MIA > Biblioteca > Ilyenkov > Novidades
O trabalho que apresentamos, de autoria do filósofo soviético Evald Vasilievich Ilienkov, é uma obra necessária no panorama da história da filosofia com enfoque marxista. O marxismo foi particularmente pobre nesta disciplina, pois após o início do “partidarismo filosófico” se concentraram os esforços “teóricos” em destacar as contribuições do materialismo e os defeitos do idealismo, perdendo-se assim a possibilidade da análise integral dos problemas filosóficos. Um dos poucos intelectuais que, sem abandonar o princípio, foi capaz de dar uma interpretação culta, sem vulgarizar o significado filosófico, foi Ilienkov.
A Dialética Antiga como Forma de Pensamento é, ao que parece, o único trabalho do autor onde expõe seus estudos sobre o tema, utilizando o material que fornece a filosofia antiga. O trabalho tem importância particular para o estudo de determinados temas dos diversos cursos de História da Filosofia na educação superior cubana, especialmente o que se refere ao surgimento da filosofia, ao caráter materialista dos primeiros esforços dialético-filosóficos na Grécia, à dialética dos sistemas de Platão e de Aristóteles, aos sistemas do estoicismo, do epicurismo e do ceticismo.
Foi escrito por seu autor em meados da década de 1960 e foi publicada uma versão resumida em uma compilação chamada Filosofia e Cultura (Moscou, 1991), anos depois do falecimento de Ilienkov.
Rafael Plá León
A história da filosofia foi situada por V. I. Lenin, em primeiro lugar, em relação aqueles “campos do saber, dos quais deverá se formar a teoria do conhecimento e a dialética”; e esse lugar é ocupado, claramente, não somente por ordem, mas também por seu significado, o qual lhe corresponde por direito próprio no trabalho de elaboração e exposição da teoria geral da dialética como teoria do conhecimento e como lógica do materialismo contemporâneo.
Disso, pouco pode se duvidar, se se leva em conta que Lenin formulou todos os seus postulados fundamentais neste ponto justamente no meio da análise crítica dos fatos histórico-filosóficos, como conclusões resultantes dessa análise.
Isso é perfeitamente natural, posto que no centro da atenção de Lenin se encontra neste caso “a dialética propriamente como ciência filosófica”: como uma ciência especial com um objeto historicamente formado, com um sistema específico de conceitos e com a terminologia a ele adequada, com seu próprio “idioma”. Se trata aqui da dialética na qualidade de ciência especial, e não na qualidade de método, o qual pode e deve, segundo Lenin, ser aplicado em qualquer área do conhecimento; e, portanto, não se realiza somente sob a forma de uma teoria filosófica especial, mas também na forma de uma compreensão teórica correta de qualquer esfera do saber que entre dentro da cosmovisão científico-materialista contemporânea. Se trata aqui não da tarefa da aplicação da dialética à reelaboração de outras esferas do saber, seja a economia política ou a física, a psicologia ou a matemática, a política econômica ou a esfera das questões políticas atuais, mas sim a reelaboração do próprio aparato da dialética, ou seja, do sistema de seus conceitos especiais, de suas categorias.
Aqui ocorre a mesma situação que na matemática: uma coisa é a aplicação dos meios matemáticos à elaboração dos dados da física ou da economia, e outra coisa é a reelaboração teórica de seu próprio aparato, o qual pode e deve ser empregado depois em qualquer outra esfera; e será aplicado com mais êxito quanto mais rigorosidade tenha sido reelaborado o mesmo, de forma geral. Tentar confundir essas duas tarefas e na solução de ambas surgirá uma confusão, mas quando o assunto não muda para qualquer coisa pelo fato de que justamente a aplicação do aparato matemático à solução de tarefas particulares leva, eventualmente, à necessidade de seu próprio aperfeiçoamento, de sua própria concreção.
Exatamente assim tenta também a dialética dos jogos vitais da realidade, somente através do processo de sua aplicação à solução de problemas já não especialmente filosóficos, ou, para ser mais exato, não somente especialmente filosóficos, mas também de problemas de qualquer outra esfera do saber, o que, contudo, não significa que a “aplicação” da dialética coincida automaticamente com o desenvolvimento de seu próprio aparato teórico. As conquistas e os fracassos da “aplicação” do aparato categorial da ciência devem ser assimilados e compreendidos nos conceitos especiais de que já dispõe essa ciência, que foram formados historicamente; somente nesse momento torna-se claro se necessitam ou não de correções.
Pode acontecer, o que ocorre com bastante frequência, que as categorias desenvolvidas historicamente não necessitem de qualquer “melhoramento”, mas apenas de sabe-las “aplicar” competentemente, quer dizer, de uma representação sobre o verdadeiro conteúdo dessas categorias já elaboradas na filosofia. Em nossos dias, com muita frequência se ouve dizer que as categorias da dialética clássica envelheceram, que necessitam de uma reelaboração radical, levando-as a um acordo com as “novíssimas conquistas da ciência”. Mas, na verdade, muitas vezes se verifica que o que envelheceu não foi a determinação das categorias, mas sim aquela compreensão das mesmas de que partem em determinado caso...
Um caso típico deste gênero foram os raciocínios sobre o “desaparecimento da matéria”, populares no início do século XX. V. I. Lenin, mais claro que água, explicou então aos naturalistas que estes raciocínios foram provocados não pelas “novíssimas conquistas das ciências naturais”, mas sim pela ingenuidade dos naturalistas na esfera dos conceitos especialmente filosóficos. Não “envelheceu” o conceito de matéria, mas sim que vocês, naturalistas, usam representações há muito envelhecidas sobre o conteúdo deste conceito. Por isso, a vocês, se enganam os representantes de sistemas filosóficos que há tempo estão envelhecidos, tendo passado por “contemporâneas” suas representações (ainda mais arcaicas) sobre a “matéria”...
Absolutamente o mesmo ocorre em nossos dias em relação com outras categorias da dialética filosófica. Agora falam que “envelheceu” a compreensão marxista clássica da matemática como ciência ligada ao aspecto quantitativo da realidade; a matemática contemporânea há tempos deixou de ser “quantitativa”, há tempos ultrapassou as fronteiras da categoria “quantidade” e investiga a “qualidade”.
À pergunta direta de: e o que vocês entendem, justamente vocês, ao afirmar isso, por “quantidade” e por “qualidade”?, segue um silêncio constrangedor ou uma resposta pela qual se torna evidente que com essas palavras “levam em conta” qualquer coisa menos a compreensão elaborada pela filosofia, ou seja, filosoficamente culta, das categorias correspondentes. Acima de tudo, aquele limite do conhecimento e da capitação do aspecto quantitativo da realidade que alcançou a matemática nos tempos de Engels e o qual desde então foi realmente superado, superado por ela. Aquele mesmo limite com o qual ela, cem anos atrás, identificava o conceito de “quantidade em geral”... E o resultado dessa ingenuidade filosófica (quer dizer, a ausência de um conhecimento simples daquilo que se entende em filosofia, em dialética, por “quantidade”) é uma representação equivocada sobre a relação da quantidade com a qualidade, sobre os limites razoáveis do “passo” da determinação qualitativa para sua expressão quantitativa matemática etc., etc. (até as conclusões de que os computadores cedo ou tarde substituirão o cérebro humano no processo de conhecimento do mundo ao redor). Em outras palavras, que o “pensamento”, em princípio e em final, se reduz sem reservas a um conjunto de operações corretamente matemáticas, ou seja, de novo se reduz única e exclusivamente ao seu aspecto quantitativo, acima de cujos limites não salta a matemática, igual a cem anos atrás, embora o conheça e o expresse muito mais profunda e completamente que a matemática dos tempos de Engels. Engels, dando sua definição da matemática, em última instância se representava claramente que é a quantidade(2), como categoria lógico-filosófica, e seus [atuais] “refutadores” não sabem e partem de representações equivocadas e primitivas sobre a “quantidade”... E, acima disso, dão essas representações equívocas como sendo um “passo adiante” (e não em qualquer lugar, mas sim justamente no campo da filosofia, no campo das categorias da dialética!).
Estes dois exemplos demonstram com clareza que, antes de “desenvolver” as categorias da dialética sobre a base das “conquistas da ciência contemporânea” (por si só esta tarefa é necessária, e proveitosa, e filosoficamente justificada), é necessário primeiro compreender claramente o que precisamente vocês querem desenvolver; falando de outro modo: entender aquele conteúdo real das categorias lógicas, que cristalizou como resultado de mais de dois milênios de desenvolvimento da filosofia como ciência especialmente dedicada a esses assuntos. Em relação com a definição científica das categorias lógicas, a filosofia tem uma experiência especialmente grande, que compreende tanto conquistas quanto fracassos, tanto conquistas quanto derrotas; no entanto, a análise dos fracassos e das derrotas da filosofia neste assunto não é menos valioso que a análise das vias que levaram ao objetivo. Por isso mesmo, para a história da dialética (de seus princípios, de suas categorias, de suas leis) a análise da concepção de Locke não é menos sóbria que a análise do pensamento de Espinoza, e o “metafísico” Holbach necessita de uma análise não menos cuidadosa que o dialético Hegel. A história da filosofia entendida assim, ([quer dizer, como] a história do desenvolvimento de todas as suas categorias especiais, e não como o registro empírico das “opiniões” intercambiadas por motivos distintos) ocupa também por isso o primeiro lugar (tanto por ordem como por essência) na lista dos “campos do saber, dos quais deverá se formar a teoria do conhecimento e a dialética”. Este lugar se determina também porque a dialética é uma ciência filosófica com seu próprio aparato de conceitos formado historicamente, e porque este aparato é marco, resultado e conclusão de um largo processo histórico: da história da filosofia enquanto ciência especial, enquanto campo especial do saber.
Sim, por sua própria essência a dialética é resultado, conclusão, resumo “de toda a história do conhecimento”, e, em geral, não somente da história da filosofia. De todas as formas, na história da filosofia, em comparação com a história de qualquer outra ciência, se conserva sempre aquela vantagem de que ela mesma é também a história do surgimento e desenvolvimento daqueles mesmos conceitos, nos quais deve se expressar o trabalho conclusivo na generalização da experiência da história de todas as outras ciências – a história das categorias lógicas: das categorias da dialética.
Não se pode, nem se quer, empreender a tarefa da generalização dialético-filosófica de qualquer outra esfera do saber, da “elaboração dialética da história do pensamento humano, da ciência e da técnica” (no que também devia consistir, segundo Lenin, “a continuação da obra de Hegel e Marx”) sem um prévio auto esclarecimento do conteúdo de todos aqueles conceitos que surgiram, se desenvolveram e, por séculos, foram polidos justamente no âmbito do desenvolvimento histórico da filosofia, nas colisões de sua história específica. Por isso mesmo, a análise crítica da história da filosofia (da história de todos os seus conceitos próprios) se apresenta também como uma premissa necessária de todo o trabalho restante de generalização dialética da história de qualquer outra ciência, da história de todas as outras esferas do saber. Por isso a história da filosofia figura também, em primeiro lugar, na lista daquelas esferas do saber que somente como resultado da investigação (da “elaboração dialética”) das quais pode ser fundada a teoria materialista da dialética, entendida como teoria do conhecimento e como lógica do desenvolvimento de toda a compreensão (científico-materialista) contemporânea.
Falando grosseiramente, para extrair “generalizações filosóficas” da história de outras ciências é necessário ter já uma séria instrução filosófica especial, ou seja, uma compreensão crítica da história de sua própria ciência, levar em conta toda a experiência que tem a filosofia em relação a essa ocupação: a da “generalização filosófica”.
