária, os quais reservavam uma pequena parcela de seus produtos aos senhores feudais ou lhes faziam certos trabalhos. Quanto ao resto, no entanto, o feudalismo os deixava em paz. Em seus campos e em suas oficinas eles podiam fazer o que bem entendessem. Além disso, eles tinham suas próprias instituições de administração local.
O absolutismo destruiu todavia essa autonomia limitada e quis submeter as pessoas à sua burocracia centralizada, para chupar-lhes o sangue e torná-los ''material humano'' de um ''trabalho'' abstrato totalmente heterodeterminado, sob a lei do dinheiro. Os camponeses e artesãos europeus defenderam-se encarniçadamente contra esta opressão por mais de 300 anos, até meados do século 19; e, ao seguirem a bandeira da ''liberdade'' em suas inúmeras revoltas, eles sempre tinham em mente a autonomia social tanto contra as investidas da burocracia absolutista quanto contra as coerções dos novos mercados anônimos. Eles não queriam sentir na pele a pressão de um princípio que lhes era estranho, mas antes preservar o controle sobre as suas condições de vida imediatas.
O liberalismo, pelo contrário, era a ideologia dos ''executores'' econômicos no terreno da economia monetária e de mercado iniciada pelo absolutismo. Eram os novos capitalistas financeiros que prosperavam sob o absolutismo, os grandes mercadores d'além mar e especuladores coloniais, os capatazes (a soldo do Estado) das manufaturas-prisões e do trabalho recluso, os proprietários e administradores dos latifúndios criados para o mercado agrário mundial que se entregavam às primeiras ideias liberais. Eles nada tinham em comum com o conceito de liberdade social dos camponeses e artesãos revoltosos. Ao contrário, eles assentiam de pleno juízo ao absolutismo no fito de converter a massa dos produtores em ''material humano'' dos mercados mundiais, despojá-los do controle dos meios de produção e degradá-los a meros ''empregados'' sob o ditame do capital de investimento.
Por isso os primeiros liberais jamais imaginaram, nem sequer em sonho, que o ''material humano'' da economia de mercado pudesse ter algum direito à ''liberdade''. Entre eles havia mesmo proprietários de escravos e latifundiários que expulsavam violentamente os camponeses das suas terras para transformá-las em pastagens. Quando falavam de ''liberdade'', eles tinham em mente apenas sua própria liberdade econômica de movimento como investidores e ''empresários'' que se sentiam restringidos pela tutela burocrática do Estado absolutista. Sua oposição ao absolutismo teve portanto um caráter inteiramente diverso da resistência social dos produtores diretos. Por isso eles faziam causa comum com o absolutismo contra as revoltas sociais ''de baixo''. O conflito da ideologia liberal originária e de sua clientela com a ''doutrina do direito divino'' do Estado absolutista no início da modernidade nunca passou de uma briga familiar no interior do capitalismo sobre o ulterior desenvolvimento dos fundamentos comuns do negócio.
Mas já nessa crítica precoce movida pelos senhores capitalistas, preocupados com a sua ''liberdade'' burguesa, contra o controle social exercido pelo Estado autoritário pode-se notar uma curiosa inversão lógica dos pontos de vista que indica o caráter irracional de ambas as partes. Não somente o absolutismo pré-moderno e monárquico, mas todo absolutismo de Estado (inclusive o socialista e o fascista) quer de um lado submeter a atividade econômica dos indivíduos a um controle estatal abrangente; de outro lado, entretanto, ele faz valer a idéia de que a subjetividade humana, a vontade humana (na figura do monarca, do governo, do ''líder'' ou do Comitê Central), deve ser de certo modo ''soberana'' diante do sistema do mercado e do dinheiro. Inversamente, o liberalismo representa de um lado a ''iniciativa privada'' do indivíduo capitalista diante do Estado; porém justamente em virtude disso a pretensão a uma soberania da vontade humana perante o sistema do mercado e do dinheiro é totalmente abandonada. Este sistema, portanto, autonomiza-se, torna-se a lei cega do comércio, e o homem converte-se em joguete das ''estruturas econômicas'' e de sua dinâmica sem objetivo.