Caso contrário, isso será não uma “elaboração dialética” da história de outras ciências, mas sim tão somente um relato acrítico do que se observa na superfície do processo histórico, daquilo que pensam e falam de si (ou de sua própria ciência) os próprios economistas, psicólogos e outros especialistas. E o assunto não muda nem um pouco porque este relato acrítico seja produzido utilizando uma terminologia filosófica, seja produzido com ajuda dos giros “filosóficos” do discurso. A simples tradução das verdades da física ou da química a partir da linguagem da física ou da química para a linguagem “filosófica” está muito longe de ser aquela “generalização filosófica” das conquistas das outras esferas do saber, para a qual Lenin preparou a filosofia. Isso é somente uma tradução de uma “linguagem” para outra “linguagem”, não exigindo do tradutor alguma outra capacidade que não seja o conhecimento das duas “linguagens”, das duas séries de termos.
A “linguagem da filosofia” pode ser tomada fácil e rapidamente de um dicionário filosófico. A compreensão da filosofia, de seus problemas, de seus conceitos e das vias de “elaboração filosófica” da história de outros campos do saber não se apreende fácil. Para isso é necessário estudar não o dicionário, e sim a história real da filosofia, incluída a história de sua correlação com outras esferas do saber. A humanidade até hoje não concebeu outro método distinto do estudo de toda a filosofia anterior para o desenvolvimento da capacidade de pensar dialeticamente, escreveu Friedrich Engels cem anos atrás. Essa situação se manteria nos tempos de Lenin e se mantém também em nossos dias com toda sua força. Por essa razão, é que está a história da filosofia em primeiro lugar na lista dos campos do saber que é necessário investigar para criar ao final a teoria da dialética: a teoria do desenvolvimento em geral, da Lógica com maiúscula.
Lamentavelmente, até hoje os trabalhos sobre história da dialética que se têm não se aproximam nem remotamente do nível que se exige para tal cumprimento da tarefa estabelecida por Lenin. A história da dialética deve ser a história (precisamente a história, no sentido estrito dessa palavra) de todos os conceitos fundamentais dessa ciência, das categorias lógicas. E essa história é sozinha profundamente dialética, a história da dialética é também a mais evidente demonstração da própria dialética, e justamente em sua forma lógica desencarnada. Assim – privada dos detalhes desnecessários e de casualidades – é que deve se apresentar a história da filosofia. Nesse se deve destacar, iluminar, passar ao primeiro plano as linhas fundamentais do desenvolvimento, os tópicos entrelaçados que atravessam os séculos e milênios até nossos dias, rompendo-se às vezes, porém se unindo de novo, se é que eles pertencem na verdade à essência da questão, à solução daquela tarefa após a qual os homens alguma vez encontrarão a filosofia. Que tipo de tarefa é essa? Isso também só pode responder a história da filosofia (e somente ela).
★ ★ ★
A filosofia surge não de uma curiosidade intrépida das horas de ócio, e sim de uma necessidade nítida e verdadeira de se desenvolver racionalmente nos problemas nítidos que tinha [...] a sociedade diante de si. Justamente por isso, a filosofia ainda tem, nos primeiros momentos, o semblante de monólogo, de ar pensativo do sábio, na soberba solidão do mundo contemplado. Ao contrário, toda ela está na disputa, no diálogo polêmico, apaixonado, com o sistema mítico e religioso de concepções do mundo e da vida.
Não faz falta ter uma grande sagacidade para ver nos fragmentos poéticos filosóficos de Heráclito (“Este mundo [kósmos], o mesmo de todos os (seres), nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas”, “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres”(3) a antítese cosmovisiva direta das convicções expressadas classicamente nos versos do cantor do primitivo idílio de Hesíodo:
Pois o filho de Crono fixou para os humanos esta lei:
que peixes, feras e pássaros alados
devorem-se uns aos outros, já que justiça [verdade – M.S.] não há entre eles;
mas para os humanos deu a justiça [verdade – M.S.](4)
Contra a velha “verdade” da mitologia religiosa, os primeiros filósofos levantaram a nova sóbria verdade (“nua e sem pintura”), nascida do mundo da luta diária e a toda hora dos homens, do mundo da inimizade e do divórcio, onde não se salva qualquer coisa tradicional, onde os velhos deuses são tão imponentes como os preceptores da vida por eles prescrita. O grego da época de Tales foi colocado frente à necessidade de revalorizar radicalmente todas as normas de vida anteriores e seus fundamentos. A filosofia nasce então como órgão desse trabalho crítico.
Sem contar com essa circunstância não se pode entender absolutamente qualquer coisa da essência daquele problema para cuja solução os homens se viram obrigados a criar a filosofia. Intervindo pela primeira vez na arena da vida social, a filosofia não se ocupa da construção de sistemas logicamente pensados da compreensão do “mundo em geral”, como podia parecer à primeira vista, divorciados das condições sociais de seu surgimento; mas se ocupa, acima de tudo, da destruição da cosmovisão tradicional, não adequada ao modo de vida que mudava, da forma mais radical, as condições do ser social dos homens. Suas próprias (positivas) visões foram se formando diretamente ao longo da reconsideração crítica e da transformação daquele material espiritual que foi legado aos homens como herança do desenvolvimento anterior. Naturalmente que, em primeira instância, a filosofia se encontra relacionada com os limites desse material, se encontra em fortíssimo (embora negativa) dependência em relação a este.
“[...] a Filosofia desde o princípio se faz nos limites da forma religiosa de consciência e, assim, de um lado elimina a religião como tal, e de outro, por seu próprio conteúdo positivo se move ela mesma na esfera idealizada da religião, traduzida na linguagem das ideias”(5).
Justamente por isso a filosofia intervém desde o começo não como uma ciência peculiar, não como uma esfera peculiar do saber que delimite claramente um objeto de investigação, um círculo de problemas especiais, mas sim como “amor à sabedoria” ou “sabedoria em geral”; ela contempla tudo que cai sob o campo visual do ser pensante. Seu objeto se confunde com o objeto do pensamento em geral: o “mundo em geral”, sem qualquer tipo de precisões nem limitações. Naturalmente, aqui a “filosofia” intervém na qualidade de sinônimo absoluto de cosmovisão científica em geral (como tendência, se subentende). Para um estágio inicial do desenvolvimento da filosofia, isso é inevitável e natural. Tudo que existe na terra, nos céus e no mar constitui seu objeto: tanto a construção de instrumentos musicais, como os “meteoros”, o surgimento dos peixes, os eclipses do sol e da lua, as questões sobre a incomensurabilidade da diagonal do quadrado como um de seus lados, a dependência entre a estação inverno e o recolhimento das olivas no outono... Tudo. Tudo isso se chama filosofia, qualquer pensamento sobre o mundo em geral.
Nesse estágio em geral não corresponde ainda falar de filosofia como uma ciência particular; pela simples razão de que não há ainda outras ciências particulares. Há somente sugadores de conhecimentos matemáticos, astronômicos e médicos, crescidos no solo da experiência prática e orientados por completo de forma pragmática. Não é estranho que a “filosofia” desde o próprio início incluía em si todos estes embriões escassos do conhecimento científico, e os ajude a se desenvolver em seu solo, pretendendo liberá-los daquelas camadas de magia e charlatanismo, com as quais (talvez até mesmo com eles, como fizeram os pitagóricos) foram enquadrados dentro da cosmovisão mitológica e religiosa. Por isso o desenvolvimento da filosofia coincide aqui também por completo e inteiramente com o desenvolvimento da compreensão científica do mundo ao redor em geral.
Tal representação sobre a filosofia (amorfa e não desmembrada) será muito estável desde então, tirando forças da tradição dos séculos. Inclusive Hegel, dois mil anos depois, conserva essa compreensão na qualidade de sua definição mais geral e abstrata:
“A filosofia pode ser definida aproximadamente em geral como consideração pensante dos objetos”(6). Tal auto compreensão é perfeitamente natural para um estágio inicial do desenvolvimento da filosofia, quando ainda não se distinguia a si mesma na qualidade de uma área peculiar do saber, ou, o que é o mesmo, quando ainda não se haviam desprendido dela as outras ciência e, portanto, se confundia com o saber em geral, com o pensamento em geral, com a cosmovisão em geral.
Mas, justamente por isso dentro destes raciocínios, naturalmente, cai tudo o que no futuro compõe seu objeto especial: tudo que é de sua responsabilidade, quando ela, como o Rei Lear, repartiu em pedaços seu reino a suas filhas, as “ciências positivas”: a investigação daquelas regularidades universais em cujos marcos existem e se transformam, tanto o “ser” como o “pensamento”, tanto o cosmos compreendido como a alma que o compreende.
É muito característico para os primeiros pensadores que a própria presença dessas leis, que regiam tanto o cosmos como a “alma”, fosse algo pressuposto em si, tão evidente como a própria existência do mundo ao redor.
Isso é perfeitamente compreensível.
“Sobre todo nosso pensamento teórico domina com força absoluta o fato de que nosso pensamento subjetivo e o mundo objetivo estão subordinados às mesmas leis e que por isso eles não podem se contradizer entre si em seus resultados, mas sim devem se corresponder entre si. Este fato é a premissa inconsciente e incondicional de nosso pensamento teórico”(7).
Na medida em que a filosofia intervém aqui justamente como pensamento teórico em geral, este, naturalmente, toma essa premissa como algo que se pressupõe a si mesmo, como condição necessária de si mesma, como “condição incondicional” da própria possibilidade do pensamento teórico.
Justamente por isso, a filosofia se contrapõe à cosmovisão mítico-religiosa, por um lado, como materialismo espontâneo e, por outro, como dialética igualmente espontânea. O materialismo e a dialética são aqui inseparáveis um do outro, conformando em essência somente dois aspectos de uma mesma posição: da posição da “consideração pensante dos objetos”, da posição do pensamento teórico em geral, e, por isso mesmo, da filosofia, a qual em geral aqui não se diferencia ainda do pensamento teórico, muito menos o contrapõe.
À primeira vista, pode parecer que a filosofia em seu começo não tem a ver, em geral, com aquelas questões que posteriormente comporão seu objeto especial, acima de tudo com a questão sobre a relação “do pensamento ao ser”, da alma à matéria, da consciência à realidade, do ideal ao real. Mas na verdade, justamente essa questão se encontra no centro de sua atenção desde o início, compondo seu problema principal.
A questão é que a filosofia aqui não estuda simplesmente o mundo exterior. Intervindo como pensamento teórico em geral, ela realmente o investiga, porém o faz ao longo da superação crítica da cosmovisão mítico-religiosa, no processo da polêmica com esta, ou seja, constantemente interpondo entre si duas esferas claramente delimitadas uma da outra: por um lado, o mundo exterior tal como esta o começa a conceber; por outro, o mundo tal e como está representado na consciência atual, quer dizer, mítico-religiosa. Mais ainda: seus pontos de vista próprios se formam justamente como antíteses das representações por ela refutadas. Justamente por isso, destruindo a religião, a filosofia, por seu conteúdo positivo, se move por completo aqui “ainda somente neste esfera idealizada religiosa, traduzida à linguagem dos pensamentos”.
Em outras palavras, nos estágios iniciais, a filosofia vê claramente o objeto real de sua investigação na medida, e justo nessa medida, em que o objeto real já está expressado de uma forma ou outra na consciência religiosa, em que se contemple já através do prisma distorcido dessa consciência. O que é que constitui esse objeto real da consciência religiosa? O mundo real? De forma alguma. O desenvolvimento posterior da filosofia demonstrou suficientemente que o conteúdo real, “terreno” de qualquer religião constitui sempre as próprias forças e capacidades do próprio homem, apresentadas como um objeto existente fora e independentemente do homem, como forças e capacidades de algum outro ser distinto de si. Na religião (como posteriormente também na filosofia idealista) o homem toma consciência de suas próprias capacidades ativas, mas como [certo] objeto existente fora de si.
Mais de uma vez Marx afirmou que essa forma irracional de conscientização de um objeto plenamente real nas etapas iniciais do desenvolvimento da cultura espiritual é natural e inevitável:
“o homem deve primeiramente em sua consciência religiosa contrapor a si suas próprias forças espirituais como forças independentes”.(8)
Deus (deuses, demônios, heróis) desempenha aqui o papel de imagem ideal, de acordo com a qual o organismo social forma em seus indivíduos as forças e capacidades reais; a educação (a relação com a cultura já formada) se realiza através da imitação integral dessa imagem ideal, e as normas assimiladas da atividade vital se fazem conscientes e se recepcionam como mandamentos divinos, como legado das gerações anteriores, depositárias da força de uma tradição inquestionável, da força de uma lei superior que determina a vontade e a consciência dos indivíduos.
Em forma de religião, ao homem (indivíduo) não se contrapõe outra coisa que o sistema de normas de sua própria atividade vital – espontaneamente formadas do todo e feitas tradição. Justamente por isso, ninguém se lembra, já não se sabe como nem quando estas normas se formaram (para cada indivíduo “sempre foi assim”), seu autor é considerado uma ou outra autoridade divina (Jeová, Salomão, Zeus, Prometeu ou Sólon). A força da religião sempre foi e é a força de uma tradição acriticamente assimilada, não submetida à crítica e incompreensível em suas fontes reais.
Em geral, este é o princípio da oficialidade de um exército contemporâneo: atua como eu, e não pensa; os estatutos foram escritos por pessoas mais inteligentes que nós...
A cosmovisão mítico-religiosa sempre tem por isso um caráter pragmático expressado com mais ou menos clareza: nela encontram sua expressão, acima de tudo, os modos humanos sociais de ação com as coisas, e não as próprias “coisas”. A coisa é um objeto externo; em geral, se percebe por esta consciência principalmente como objeto de aplicação da vontade: somente a partir do lado em que é útil ou danoso, amistoso ou hostil. Por isso, a vontade e a intenção intervêm também aqui como princípio superior (tanto de origem como de destino) da consciência e dos raciocínios. O interesse “teórico” para com as coisas não surge aqui sozinho.
Justamente por isso, todos os fenômenos, acontecimento e coisas do mundo circundante inevitavelmente se percebem e se conscientizam antropomorficamente: somente como objetos, produtos ou meios de realização da vontade, das intenções, desejos ou caprichos do ser parecido com o homem. Por isso, também o homem, embora busque diretamente o rosto da natureza, não vê qualquer coisa nesse rosto que não seja sua própria fisionomia. Daqui sai a ilusão, similar àquela que cria – e graças a qual se cria – o espelho: ao homem que se olhou no espelho não lhe interessa como tal as propriedades do espelho, mas sim aquela imagem que graças a essas propriedades se vê “atrás do espelho”.
Para a consciência religiosa pragmática, a natureza como tal tem exatamente essa mesma significação: desempenha o papel de uma “divisória” mais ou menos transparente, atrás da qual está aquela realidade, que é também importante observar: os modos de atividade, as formas de atividade vital, as intenções e os modos de realiza-las... Na cintilação de um raio vê imediatamente só as formas externas da ira de Zeus; nos brotos verdes de cereais crescendo, a graça generosa da Mãe Terra [Deméter]; em uma madura operação monetária, o amistoso serviço de Hermes etc., etc. Como um segredo escondido “atrás” dos fenômenos da natureza sempre chegam aqui a intenção, maquinação, vontade e ação consciente dirigida por estes, a “técnica” dessa “ação”, a qual há que se submeter, na medida das possibilidades, para saber alcançar os resultados desejados...
Contra esse princípio universal da relação da vontade consciente para o mundo ao redor é que intervém a filosofia (o pensamento “teórico”) desde os primeiros passos de seu nascimento. Mais exatamente, a intervenção contra esse princípio é justamente o primeiro passado da filosofia, é o ato de seu nascimento: o momento do surgimento da visão teórica do mundo e do homem, de “si mesmo”, das formas de sua própria atividade vital.
É inerentemente compreensível que era necessária uma crise implacável e sem saída no sistema das formas praticadas tradicionalmente e correspondentes a suas representações religiosas pragmáticas para que fosse despertada (para que despertasse) a visão teórica do mundo como uma realidade efetiva não somente independente de qualquer tipo de vontade, mas sim inclusive dirigindo essa vontade, embora seja a vontade do próprio Zeus.
O primeiro passo da filosofia é justamente a consideração crítica da verdadeira relação do mundo da consciência atuante e da vontade para o mundo da realidade independente destas: o cosmos, a natureza, o “ser”.
Acima de tudo, se impõe o esclarecimento daquela circunstância em que o homem mitificado (representado para Heráclito, Xenofonte e seus partidários em Hesíodo [ou] Homero) é o homem antropomorfizado, ou seja, o homem que incorretamente transmite à natureza sua própria imagem. É natural a tarefa que se desprende daqui: separar aquilo que realmente pertence exclusivamente ao homem com sua consciência e sua vontade, daquilo que pertence à natureza; depurar a representação da natureza das característica da visão humana, e essas características devolvê-las ao homem, desprende-las da natureza exterior, do Sol (Hélio), do Oceano, dos raios trovejantes, do Vulcão de fogo e de outros. O Sol é o sol, ou seja, uma esfera de fogo; o oceano é o oceano, ou seja, um mar de água; e o homem é o homem, ou seja, um dos seres vivos habitantes do cosmos.
A filosofia (o pensamento teórico) já nos estágios inicias assume aquela tarefa que em Anaxágoras resolve seu “nous”(9) (“inteligência”). No caos da consciência religiosa, o trigo das representações rigorosamente objetivas sobre o mundo exterior, ela separa das representações sobre o modo da atividade vital do próprio ser que dispõe desse “nous”: o homem. Ela produz uma classificação inicial, uma separação dos elementos, dos quais está composta a cosmovisão religiosa pragmática, dividindo tudo que é conhecido em duas frações estritamente delimitadas. Nos estágios iniciais ela atua justamente como um separador que divide tudo que é conhecido nos contrários que se extinguem nele, sem lhe agregar qualquer coisa especial (ainda aqui se move por completo somente nesta esfera idealizada, traduzida ao idioma das ideias).
Este esclarecimento da verdadeira contraposição da vontade consciente e do cosmos real, que existe de acordo com suas próprias leis (daquilo que mais tarde será chamado “subjetivo” e daquilo que receberá o título de “objetivo”) é justamente a primeira diferenciação estabelecida pela filosofia enquanto filosofia. Ao mesmo tempo, é também a primeira (a mais abstrata) definição de seu verdadeiro objeto.
Para a naturfilosofia(10) [натурфилософии], original e natural é a representação segundo a qual o homem, possuindo “alma”, é somente um dos múltiplos seres habitantes do cosmos, e, portanto, está subordinado a todas as suas leis, sem qualquer tipo de privilégios nem exceções. Isso é puro materialismo. Embora espontâneo, embora “ingênuo”, mas verdadeiramente não tão bobo; materialismo que compreende que o alcance superior do ser “racional” não é o ordinário enfrentamento à potente resistência das forças da natureza, mas sim que, pelo contrário, é saber compreendê-las e contar com elas, saber conformar a própria ação segundo as leis, medidas e ordem do cosmos, segundo seu poder insuperavelmente forte, segundo seu “Logos”, “nenhum deus, nenhum homem o fez”(11). E este é o primeiro axioma e mandamento também do pensamento teórico contemporâneo em geral; aquela fronteira que dividiu alguma vez e ainda hoje divide o enfoque científico teórico da relação pragmática espontânea para o mundo, resumida em sua forma mais pura justamente como cosmovisão religiosa mistificante, com a sacralização – característica dessa última – de uma “vontade” insolente e com o culto de uma personalidade sobrenatural sábia, com relação ao ritual das formas de vida tradicionalmente herdadas e não submetidas à crítica das representações.
Justamente por isso, o materialismo é não somente a primeira forma história tanto do pensamento teórico em geral, como da filosofia (como autoconsciência desse pensamento), mas também “logicamente”, ou seja, na raiz da questão, é também o primeiro fundamento da cosmovisão científica contemporânea e de sua filosofia, de sua lógica.
Da mesma forma orgânica e natural, à filosofia aqui também é própria a dialética espontânea. Isso está ligado à própria essência daquela tarefa, cuja necessidade de solução deu vida à filosofia, esta primeira forma de pensamento teórico.
A questão é que a consciência religiosa pragmática se distingue por uma total ausência de autocrítica. Sua representação sobre o mundo exterior e sobre as leis da vida dos homens tem seu único fundamento na tradição, remontada aos deuses e aos antepassados, ou seja, em uma autoridade externa, cujo papel o desempenha diretamente uma ou outra personagem “divinizada” (o oráculo, o sacerdote, o clérigo). Essa representação [sobre alguma coisa] tem aqui o significado de uma “verdade” autossuficiente e inquestionável, seu veredito é definitivo e inapelável. Às formas de vida autoritárias e estancadas tal compreensão de mundo lhes chega melhor que qualquer outra: com o poder dos ricos não se pode discutir. A questão se perturba em condição da democracia, em condição de uma consideração aberta de todos os assuntos importantes nas praças, nas reuniões de pessoas com opiniões diferentes e contrapostas, que se refutam mutuamente umas às outras.
A filosofia, nascida justamente como órgão de tal relação (crítica) para qualquer opinião e sentença expressada, desde o próprio começo se vê necessitada de buscar o caminho à verdade através da consideração de representações contrapostas entre si. A polêmica democrática, a confrontação aberta de opiniões, agrupadas sempre ao redor de polos alternativos: é esta a atmosfera na qual exclusivamente surge o verdadeiro pensamento teórico e a verdadeira filosofia, a que merece este nome.
Na forma de filosofia o homem começa por isso pela primeira vez a observar criticamente – como à distância – sua própria atividade de construir imagens da realidade, o próprio processo de conscientização dos fatos, sobre os quais surgiu a discussão. Em outras palavras, como objeto de consideração especial resultaram todas aquelas representações e conceitos gerais sobre os quais buscaram se enfrentar as opiniões.
E tal giro de pensamento “para si mesmo”, para a forma de seu próprio trabalho, é também uma condição sem a qual não há, nem pode haver, nem dialética, nem pensamento teórico em geral; o pensamento dialético – exatamente porque pressupõe a investigação da natureza dos próprios conceitos – é próprio somente do homem, e do homem somente em um nível relativamente alto de desenvolvimento (budistas e gregos)(12).
A história da filosofia grega inicial demonstra essa verdade como na palma da mão: não há e não pode haver um pensamento especificamente humano (e, ainda mais, dialético) ali onde não haja investigação da natureza dos “próprios conceitos”, ali onde o homem contemple somente o “mundo exterior”, sem refletir ao mesmo tempo sobre as formas do próprio pensamento, da própria atividade de construção das imagens deste mundo exterior.
Em outras palavras, o pensamento especificamente humano em geral, começa sua verdadeira história somente ali onde tem lugar não somente o pensamento “sobre o mundo exterior”, mas também o “pensamento sobre o próprio pensamento”. Somente aqui e somente sob essa condição este se faz também racional, ou seja, dialético; enquanto até aqui ele não sai dos marcos daquelas formas que são próprias já da psique do animal desenvolvido (dos marcos das [chamadas] formas de “raciocínio”).
“Nós compartilhamos com os animais todos os tipos de atividade racional: indução, dedução, e, consequentemente, também abstração (conceitos genéricos em Dido(13): quadrúpede e bípede), análise de objetos desconhecidos (quebrar uma noz já é o começo da análise), síntese (no caso dos truques espertos dos animais) e, na qualidade de união de ambas, o experimento (no caso de novos obstáculos e em condições difíceis). Segundo o tipo, todos estes métodos – a saber: todos os meios de investigação científica reconhecidos pela lógica habitual – são perfeitamente iguais no homem e nos animais. Somente em graus (segundo o desenvolvimento do método correspondente) eles são diferentes. Os principais recursos do método são iguais no homem e no animal e levam a resultados iguais, na medida em que ambos operam ou se satisfazem somente com estes métodos elementares”(14).