Já Adam Smith, o fundador da teoria econômica moderna sobre bases liberais, venerava o sistema do mercado total como uma espécie de ''máquina divina'' pilotada pelo cego mecanismo ''auto-regulativo'' dos preços. De maneira análoga à imagem mecânica do mundo físico de Isaac Newton, que considerava a natureza como uma grande máquina universal unitária, Smith concebia a economia como a máquina universal automática da sociedade, a cujas engrenagens os homens tinham de se submeter. Na física, a imagem mecânica do mundo há muito foi superada; na economia, porém, a humanidade ainda insiste (e hoje mais do que nunca) no ponto de vista mecanicista do século 18, que se ''objetivou'' nas formas da reprodução social. O liberalismo caracteriza-se com isso por uma enorme contradição: a ''liberdade'' social do indivíduo sempre coincide com a irrestrita capitulação geral de todos os indivíduos ante uma cega máquina social inegociável, o baal secularizado do capital.
Também se pode dizer que, por meio de suas exigências desmedidas no seio da sociedade, o absolutismo gerou o monstro sem sujeito de um automatismo econômico independentizado que fugiu a seu próprio controle e a seguir lhe arrebatou a ''soberania''. O liberalismo, que exigia em primeiro lugar a ''liberdade'' do indivíduo, na verdade somente deu execução à autonomia dessa ''máquina''. Os liberais não são outra coisa senão sacerdotes de um ídolo automático que dita ao ''processo de metabolismo dos seres humanos com a natureza'' (Marx) um curso irracional segundo ''leis'' mecânicas.
A oposição entre liberalismo e absolutismo de Estado não pode sob qualquer ponto de vista ser tomada por emancipatória. Ela reflete somente os paradoxos sociais do moderno sistema produtor de mercadorias: ou a ''soberania'' humana em relação à máquina de mercado tem de se dissimular como controle autoritário do Estado sobre os indivíduos, ou a ''liberdade'' dos indivíduos tem de se dissimular como total auto-entrega da vontade humana à marcha cega da máquina do mercado. Para a maioria das pessoas, a contraposição entre absolutismo e liberalismo é irrelevante: dá no mesmo se elas são torturadas e humilhadas por uma burocracia estatal ou pelo mecanismo sem sujeito do mercado. Esta experiência foi sentida na pele nos últimos anos pelos europeus do Leste, que foram de mal a pior, da ditadura do socialismo de Estado para a degradação social pelo mercado ''livre''.
Em fins do século 18 e início do século 19, o liberalismo deparou-se com o problema de ter de eliminar não só a pretensão da burocracia estatal absolutista, mas também as pretensões das massas populares à autonomia social. Logo tornou-se claro que era impossível coagir as pessoas exclusivamente por meio da repressão, da polícia, do exército, da forca e das prisões a se tornarem material para os ''mercados de trabalho'' e submeter a própria força de trabalho abstrata às leis da oferta e da procura. Por isso o liberalismo começou a associar a repressão à ''pedagogia'' popular e industrial. Se num primeiro momento os liberais relacionavam o conceito de ''responsabilidade'' apenas a si mesmos, na condição de ''executores'' de um capitalismo individual, tal conceito foi então estendido também ao ''material humano''. Eis aqui um monstruoso cinismo: as pessoas absolutamente despojadas de todo controle sobre suas próprias condições de subsistência material e social devem ser ''responsáveis'' justamente pelo fato de se tornarem de vontade própria ''animais de trabalho'' dos mercados e mendigarem sem dignidade por ''empregos'', ainda que sob as mais miseráveis condições.
Um dos grandes ideólogos dessa ''pedagogia popular'' foi Jeremy Bentham (1748-1832), o fundador do ''utilitarismo''. O ''anseio do homem por felicidade'' devia ser traduzido no impulso de integrar todas as manifestações da vida ao objetivo da valorização do capital. A fim de convencer as pessoas a enxergarem sua própria ''felicidade'' justamente no fato de poderem se fazer ''úteis'' no ramerrão capitalista, Bentham inventou uma instalação penitenciária bastante especial, o panóptico.