Em outras palavras, o pensamento humano estabelece uma diferença de princípio entre si e as formas precedentes de atividade psíquica somente ali, e precisamente ali onde este se transforma a si mesmo – às formas de seu próprio trabalho – em objeto especial de atenção e investigação. Em outras palavras, ali onde o processo de pensamento se converte em um ato consciente, onde se estabelece o controle das normas reveladas pelo próprio pensamento: as categorias lógicas. Mas isso é justamente o ato de nascimento da filosofia.
Antes disso e sem isso não há ainda um pensamento especificamente humano. Há somente formas da psique que são sua premissa pré-histórica, ou seja, formas de consciência “gregária”(15), comum tanto ao homem como ao animal. E, como última (e superior) fase do desenvolvimento dessa consciência “gregária”, intervém justamente a cosmovisão mitológica e religiosa, em cuja superação crítica surge o pensamento especialmente humano e a filosofia como órgão dessa autoconsciência.
Disso se faz perfeitamente evidente quão superficial e errônea é a representação amplamente difundida, de acordo com a qual o “materialismo” dos antigos pensadores gregos corresponde ver que eles investigam o “mundo exterior”, falam sobre o “mundo exterior”. Eles fazem isso, contudo, não como materialistas. Pois sobre o mundo exterior se pode raciocinar e falar sendo um idealista puro; e ao contrário: pode-se (e deve-se) ser um materialista consequente estudando não o mundo exterior, e sim o pensamento. Os autores da Bíblia e Hesíodo falaram e escreveram sobre o mundo exterior tanto ou mais que Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito, todos juntos; e o verdadeiro materialismo dos últimos consiste em que eles ofereceram ao mundo uma determinada compreensão da relação do pensamento para com o mundo exterior, uma determinada solução – justamente materialista – da questão fundamenta da filosofia, e compreenderam o pensamento como capacidade do homem de construir conscientemente sua ação em correspondência com as leis e formas do mundo exterior, com o “Logos” do cosmos, e não de acordo com os preceitos dos profetas, as sentenças dos oráculos e de seus intérpretes... À relação teórica para com o mundo é próprio verdadeiramente o materialismo na qualidade de posição “natural” – que se desprende de si – na compreensão do pensamento, no plano da “investigação da natureza dos próprios conceitos”.
E, justamente por isso, a dialética nasce como dialética materialista: como capacidade de “amadurecer a tensão da contradição” como parte da expressão teórica dos fenômenos do mundo exterior, como parte dos conceitos investigados, que reflitam adequadamente o mundo exterior. De dialética, em um sentido estrito em geral, se pode falar seriamente somente ali onde a contradição se torna conscientemente princípio estabelecido do pensamento ocupado na construção da imagem do mundo ao redor e do sentido conscientizado deste seu trabalho.
E não é suficiente constatar a presença de contradições, pois a cosmovisão mitológica e religiosa une a cada passo imagens diretamente contrárias e mutuamente excludentes, mas sem reparar no que faz, sem compreender os contrários precisamente como contrários. Esta tolera as contradições dentro de si somente e justamente porque não o faz conscientemente como contradições, como situações que destroem qualquer quadro do mundo imóvel e estagnado, qualquer sistema de mitos, de conceitos mistificados.
Outra questão é o pensamento teórico filosófico, o qual “tolera” a tensão da contradição, claramente compreendendo-a justamente como contradição, como forma natural de expressão da relatividade de cada representação e conceito rigorosamente estabelecido. Mas tal relação para a contradição se torna possível somente ali onde a consciência deixa de se mesclar com os conceitos existentes, fixados dogmaticamente, e lhes dirige um olhar pacientemente examinador; somente ali onde ela contempla seus próprios conceitos como “desde fora”, como se fosse outro objeto distinto de si.
Por isso mesmo, propriamente falando, a dialética é incompatível com um sistema de representações dogmaticamente estabelecido, pois em relação com esse sistema a contradição sempre intervém como princípio destrutivo, como situação de desacordo no interior de um sistema de conceitos estabelecido.
Por isso, um sistema de ideias dogmaticamente estabelecido chega a sentir sempre a contradição como índice de discórdia no interior de si mesmo, como destruição de seus próprios estatutos. O pensamento teórico, então, que olha o conceito como algo distinto de si, como objeto especial de consideração, submetido em caso de necessidade à modificação, precisão e inclusive mudança completa, mantém uma relação serenamente teórica para com a contradição. Este vê nela não sua destruição, não sua morte, e sim somente a destruição e morte de outro objeto distinto de si; e, simultaneamente, a vê como sua própria vida.
E nisso justamente reside a diferença específica da relação humana para com as formas da própria atividade, como se fossem “outra” coisa, a partir da relação animal para com o mesmo. O animal se mescla com as formas de sua atividade vital, o homem, ao contrário, as contrapõe a si. Por isso a psique humana tem uma saída à dialética, enquanto que o animal, não.
Essa diferença radical entre a psique do animal e a psique do homem, que brota claramente nas colisões do surgimento da filosofia grega antiga, se vê como na palma da mão também no conhecido experimento de I. P. Pavlov, quem conscientemente fez enfrentar a psique do cachorro com uma contradição(16).
Isso demonstra [...], que a psique do animal altamente desenvolvido se desenvolve facilmente na tarefa de refletir as diferenças comuns entre duas ou mais categorias ou “conjuntos” de objetos singulares a ele apresentados, mas momentaneamente chega a uma desordem completa tão logo, por vontade própria ou à força, tem que refletir o passo de um ao outro, ou seja, o ato de desaparecimento da diferença estabelecida com precisão, o ato de conversão dos contrários, o ato de surgimento justamente da diferença contrária etc., etc. A psique do cachorro, neste caso, modela nítida e visivelmente a inteligência dialeticamente inculta do homem: atividade intelectual formada nas condições da vida tradicional estagnada, onde de geração em geração se reproduzem rigorosamente os mesmos esquemas de atividade vital, elaborados pelos séculos dos séculos, com um caráter ritual, e também as representações que lhe correspondem.
A dialética, por isso, se converte em uma necessidade socialmente condicionada que imperiosamente exige sua satisfação, justamente em uma época de viradas radicais, ali onde os homens se encontram perante a tarefa de se desenvolver conscientemente em meio às condições de sua própria vida, de conscientizar racionalmente, ou seja, de compreender o que é que ocorre ao seu redor e porque tudo que até ontem parecia sólido, fortemente estabelecido, torna-se (e não de vez em quando, mas sim à força de alguma necessidade fatídica que diariamente e a toda hora se intromete em todos seus cálculos e planos) vacilante, instável, enganoso... Ali onde todos os primeiros sinais se transformam no contrário, onde o que ontem se apresentava como o Bem, logo se torna para eles em intermináveis desgostos e desgraças, onde a antiga lei, herdada dos deuses e os antepassados já não os preserva das forças do Mal. Em duas palavras, ali onde os homens se sentem presos nas mordaças de implacáveis contradições, vendo-se necessitados de resolvê-las, e os velhos modos para resolvê-las, utilizados pelos séculos dos séculos, manifestam toda sua impotência.
Só então, e não antes, é que surge a verdadeira necessidade de compreender claramente – racionalmente – tudo que ocorre, porque ocorre assim e para onde vai tudo. Compreender como seguir vivendo, a que objetivos orientar sua atividade vital, em que ver um sustento sólido para seus juízos e valores.
A dialética surge, pois, acima de tudo, como forma de um sóbrio auto acerto de contas do homem posto diante de tais condições. Para se livrar de tais contradições é necessário refleti-las clara e honestamente, sem enganar-se a si mesmo com contos e mitos, e sim, justamente, como contradições da realidade, e não como contradições da “boa” ou “má” vontade dos deuses e seres antropomórficos similares aos deuses.
Justamente isso é o que diferença o conhecimento racional do mundo dos esquemas tradicionalmente religiosos de sua explicação. Os últimos facilmente se desenvolvem com as contradições, das quais já não escaparão e estão na boca de todos: se declaram assunto de um desígnio doentio, de uma vontade maligna, de uma intenção prejudicial ao homem de alguma inteligência sobre-humana e de seres astutos, que tramam maldades aos protetores celestiais do gênero humano, seja com a discórdia entre os benfeitores divinos, tutores dos bobos mortais. Por isso é que a mitologia abunda em contradições e “em si” é também dialética, pois nos céus se projetam contradições duplamente terrenas, reais, mas que convertem essa projeção peculiar na tela do Além em algo misticamente incompreensível, pois “os caminhos do Senhor são impenetráveis”... Sempre se declaram como “causa” sua o desígnio consciente dos deuses e sua Vontade divina, inalcançável para o homem.
É por isso que a dialética racional começa com a fixação sóbria e nítida das contradições reais da vida, do mundo dentro do qual vive o homem: o ser portador – a diferença do mundo ao redor – de consciência e vontade. Começa por tomar consciência das contradições e com a vontade de enfrenta-las. Daqui se compreende também o caráter “naturfilosófico” [натурфилософский] das primeiras construções teórico-filosóficas, de seu materialismo, cuja essência consiste em que o homem, com sua consciência e vontade, é incluído nos ciclos vitais de uma Natureza sem deuses; e, portanto, em sua vida deve seguir suas leis, sua ordem; ou seja, pensar e proceder de acordo com ela e não contra ela.
Pensar e proceder de acordo com a natureza das coisas: justamente nisso se encerra toda a sabedoria das primeiras concepções teórico-filosóficas. Sabedoria, unida à compreensão de que fazer isso não é assim fácil e simples, de que o pensamento e a reflexão exigem do homem inteligência, vontade e valor para olhar de frente a verdade, não importa quão desoladora lhe possa parecer. Este credo originário da filosofia, formulado posteriormente por Espinoza como sua divisa (“não rir, não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las”(17)) traduz com clareza suficiente através das roupagens verbais de qualquer sistema inicial da antiga Grécia.
Em Heráclito, não há mais a mínima referência a algum “Logos” peculiar, diferente do Logos Universal, da atividade da alma, do ser animado. O homem desde o princípio está incluído nos ciclos do fogo da natureza e, queira ou não, ele segue seu inexorável movimento. A alma racional, compreendendo essa situação independentemente dela, atua em correspondência com o “Logos”. A irracional, ao não percebê-la, busca ansiosamente, se esforça em vão em se manter por conta própria, mas de todas as formas é arrastada pelo curso dos acontecimentos universais. Sabedoria expressada também no aforismo daqueles tempos: o destino desejado conduz, o indesejado arrastra, e com isso não há nada que fazer.
Análoga é a solução de Demócrito: a “alma” é uma partícula da natureza, formada por aqueles mesmos “átomos” que formam qualquer outra coisa no cosmos, acaso somente mais móvel, e, portanto, sua atividade transcorre segundo as mesmas leis que as da existência de qualquer outra “coisa”, de qualquer outro conjunto dos mesmos átomos...
Em essência, a mesma significação tem também a famosa tese de Parmênides: “pois o mesmo é pensar e ser”(18). Aqui não havia e não podia haver ainda o sentido refinadamente idealista que a mesma fórmula terá mais tarde, em Platão, nos neoplatônicos, em Berkeley, Fichte ou Hegel. Aqui, naturalmente, não havia qualquer coisa similar. E, inclusive Hegel, tão virtuoso em transformar a todos os brilhantes pensadores do passado em predecessores de sua concepção da relação do pensamento para com o ser, se vê necessitado de constatar que a visão de Parmênides sobre a sensação e o pensamento “pode, à primeira vista, parecer materialista”(19). Assim parece à primeira vista, e à segunda, à terceira, somente se não se lhe atribuam interpretações formadas muito mais tarde, na medida em que a questão aqui se colocou de maneira perfeitamente clara como a questão sobre a relação de uma das capacidades do “morto” (uma pequenina partícula do “ser”) para todo o “ser” restante, e se resolveu clara e indiscutivelmente no sentido da correspondência do conhecimento com aquele que é realidade. A razão pensante (em contraposição com “a vista enganosa e o zumbido do ouvido obstruído”) por sua própria natureza é de tal forma que não pode se enganar, não pode expressar aquilo que não é realidade, e sim que é expressão daquilo que é. E o que “é”? Isso quem resolve é a razão.
Em geral, para os pré-socráticos, não é característica a própria ideia da contraposição do pensamento humano (e outro eles não reconheciam) ao “ser”. O pensamento e a ideia se contrapõe não ao “ser”, não ao cosmos, e sim à opinião, ou seja, ao saber falso, obtido não por via da investigação independente e da reflexão, e sim graças à credulidade que toma por valor verdadeiro tudo aquilo que tagarelaram ao seu redor... Assim, as categorias do pensamento – tais como o “ser” ou o movimento em geral – se julgam e se investigam aqui diretamente como determinações do mundo ao redor do homem, como características ou definições da realidade existente fora da inteligência e fora do homem.
E com a mesma objetividade (independentemente de como compreendiam a si mesmos e como compreendiam seus próprios raciocínios os filósofos antigos) a questão aqui já se estabeleceu, em essência, em torno de como expressar o movimento real na lógica dos conceitos, e não sobre se este existia efetivamente ou não... Como um fato empiricamente constatável, sim, incondicionalmente; e disso não duvidaria não só um oponente de Zenon, mas sim o próprio Zenon. Existe, sim, porém somente como existe qualquer outra coisa efêmera (“mortal”), como a saúde ou a riqueza, como o êxito ou a colheita de azeitonas. Hoje as tem, amanhã não; mas sempre existe esse mundo, esse cosmos, dentro do qual surgem e desaparecem sem deixar pegadas sequer: do Ser. Aquilo que sempre foi, é e será. Aquilo a que deve se dirigir a Razão, em contraposição à “opinião” vã.
Esta é já uma análise clara das categorias do pensamento; análise que desvenda as contradições na composição dessas categorias, tão logo o pensamento começa a se produzir especial, cuidado e honestamente. Contradições das quais está plena também todas as esferas das vãs “opiniões”, mas que ali não são percebidas, porque simplesmente não as contemplam criticamente, não pensam nelas como um “objeto” específico, diferente de si mesmo; e sim, que obstinadamente insistem nelas, escarificando cada qual a “sua”; que na prática não é sua, e sim algo misteriosamente tomado sem saber nem como nem de onde. Isso é habitual, porém daqui não resulta a verdade.
Justamente a Zenon a humanidade deve uma verdade que se converteu em divisa diretiva da ciência em geral: não creia naquilo que vê ou escuta, investiga-o. Pode ser que em última análise tudo resulte o contrário. Sem essa divisão não haveria nascido nem o pensamento de Galileu; isso o compreendeu nosso grande Pushkin, mais claro que água:
Não há movimento – disse um sábio barbudo,
O outro nada disse e o outro ficou diante dele para ir...(20)
Quem estava certo? Quem acerta uma “resposta complicada”? (Deve ser raciocinada ou bem pensada.) E Pushkin relaciona este “exemplo” justamente com Galileu: “... porque todos os dias o sol passa perante nós, contudo, teria razão o obstinado Galileu”.
Aquele mesmo Galileu que ativamente é transformado pelos positivistas em seu santo, em inimigo de qualquer “filosofia”.
Claro que a presença de uma séria crise social, que arrasta tudo das suas órbitas, ainda não explica aquela explosão de pensamento dialético, ligada aos nomes de Heráclito e Zenon de Eleia; e mais: toda a tradição teórica despertada por eles, todo aquele processo que entrou para sempre na história sob a denominação de filosofia da Antiga Grécia, da dialética antiga, essa autêntica base da posterior cultura teórica da Europa.
Refletindo sobre isso não se pode chegar a qualquer outra conclusão que não fosse a que em relação às condições do nascimento e florescimento da dialética filosófica fizera Hegel. A dialética filosófica nasce na pequena Grécia, ainda mais exatamente: naquelas cidades-estados onde, por alguma feliz coincidência de circunstâncias (a questão de quais circunstâncias é transmitida rapidamente, justamente, ao historiador, melhor que ao historiador da filosofia) esta crise se produz em condições de democracia. Seja já decadente, incompleta, escravista, mas democracia no fim: o regime onde todas as questões vitalmente importantes, todos os problemas cativantes se elucidavam não em segredo, não por uma seita estreita de honoráveis, e sim abertamente, nas praças, em incendiadas disputas e discussões, onde cada um tinha a palavra e podia prevalecer, se essa palavra era razoável e a todos convencia...
Não há porque idealizar, é claro, essa forma de democracia: nem por vestígio ela dava somente um florescimento até hoje impactante do intelecto dialético, mas também um outro prato não tão delicioso. Sócrates, por sua sabedoria excessiva, segundo a opinião dessa democracia, foi condenado à morte precisamente por ela; e Aristóteles se viu obrigado a fugir de sua cidade natal, sob perigo de análoga distinção. Que fazer? O pensamento dialético não é um entretenimento inofensivo incluído nas condições de uma democracia completa. Este nasceu também como arma nítida na luta de cosmovisões e até hoje se mantém como tal. Por isso o movimento democrático mais consequente da história – o movimento comunista de nossa época – lutando incondicionalmente pela dialética, guarda de todas as formas em seu arsenal teórico também um conselho: “Aplica intencionalmente este método”.
E saber “aplicar” ele significa saber também sua genealogia, e aquelas deformações doentias monstruosas do método dialético, com as quais, infelizmente, se enriqueceu a história de seu desenvolvimento e aplicação. Uma de tais lições a demonstra perante nós a sofística, que vulgarizou e converteu em objeto de mercado e de interesses particulares a dialética limpa e valente dos pré-socráticos, estes lutadores da cosmovisão científico-teórica que se alçaram contra a concepção do mundo da corrente pragmático-religiosa, contra a mitologia que explicava todos os acontecimentos do mundo pelos caprichos da vontade e consciência de deuses antropomórficos de sabedoria e poder sobre-humanos, de heróis míticos culturais.
Da história universal é conhecido que o florescimento da antiga cultura grega, criadora [entre outras coisas] também da dialética, foi tão curto quanto precipitado. Sem alcançar derrotar por completo o regime patriarcal-gentílico de vida, muito menos as recordações dele, este novo tipo de cultura, inexplorada ainda pelos homens, muito rápido descobriu suas contradições (“imanentes” a ele, se nos expressarmos na acostumada linguagem filosófica), que logo o destruiriam, ou, mais exatamente, que a partir de dentro debilitariam sua força ao ponto de que tornava fácil o saque dos conquistadores.
E um dos recursos perniciosos da crescente decadência da cultura é justamente a sofística. Não há que representa-la, naturalmente, só em preto e branco: os sofistas entraram na história também como civilizadores, como vendedores ambulantes da cultura intelectual já formada nos pré-socráticos, da lógica da abordagem teórica de qualquer assunto, assim como seus popularizadores e, inclusive, como descobridores de algumas debilidades da análise dialética. Isso é assim, e de todas as formas a sofística se tornou um nome comum para a forma enferma característica da desintegração do pensamento dialético, e inclusive serviu de ponte pela qual a dialética saltou para a margem oposta da larga corrente de pensamento teórico: a margem do idealismo.
Entre os pré-socráticos materialistas e Sócrates—Platão, se estabelece justamente a sofística como elo de ligação (e, ao mesmo tempo, de divisão). A partir desse ângulo ela, evidentemente, é, sobretudo, interessante na história da dialética antiga.
Caindo em mãos de mascates popularizadores, a dialética pré-socrática muito logo perdeu o caráter de modo de assimilação da realidade em seus principais contornos (tal e como era para Heráclito, os eleatas e Demócrito) e começa a se converter em técnica da demonstração falsa de teses previamente adotadas e apresentadas de amostra, começa a degenerar em um foco intelectual sui géneris, na arte de vencer nas lutas verbais, inclusive, simplesmente em falsidade verbal, em retórica vazia. O sofista considerava como o nível superior de sua arte a capacidade de demonstrar qualquer tese, o mesmo que sua contrária direta, utilizando nisso aquelas transições dialéticas reais, as modulações dos conceitos, que se revelavam no pensamento dos pré-socráticos. Neste plano, a arte dos sofistas – circenses do intelecto – pode ser comparada com a arte dos ginastas, que fazem o que querem com seu corpo...
O pensamento intervém aqui não tanto em função do conhecimento objetivo da realidade e da fixação das contradições contidas nela, quanto a partir de seu lado formal: e justamente em forma de discurso, de opinião, de afirmação, ou seja, em sua forma verbal. O objeto do “discurso”, da conversação, do diálogo em si, ao sofista lhe interessa bem pouco: segundo o princípio da sofistica este pode ser qualquer um que se queira, não está nisso a questão. A questão está em saber descobrir os paradoxos, a contradição nas afirmações do interlocutor, colocá-lo em um beco sem saída, dissuadi-lo, leva-lo a dizer o inverso que havia dito um minuto atrás.
Naturalmente, que sob essa compreensão o princípio teórico fundamental dos pré-socráticos (o princípio da correspondência do pensamento com a realidade, e do discurso com a situação real das coisas, independentemente deste) decai, em geral, a partir do pensamento sofístico. Aqui não há o que fazer com ele; deixa de ser interessante e necessário.
A sofística começa justamente ali onde a dialética, como arte da análise dos conceitos que expressam a realidade, dá lugar à arte de construir o discurso sobre a realidade. Naturalmente que as dificuldades teóricas relacionadas com a dialética das categorias objetivas (tais como o singular e o universal, o único e o múltiplo, a parte e o todo, o ser e o não-ser etc., etc.) imperceptivelmente se transforma aqui em objeto de um jogo de palavras e das ambivalências contidas nessas palavras, ou seja, com as contradições de um plano exclusivamente semântico...
Com isso, propriamente, é que a sofística se faz merecedora de sua má fama: a fama de Heróstrates pela dialética. E se Demócrito permaneceu inscrito na memória como criador do conceito de “átomo”, a sofística é relembrada sob o aspecto e o gênero dessa anedota:
“Diga-me, tens uma cachorra?” – “Sim.” – “Ela tem filhotes?” – “Sim.” – “Quer dizer que sua cachorra é mãe?” – “Porque não?” – “Significa que tens uma mãe cachorra, e você é irmão dos cachorros”... E continua nesse mesmo espírito. “Deixou de matar seu próprio pai? Responde: sim ou não?” “Se de você cai um cabelo te torna careca?” – “Não.” – “E se cai outro?” – “Não.” – “E mais um?” E assim enquanto o interlocutor não descubra com amargura que, com seu consentimento, o tornaram um careca, e à pergunta: “E mais um?” – Resposta: “Sim.”
Está claro que a dialética sofística é um jogo, mas um jogo com coisas muito sérias, e um jogo irresponsável, na medida em que não faz distinção entre tais conceitos como “calvície” e “bem-estar da pátria”, distraindo-os com uma volta ao contrário, e assim e assado; e por isso, nas questões mais sérias se forma a ideia, ao final de tudo, perfeitamente sem princípios... Não é de assombrar que os entretenimentos dos sofistas despertaram em conhecidos círculos de Atenas não só assombro, mas também temor. Temor pelo futuro de sua polis, de seus cidadãos, “pervertidos” por filósofos errantes, e que além disso cobravam prata por isso...