O que é o panóptico? O próprio Bentham diz que se trata de um princípio apropriado tanto para prisões quanto para fábricas, escritórios, hospitais, escolas, casernas, reformatórios etc. No aspecto arquitetônico, o panóptico consiste numa construção em círculo, em cujo centro se acha a cadeira (encoberta por cortinas) do ''inspetor'' e cuja periferia é destinada às celas, apartadas entre si, dos presos ou dos alunos. Muitos cárceres e “casas de trabalho” do século 19 foram construídos segundo esse modelo. O refinado objetivo da disposição é fazer com que os presos se sintam permanentemente observados e controlados, sem saberem se a cadeira do “inspetor” está realmente ocupada. Os detentos devem ''a partir de si próprios'', de modo progressivo e automático, comportar-se como se fossem observados, mesmo que este não seja o caso.
O panóptico, para Bentham um modelo da sociedade de mercado ''ideal'', não passava de uma ''máquina de responsabilidade'' para condicionar os indivíduos ao comportamento compatível ao mercado. Os mecanismos de submissão e abnegação deviam converter-se em ''traços intrínsecos da conduta'' das pessoas. Essa ditadura de educação liberal objetivou-se em estruturas arquitetônicas e organizacionais, em símbolos e mecanismos psíquicos. Os imperativos capitalistas, escreveu o filósofo Michel Foucault sobre o panóptico em seu livro ''Vigiar e Punir'' (1976), aparecem ''numa ordem concentrada de corpos, superfícies, luzes e olhares, (...) num aparato cujos mecanismos internos produzem a relação a que se prendem os indivíduos''. Bentham aperfeiçou incessantemente seu aparato social de adestramento humano. Ele inventou a solitária, as carteiras de identidade, as tarjetas de identificação na campainha dos prédios e os escritórios de vastas dimensões. Em 1804, ele sugeriu tatuar um número em todos os ingleses.
Ao mesmo tempo, Bentham foi um fervoroso democrata. Todos, do garoto de recados até o ministro, deviam contribuir para o ''auto-controle público'', isto é, observar a si mesmos e aos outros para dar corda diariamente ao relógio comum da auto-opressão. Kant, o maior filósofo do Iluminismo, conclamara o homem a ''sair da menoridade imposta por si mesmo e servir ao entendimento próprio sem a condução de outrem''. Na esteira de Bentham, o sentido oculto deste imperativo liberal vem à luz: cada um seu próprio policial, educador, carcereiro e capataz! A máquina universal auto-regulativa do mercado necessita de indivíduos auto-regulativos, que se adaptem ''automaticamente''.
Bentham antecipou ''1984'', o pesadelo de Orwell, em quase 200 anos, porém como projeto real. Ironicamente, o mundo liberal-democrático insiste hoje em entender ''1984'' como uma advertência ao totalitarismo (de Estado), sem perceber que ele próprio é há tempos o produto de uma lavagem cerebral de cunho liberal e totalitário. Hoje todos nos portamos de maneira ''auto-regulativa'' como robôs da auto-responsabilidade da economia de mercado, e aquele antigo conceito de ''liberdade'' que visava à autonomia social foi tachado de pré-industrial e primitivo. Obviamente não queremos nem podemos regressar ao restrito modo de vida agrário de camponeses e artesãos. Mas será que o preço do progresso tinha de ser a degradação social do homem a um ''cão de Pavlov'' da máquina do mercado? A humanidade realmente é incapaz de regular as forças produtivas modernas. através de auto-determinação social e entendimento consciente, ao invés de se abandonar cegamente a um autômato econômico? O absolutismo do mercado não é uma alternativa ao absolutismo do Estado. A nós cumpre reinventar, para o século 21, o antigo conceito de ''liberdade social'' em oposição à ''liberdade orwelliana'' do liberalismo.