Se aplicamos às características da sofística os princípios posteriores de classificação das direções filosóficas, o mais razoável de tudo é coloca-la na lista do idealismo subjetivo. Para ela não há e não pode haver uma verdade comum para todos. Há somente uma massa de opiniões. Há tantas opiniões quanto existem indivíduos. Cada qual tem sua opinião. E cada qual tem tanta razão como o outro, seu contrário, na medida em que cada qual está formado, educado e vive a seu modo, e vê e compreende o mundo do seu jeito. E aquilo que tomam por “verdade” é não mais que uma opinião individual, que alguém foi capaz de impor a todos os demais. Uma das consequências inevitáveis de tal versão da dialética resultou ser o ceticismo absoluto com relação às possibilidades do conhecimento do mundo exterior; como ele é em si não sabemos e não podemos saber, e não há porque gastar forças em tentativas inúteis para conhece-lo, para definir ao longo dos acontecimentos sequer certos contornos, regularidades, sequer certo “Logos”. Tudo que eu posso dizer sobre ele é o que pareça, o que me parece para mim, e somente a mim. Gosto do mel, para mim é doce. Meu vizinho está seguro de que é amargo, não é saboroso. Pode ser. E eu estou certo, tanto quanto ele; nossos órgãos dos sentidos não estão estruturados de forma igual, o mel a mim parece doce e a ele amargo. Outro pode dizer, como eu, que o mel é doce. Em palavras, ele está de acordo comigo, mas como eu sei o que está por atrás de sua palavra “doce”? As palavras são as mesmas, sim, mas ninguém pode dizer se expressam “uma e a mesma coisa”...
O pensamento, fixado pelos sofistas nessa forma, na qual o pensamento realizado individualmente existe “para outro”, como uma representação conformada verbalmente, como discurso, como conto, se interpreta, contudo, como expressão de uma vivência estritamente individual, estritamente singular, de um estado da “alma” individual (ou do “corpo”: qual é a diferença?) não repetível, embora apenas por uma segunda vez.
Os sofistas, contudo, pela primeira vez viram na palavra esse elemento peculiar, esse elemento no qual se realiza o pensamento como essa forma na qual, segundo expressão de Hegel, “o espírito somente se encontra para si como espírito”. Em seus olhos o pensamento e o discurso se mesclavam (ao que contribuía também a circunstância de que em grego a palavra “logos” designa tanto o discurso, como seu sentido, seu significado). Como resultado, o aspecto lógico-filosófico da consideração do pensamento perfeitamente se mesclava neles com o linguístico, e a análise do “discurso”, em essência, se substitui por uma análise do mesmo estritamente formal, e o lugar da lógica (a dialética) criada pelos pré-socráticos, o ocupa a retórica, a gramática, a semântica, a sintaxe.
E não casualmente, a “semasiologia”(21) contemporânea toma sua genealogia de Protágoras. A análise das categorias (ser, movimento, continuidade e descontinuidade etc., etc.) cede lugar à análise dos sentidos e significados das palavras. Contra tal análise não há nada de ruim a dizer, [mas] na medida em que este imediatamente se adianta atrás da solução de um problema filosófico (a relação do pensamento para com o mundo ao redor), portanto este não é outra coisa que sua solução idealista subjetiva. Tanto na Grécia antiga, como em nossos dias.
Contudo, o idealismo subjetivo dos sofistas, expresso no aforismo de Protágoras (“O homem é a medida de todas as coisas”(22): e justamente o homem como ser singular entendido atomisticamente, como indivíduo), ao longo do desenvolvimento da filosofia logo resulta somente uma forma transitória para o idealismo objetivo, uma forma não desenvolvida do idealismo como campo na filosofia. Na medida em que a realização consequente do princípio idealista subjetivo é perfeitamente igual a um suicídio, a uma autodestruição da filosofia como teoria, sua conclusão inevitável se transforma aqui em um relativismo absoluto, um pluralismo absoluto de opiniões individuais que não conhece fronteiras nem limites, um completo ceticismo: tanto em relação com o mundo exterior, como em relação com o próprio pensamento e em relação com outro homem. A categoria de verdade objetiva desaparece por completo: com ela simplesmente não há o que fazer...
Em suas conclusões extremas (e os gregos eram bons nisso e sem medo iam até o fim), a sofística chega justamente a esse fim: o indivíduo com suas vivências não repetíveis resulta a única medida e o único critério tanto da “verdade” como da “correção” e da “exatidão”, e o “pensamento” se reduz à arte do engano verbal consciente, a arte de passar o individual como universal (o qual em si não existe e não pode existir), à habilidade de operar com as palavras de uma forma tão destra, para impor a própria opinião individual a todos os demais. O “universal”, o “único” se torna simplesmente em ilusão, que tem somente existência de palavra; e a filosofia, arte da eloquência, da retórica, da “erística”(23). Ou da “dialética”, já no sentido peculiar sofista dessa palavra...
Assim mesmo, o problema da relação do saber alcançado pelo pensamento para com seu objeto, para com seu protótipo (para com o mundo exterior) se elimina da ordem do dia por essa posição como um problema insolúvel e “falsamente levantado”. Isso é exatamente o mesmo que faz hoje o neopositivismo.
Mas o próprio problema não desaparece porque uma determinada escola na filosofia o declare inexistente. Por isso é que cedo ou tarde a versão idealista subjetiva do pensamento e o saber lhe cede o posto ao idealismo objetivo, o qual não escapa do problema, mas sim que o levanta de novo em toda sua nitidez e procura combater o materialismo justamente na questão sobre a significação objetiva do saber.
Na história da filosofia antiga isso se produz como uma virada desde o materialismo espontâneo e a dialética dos pré-socráticos até o idealismo objetivo de Platão e Aristóteles. Como figura intermediária nessa evolução intervém Sócrates.
Sócrates se aproxima muito dos sofistas: ele também se afasta resolutamente da investigação da natureza fora do homem, da “física” naturfilosófica dos pré-socráticos. Toda sua atividade intelectual transcorre na esfera da ética (em sua ampla compreensão antiga). Coincidente é também sua compreensão da “dialética”: para ele esta também é acima de tudo a arte da discussão, na qual ele não cede ao sofista mais manhoso; e os contemporâneos não casualmente o confundem com os sofistas, o que se faz evidente na comédia de Aristófanes A Nuvem, onde este é representado sentado em um cesto tagarelando típicos discursos sofistas. Contudo, aqui amadureceu uma posição completamente distinta.
É necessário, é claro, contar que nosso conhecido filósofo Sócrates é somente um pseudônimo sob o qual se esconde Platão, o autor dos “diálogos socráticos”. E claro que o Sócrates de Platão não é de todo o Sócrates historicamente certo. Este é um Sócrates corrigido, “melhorado”, revisado por Platão; mas com pleno direito, na medida em que as tendências fundamentais de sua atividade realmente levaram ao caminho do platonismo. Eram homens de um mesmo círculo, do mesmo humor, das mesmas preocupações: do mesmo círculo aristocrático que via no pensamento dos sofistas uma ameaça à estabilidade ateniense.
A base terrena do platonismo é, claramente, o temor plenamente compreensível da aristocracia ateniense, que via que a degeneração da democracia em “anarquia” – que tinha justamente na atividade dos sofistas sua expressão teórico-filosófica – ameaçava a cidade com grandes desgraças. A salvação da polis natal com sua cultural, Platão (representando, claro, não somente a si mesmo, mas também a um amplo círculo de seus correligionários) via na afirmação da autoridade de algum sistema de princípios sólidos do alcance ético-político, de normas comuns de comportamento e de relação para com os acontecimentos: aquele mesmo “único” e “universal” que foi colocado em proibição pelo pensamento dos sofistas. A questão era que “a liberdade subjetiva atuava como algo que levava a Grécia à morte”(24). Sim, a democracia ateniense realmente era impotente, descobrindo a todo momento seus aspectos negativos. Sim, não pode se sustentar uma cidade onde cada um vá por sua conta, como átomos, e onde o vínculo comum dos cidadãos, sua unidade, garantida pelas normas comuns de conduta e pensamento, não só começa a parecer, mas sim que na prática se converte em ficção, e a conduta de cada qual é ditada por seu interesse “particular”...
A atividade dos sofistas, sua filosofia, começou a tomar o lado dessas consequências fatais como uma charlatanice eloquente, que escondia em si o interesse particular que não contava com os interesses da polis.
Platão também intervém como o mais consequente defensor deste princípio.
A “dialética” sofista é conhecida maravilhosamente por Platão; conhece sua força destrutora, e por isso compreende que essa força é impossível de vencer se não se é mais forte que ela, se não se toma sua melhor arma, se não se toma esta nas próprias mãos, se não se ergue em defesa de uma “boa causa”: o “bem de Atenas”, o bem do todo, o bem do universal, o bem do único... A dialética deve ser não somente uma arma de destruição, de dissolução dos princípios gerais sobre os quais se fundamenta e pode se manter a glória moral e política de Atenas; mas também deve ser uma arma de criação, uma arma de conservação e fortalecimento desses princípios. O interesse do indivíduo deve encerrar ali onde se trate dos interesses da polis, do Todo, do Universal, do Único e de seu Bem.
Por isso se explica plenamente esse pathos combatente com o qual Platão amplia a força de seu talento como escrito para a sofística e o atomismo. Demócrito e Gorgias eram para ele o mesmo mundo encardido; neles ele vê a mesma fundamentação teórico-filosófica da anarquia, da divergência, da arbitrariedade. E é que a projeção do atomismo de Demócrito na esfera da ética levava às mesmas conclusões da sofística: o bem do homem entendido atomisticamente, “a melhor disposição da alma do indivíduo”, o individualismo (em grego antigo “átomo” significa o mesmo que em latim “indivíduo”).
A ferida só pode ser cicatrizada por aquela mesma arma que a produziu: a dialética. E Platão a toma para se armar, tendo em conta a destruição das “falsas” representações e, ao mesmo tempo, a confirmação e fundamentação das “verdadeiras”. O principal inimigo para ele era a naturfilosofia dos pré-socráticos, representada na figura de Demócrito com seu “atomismo”, com sua interpretação “corporal” do “ser” e o “não-ser”, do “um e múltiplo”, do “divisível e indivisível” etc., etc. Demócrito era para Platão um inimigo mortal; há aqui uma guerra de aniquilamento, guerra sem compromisso, e em toda a linha Platão formula suas concepções como antítese direta a essa doutrina odiosa. Inclusive nas questões matemáticas, na compreensão da essência da geometria e de sua relação com a realidade sensorial. O átomo de Demócrito é corporal, tridimensional, e as representações geométricas são apenas abstratos dele, projeções bidimensionais do “corpo”. Platão destrói o “corpo” de “figuras”, “imagens”, “eidos” bidimensionais – isto é: incorporais; elas são para ele a realidade mais certa e genérica da geometria, mais que o “corpo”; e com isso atrai para si as simpatias dos matemáticos, para quem as abstrações do ponto, a linha, a área, representam algo primário, mais que o corpo “tridimensional”, mais que a estereometria(25)... E é que no pensamento do geómetra, o corpo realmente se forma e se delimita pela área, a área por linhas etc., etc. Estas não são “abstrações” do corpo, e sim aqueles elementos primários dos quais está formado o “corpo”, de cuja união surge o corpo...
A relação de Platão para com a matemática é uma questão complicadíssima, mas o fato é o fato: as ilusões idealistas de Platão coincidem aqui com aquelas ilusões que a matemática contemporânea a ele criou por conta própria, em detrimento da essência de suas abstrações e suas relações com a realidade empiricamente percebida.
E na medida em que Demócrito entrou na história não somente como filósofo, mas também como matemático, que transmitiu a ideia – com base em seu atomismo – do cálculo infinitesimal, que resolveu a tarefa de calcular o volume da esfera, da pirâmide e de outras figuras, que explicou à sua maneira o segredo da constante π e o fenômeno da incomensurabilidade da diagonal do quadrado como um de seus lados, Platão apresenta o combate neste plano.
Mas, o principal recurso “fatual” de Platão em sua guerra contra o atomismo e a sofística é, está claro, o próprio fato que milênios mais tarde se mantém como obstáculo para o materialismo (e para o idealismo subjetivo) e, ao mesmo tempo, solo para o idealismo objetivo: isto é, acima de tudo, o fato real do domínio do “todo” social sobre o indivíduo. O sistema historicamente desenvolvido da cultura, contraposto ao indivíduo como sistema hierarquicamente organizado de normas gerais que determinam a atividade do indivíduo em qualquer esfera e que “define” sua conduta e pensamento em situações singulares, muito mais rigorosamente que os desejos, opiniões e impulsos dos próprios indivíduos. Com as limitações ditadas por estas normas (normas da cultura de vida, normas do direito, da moral, e depois também da gramática, da sintaxe e outras mais) o indivíduo se vê obrigado desde a infância a contar com algo independente por inteiro dos caprichos e da vontade consciente, com algo inteiramente objetivo. Essa “objetividade” singular (quer dizer, a independência em relação à consciência e à vontade de uma pessoa em separado) se diferencia bastante essencialmente da objetividade natural. Ela é criada pelos próprios homens (seres dotados de consciência e vontade); o “pensamento” a vê como um produto deles, que adquire uma existência separada deles (“objetiva”). E, na medida em que o indivíduo “se relaciona” com esse mundo singular de “normas” ao longo de sua formação, na medida em que ele se converte em “cidadão” (isto é, em representante de uma cultura dada), apropriando-se delas uma vez prontas, como algo “geral”, e logo guiando-se por elas em cada caso separado, essas “normas universais” tornam-se para ele a significação de formas “a priori” (dadas de antemão) de sua própria atividade.
Em geral e em sua totalidade este é o mesmo fato, o qual mais tarde adquiriu o título em Kant de “formas transcendentais apriorísticas da sensorialidade e do entendimento” e em Hegel de “formas lógicas absolutas” (ou seja, que não surgiram de qualquer lado e sob qualquer condição).
Essas formas da atividade humana não podem ser entendidas nem “deduzidas” diretamente “da natureza”. Da investigação da natureza não se pode compreender nem as particularidades da democracia ateniense, nem o regime de castas do Egito, nem os quarteis militares de Esparta: isso o entende Platão magnificamente. E aqui não há ainda uma gota sequer de idealismo. “Da natureza diretamente não desmascarará nem a um regierungsrat” (informante secreto) – diz também, com pleno direito, o materialista Ludwig Feuerbach. Essa é uma objetividade peculiar, não natural, a objetividade dos postulados e das instituições sociais que os conservam. É uma objetividade, em essência, ideal, conformada historicamente, que não encerra em si “nem um grão de substância sensorial” (como, por exemplo, o valor ou o “custo” da coisa).
O enigma deste gênero de “formas objetivas”, que determinam a atividade humana, sua evidente “idealidade”, ou seja, o fato de que elas não têm qualquer coisa em comum com a forma corporal, sensorialmente perceptível, do corpo em que elas estão “coisificadas”, “realizadas”; este enigma sempre serviu de solo nutritivo para o idealismo objetivo; o idealismo, cuja forma clássica criou justamente Platão, e sua espécie definitiva, Hegel.
Essas formas “alienadas” – “personificadas” na substância da natureza – são em essência formas (modos) da atividade social humana, da atividade do ser pensante. Na própria naturezas elas simplesmente não se encontram; são “introduzidas” na natureza pela atividade formadora do homem (como, por exemplo, no oleiro de barro faz uma jarra, e logo a imagem ideal – quer dizer, somente representada – da jarra que há na imaginação do trabalhador se reproduz em um conjunto de exemplares semelhantes uns aos outros, que reproduzem o mesmo protótipo (“ideal”), a mesma “ideia”, a mesma intenção, o mesmo plano.
Tendo diante dos olhos este “modelo” é fácil compreender também a lógica do pensamento de Platão, a essência do “platonismo”, e, juntamente, também a do hegelianismo, para o qual todo o mundo sensorial é somente um conjunto colossal de cópias reproduzidas muitas vezes a partir de um e mesmo original incorpóreo (somente imaginado)...
O sistema de Platão (e, posteriormente, o de Hegel) está desenhado realmente a partir de esquemas muito simples da atividade – conformada e orientada a um objetivo – que realiza o homem social, que complementa na substância da natureza uma determinada “forma”, que não é própria dessa natureza em si, seja a forma da jarra ou do machado, a forma do “valor” ou a forma (estrutura) de um satélite artificial da Terra, uma norma gramatical ou moral; na natureza como tal essa forma não será vista, na argila não está escrito que ela é obrigada a se converter em jarra. Essa é a forma “sobrenatural” (sócio-histórica), realizada na natureza, do ser das coisas, de sua determinação sócio-histórica, de seu papel e sua tarefa no sistema da atividade social humana.
Quanto à cultura em relação ao indivíduo (ou seja, o sistema historicamente formado de normas de conduta e atividade) intervém como algo determinante de todas suas ações, portanto, esse mesmo indivíduo com seu corpo se interpreta nesse sistema como uma “encarnação” singular do “universal”, da norma geral que expressa o interesse do “todo”, do “único”...
Quanto ao sistema de normas gerais, pelo qual se regula a relação social humana com a natureza (com todo o “corporal”, incluído seu próprio corpo), se contrapõe verdadeiramente ao indivíduo como uma realidade internamente organizada, como uma realidade (“objetiva”) existente fora e independentemente do indivíduo, com cujas exigências ele está obrigado a contar não menos, e sim mais e com maior atenção, que com os desejos de sua alma “singular” (ou de seu corpo, não importa), portanto, a um indivíduo socialmente formado, a concepção de Platão e de Hegel imediatamente parece mais convincente, mais adequada a sua experiência vital que as teorias dos pré-socráticos. Aqui, do lado de Platão, está a força do fato – do fato registrado por ele, mas (como em Hegel mais tarde) incompreendido (ou, o que é o mesmo, compreendido falsamente).
Mas aqui logo aparece um novo corte no objeto de investigação: se os pré-socráticos e os sofistas procuraram compreender o “pensamento” investigando o modo da relação do homem singular (compreendido por eles como completamente corporal) para a natureza de igual modo corporal, para todo o restante; em Platão, contudo, a linha divisória entre o “subjetivo” e o “objetivo” passa através do corpo do próprio homem, dividindo-o na “metade”: em corpo e alma. Na qualidade de ser sensorial objetivo, o homem pertence ao mesmo mundo das coisas fora dele, e, portanto, a representação sensorial do indivíduo sobre as coisas é um fato que pertence ao mundo sensorial, “material”. Ao mundo exterior e à sensibilidade do homem, agrupados em uma categoria, se lhe contrapõe a “alma pensante” (como princípio incorpóreo, ativo, formador). E se o “sensorial” é a esfera do singular, do casual, do individual, a alma pensante pertence ao elemento do Universal, do Todo, do Um.
Isso, em geral, é o mesmo que dissera também dois mil anos depois Hegel. O “grão racional” dessa posição se encerra na descrição do “lado ativo” da relação do homem social com a natureza, incluindo a natureza do próprio corpo, cujas funções se “determinam” pelas normas da cultura – mais ainda, enquanto mais se desenvolve.
Na pessoa de Platão o pensamento humano realiza a reflexão, se dirige para si mesmo, para o sistema daquelas normas gerais, cujas leis regulam o processo do conhecimento pensante. Como objeto do pensamento aqui aparece o próprio pensamento, as categorias, nas quais este acomete a reelaboração das imagens sensoriais. Originariamente essa virada "para si" não podia nem transcorrer de outra forma que não fosse na do idealismo objetivo, ou seja, na forma da representação de que o sistema das normas universais da atividade do homem é uma realidade independente, contraposta a todo o sensorial, internamente organizada, embora uma “realidade” ideal, desprovida da substância da sensorialidade.
Em outras palavras, na história da filosofia antiga, Platão leva às últimas consequências algo similar àquilo que fez Hegel na filosofia moderna: na prática ele investiga a consciência social de seu tempo, historicamente desenvolvida, com sua força espontânea se impondo ao indivíduo; descobre que os princípio universais que se desenham na análise da consciência, são em essência esquemas ideais não criados eternos e imóveis.
Contemplando a prática real do pensamento a ele contemporâneo, Platão facilmente observa que o homem no próprio ato de compreensão do fato singular, no próprio ato da expressão verbal deste fato já se utiliza de uma determinada categoria universal, um determinado ponto de vista universal do fato, através do qual este fato é visto exclusivamente tal e como é compreendido. Em outras palavras, Platão fixa aquela circunstância de que o homem, em sua relação ativa com as coisas – seja em uma ação real ou em uma ação cognoscitiva – sempre se depara sobre o solo de uma norma, conceito ou categoria universal – desenvolvida na prática – e que justamente a norma ou a categoria, e não o fato sensorial singular como tal é o verdadeiro fundamento da postura “racional” ou da consciência sobre a coisa.
E, se os sofistas reduziram o problema do universal ao problema do significado da palavra, ou seja, a uma questão exclusivamente semântica sobre os limites de aplicação da palavra, Platão leva a questão a outro plano, mais profundo. À primeira vista, ele também investiga o significado das palavras, palavras tais como o “bem”, a “justiça”, a “beleza” ou a “verdade”, o “ser” ou o “múltiplo”. Contudo, aqui, na prática, se realiza uma investigação distinta do todo, muito mais profunda. A definição exata daquele “sentido” que lhe dá o homem à palavra é, para Platão, somente a premissa de uma verdadeira discussão sobre a essência da questão, sobre o sentido do “objeto” do diálogo. O sentido exato da palavra, segundo Platão, pode ser estabelecido somente de acordo com o esclarecimento do sentido do “objeto”, e assim com esta palavra somente é designado, e não ao contrário, como ocorre com os “erísticos” (quer dizer, com os sofistas).
Mas o “objeto”, se relacione com a atividade social do homem ou com a natureza, sempre tem para o homem um “sentido” objetivo, que não depende do capricho individual de quem fale. Esse mesmo “sentido do objeto”, no sistema da vida social humana, é tomado em geral pelo idealismo objetivo também imediatamente pela definição absoluta do próprio objeto em si, por sua designação eterna, invariável e, além disso, colocada pelo espírito no sistema da realidade. Dentro realmente da atividade humana, o “significado” de qualquer objeto pode ser facilmente relacionado com o “bem comum” como princípio supremo. A representação idealisticamente distorcida sobre o “bem” do organismo social é também em Platão esse princípio supremo com o qual se relaciona qualquer representação singular e qualquer “opinião”, esse critério universal, a partir do qual se mede a “veracidade” dessa “opinião”.
O pensamento – a consideração pensante das coisas – se interpreta em Platão como capacidade de captar a ordem “universal” das coisas, com a qual cada fato singular, cada postura, fenômeno ou opinião têm que se relacionar. Em outras palavras, no sistema de Platão, as coisas são tomadas bruscamente como idealizadas, como encarnações singulares daqueles “gêneros” e “espécies” que estão expressados em um sistema de conceitos e categorias socialmente desenvolvidos, no esquema cosmovisivo da consciência social a ele contemporânea. Dentro desse esquema cada “gênero” e “espécie” tem um “sentido” plenamente determinado, que expressa o papel imediatamente objetivo das coisas no interior do mundo humano, no interior do ser social das coisas (ou seja, de seu “ser-para-o-outro”, para o homem social que produz sua própria vida).
O idealismo objetivo, tanto em Platão como mais tarde em Hegel, reside, em geral, em tomar diretamente o papel objetivo da coisa no interior de um organismo social, a forma histórico-concreta de seu ser, por uma característica absoluta, eterna e imutável. Em outras palavras, o papel objetivo – isto é: existem fora e independentemente da consciência – da coisa para o homem (não para o indivíduo, e sim para o homem social, total!) se desta por seu “conceito”, pela expressão de sua essência imanente.
Assim, no interior do sistema de relações sociais dos tempos de Platão e Aristóteles, o trabalho físico é tarefa de escravo, o trabalho é um escravo. Essa disposição de coisas não tem lugar na consciência, e sim na própria realidade objetiva. Essa forma historicamente transitória é tomada por uma forma conforme a “razão”, por uma forma conforme o “bem”. O “autêntico” e “verdadeiro” ser da coisa cicatriza dessa maneira com sua designação no interior de um sistema dado, historicamente formado, de relações sociais entre os homens e as coisas, com seu papel no processo de realização das extremidades do homem. Portanto, o “bem” funciona com o fim supremo, “universal”, com o qual se relaciona qualquer fato singular e único, ou seja, a necessidade idealisticamente compreendida de conservação do “todo”, de todo o sistema determinado de relações dos homens e as coisas, portanto, a categoria “bem” perde seu caráter estritamente ético e se converte em pedra angular de todo o sistema de conceitos que expressam os “gêneros” e “espécies” das coisas. A contemplação de todas as coisas sob a categoria do “bem” é também, para Platão, o princípio metodológico superior da compreensão objetiva, da elaboração daquela definição do objeto que expresse seu lugar e papel no sistema cosmovisivo.
Por isso, o idealismo objetivo está indissoluvelmente ligado ao princípio teleológico. O esquema ideal da realidade adquire em Platão também o caráter de uma construção piramidal, na qual o “bem” constitui o princípio supremo “indeterminado”. Todas as categorias restantes de “gêneros” e “espécies” se encontram aqui em uma relação de subordinação, intervêm como etapas da concreção do “bem” universal. Na forma do “bem”, Platão encontra aquele ponto de vista geral estável, com o qual as coisas são vistas tal “como verdadeiramente são”, e não tal como elas parecem ao indivíduo; e, ao mesmo tempo, são o critério com cuja ajuda pode “medir” o valor da opinião individual. Isso é possível porque o próprio indivíduo com suas opiniões realmente está incluído no sistema da realidade e se conduz dentro dessa, em correspondência com aquele esquema ideal, o qual supostamente também clareia a razão pensante com a ajuda da dialética.
Na vida real o indivíduo se relaciona com qualquer coisa tal e como existe seu “conceito”, quer dizer, seu papel e seu “desígnio” socialmente humano – e não puramente natural – expressados na consciência. Esse “conceito” se contrapõe tanto ao indivíduo como à imagem sensorial, diretamente natural, da coisa na consciência. Na medida em que o indivíduo em suas relações com as coisas realmente se subordina a esse conceito, no qual se expressa o poder social sobre as coisas, contraposto ao próprio indivíduo como força estranha e independente dele, o “conceito” ao final intervém como o “autêntico” ser das coisas, muito ideal.
O idealismo objetivo mistifica também não outra coisa que o ser prático humano das coisas, fora da consciência. Dessa forma este, de um lado, escapa do absurdo do solipsismo(26), e, de outro, de novo leva a questão da relação do pensamento para o ser a um plano propriamente filosófico e aqui se enfrenta ao materialismo. Um esquema ideal da realidade, que relaciona todos os “gêneros” e “espécies” das coisas com o “bem” como seu próprio princípio universal: tal é o esquema, segundo o qual o homem social se orienta na verdadeira realidade existente fora da cabeça. Não é a força da razão pura. Se subentende, a que o compele a atuar segundo este esquema, e sim a força do organismo social que se contrapõe tanto ao indivíduo como à natureza.
Por isso é que no esquema das ideias de Platão, encontra também sua expressão idealista, invertida a realidade social humana das coisas, independente da consciência.
A dialética em Platão consiste também em saber seguir sistematicamente os contornos daquela realidade, dentro da qual vive e atua o homem; consiste na arte da classificação rigorosa de “gêneros” e “espécies”, de sua diferenciação e subordinação. Pensando os “gêneros” e “espécies” o filósofo tem a ver diretamente com aquele esquema ideal pelo qual está construído o mundo, com aquele esquema dentro do qual cada coisa ocupa um lugar rigorosamente determinado e no qual adquire significação. Em outras palavras, no pensamento é que se realiza imediatamente a ordem ideal “inteligente” das coisas.
E, na medida em que se trata do saber, em Platão se leva em conta somente o saber racional: o saber adquirido pela razão com ajuda da dialética, com ajuda da arte de captar a ordem racional das coisas. A percepção sensorial não é conhecimento: é um fato que pertence à esfera do “material”, sensorial-objetal. Em outras palavras: a teoria do saber coincide organicamente nele com a dialética como modo de contemplação pensante das coisas.
A partir do ponto de vista subjetivo, a “dialética” consiste em “saber perguntar e responder”, ou seja, investigar diretamente não as coisas sensorialmente perceptíveis, e sim as coisas como elas encontraram sua expressão ideal na opinião, na determinação. A dialética rastreia as opiniões do interlocutor, que perambulam de um lado ao outro e, confrontando elas entre si, demonstra que se contradizem umas com as outras ao mesmo tempo, abordando as mesmas coisas, na mesma relação, no mesmo modo.
A dialética, consequentemente, consiste em saber descobrir a contradição nas determinações do objeto, e depois disso encontrar a solução dessa contradição pela via de mostrar como a contradição revelada se extingue em um gênero superior ou, ao contrário, como um gênero superior se desmembra nos contrários que contém. Em seus diálogos, Platão demonstra magistralmente o fato de que a definição exata e rigorosa do termo que significa o objeto, inevitavelmente leva ao aparecimento de outra definição que parte dos mesmos fundamentos, mas que é diretamente contrário à primeira. A contradição entre a totalidade concreta do objeto e a abstração racional do mesmo é fixada por Platão, consequentemente, nessa própria forma na qual essa contradição se realiza efetivamente no pensamento: como uma contradição entre duas abstrações racionais (por isso seria útil que os diálogos de Platão fossem relidos pelos lógicos contemporâneos, que veem na “definição rigorosa e exata dos termos” a panaceia de todas as desgraças e dificuldades do conhecimento pensante).
A partir do ponto de vista objetivo, então, a dialética é a expressão imediata, mais exatamente: a encarnação do esquema ideal de gêneros e espécies da realidade, dentro do qual cada objeto adota somente um sentido, uma significação racionalmente alcançada. Em Platão não havia e não podia haver uma diferença de princípio entre a dialética como modo do conhecimento pensante (a “lógica”) e a dialética como doutrina da realidade “presa pela razão” (a “ontologia”, se usamos este termo extremamente condicionado). Sua coincidência se encerra no princípio fundamental, na própria colocação da questão, surgida da discussão com a sofística.
Se os sofistas, na qualidade de “medida de todas as coisas” tomam o indivíduo, para Sócrates-Platão, como exatamente formulou Hegel, “o homem na qualidade de pensante é a medida de todas as coisas”. O pensamento é justamente aquela capacidade que permite ver as coisas diretamente através do prisma da universalidade. O próprio homem, visto na qualidade de indivíduo pertencente ao mundo da realidade sensorialmente perceptível, é uma coisa como qualquer outra para a consideração pensante. O mesmo, por estados subjetivamente matizados e por sua peculiaridade de “espécie”, se faz aqui objeto de contemplação supostamente “a partir de fora”. A ele mesmo se aplica uma determinada “medida” universal, um critério expressado na consciência em forma de “sentido” socialmente legitimado da palavra e da coisa ou objeto.
E como tanto a palavra quanto a coisa têm realmente para o homem seu sentido completamente independente dos interesses individuais e singulares (particulares), Platão adota uma posição a partir da qual convicentemente acusa contra os sofistas. O pensamento, então, como capacidade diretamente social, é tomado por ele como capacidade de vislumbrar o significado exclusivamente universal das coisas. No pensamento o homem deve se desassociar conscientemente de sua visão estreitamente individual da coisa, de sua relação de egoísta e interessada para esta e refletir a coisa em seu significado puramente universal.
A dialética, portanto, é definida por Platão como a maior e principal das “depurações”(27), como a “depuração” de todo o individual, singular, casual, interessado, egoísta. A definição deve levar a coisa a sua estrita universalidade abstrata, e somente sob a forma de definição a “coisa” se torna objeto do pensamento, e não da percepção sensorial.
E, na medida em que o conceito verdadeiro, que expressa o “significado” universal socialmente reconhecido da coisa, nasce realmente do confronto dialético das diferentes representações, cada uma das quais pretende uma significação universal, para Platão é fácil poder representar o ato de nascimento do conceito como produto do confronto de uma definição com outra, ou seja, do pensamento consigo mesmo. O mundo das ideias se apresenta em sua imaginação como um mundo construído em si mesmo.
A definição “lógica” (verbal: de “λογος”) deve ser refletida, definida exatamente e, logo, deve contemplar-se como um “objeto” com o qual o homem deve contar como com algo plenamente objetivo e independente dos caprichos casuais e arbitrariedades individuais. O movimento posterior deve consistir no esclarecimento do lugar dessa definição na composição do esquema idealizado, pensado da realidade.
Mas o esquema de ideias em sua totalidade – neste fato é que se apoia a doutrina de Platão como idealista objetivo típico – se contrapõe ao indivíduo como sistema cosmovisivo de representações, completamente independente dele, que expressa finalmente o “interesse” e o “bem” do organismo social. Dessa forma, constitui um ponto de vista idealisticamente hipostasiado(28), impessoalmente universal, daquele todo social, cujo órgão de “autoconsciência” é o teórico pensante. E na medida em que este ponto de vista “universal” se realiza diretamente através dos conceitos universais, que expressam o significado “objetivo” das coisas independentemente por completo do indivíduo, na composição do ser social, os próprios conceitos universais começam a parecer esquemas-protótipos ideais autossuficientes.
Com antinomianismo afiado, Platão opõe também o pensamento sobre o próprio pensamento ao pensamento sobre a realidade sensorialmente perceptível. Em sua filosofia se fazem objeto de análises as definições, os pontos de vista universais já desenvolvidos em seu tempo, e não a realidade sensorialmente perceptível naquela sua espécie em que já foi expressada nas definições universais. Todas aquelas definições, que foram desenvolvidas pelos pré-socráticos como definições das coisas, Platão as contempla como definições de uma realidade incorpórea, presa pela razão, contraposta ao mundo sensorial. E, dessa maneira, ele transforma em objeto de análise específico não outra coisa que o esquema cosmovisivo da realidade historicamente formado, ou, mais exatamente, constituído na luta das diferentes escolas e direções de sua época, pelo qual se guiava realmente a sociedade antiga em relação com o mundo.
Hegel, valorizando o papel de Platão no desenvolvimento do pensamento filosófico antigo, vê que, pela primeira vez fez a “união do precedente”, mas também “levou até o fim”(29).
E, realmente, pode-se considerar que o mérito de Platão no plano do planejamento da questão da lógica está em que fez da investigação e da generalização do desenvolvimento anterior do pensamento filosófico a pedra angular do sistema. Em essência, ele é o primeiro historiador da filosofia entre os filósofos. Justamente neste caminho ele preparou o terreno para Aristóteles, esse verdadeiro ápice em cima do qual a filosofia antiga já não considerou subir.
A figura de Aristóteles no plano de nosso problema apresenta um interesse especial. Se a filosofia grega esboçou todas as esferas do saber das que deve ser composta a teoria do conhecimento e a dialética, o sistema de Aristóteles é o primeiro intento consciente no tipo de criar um resumo enciclopédico de todo o conjunto de conhecimentos teóricos. Em sua doutrina confluíam em uníssono as grandes e transcendentes realizações do pensamento antigo; essa é uma grandiosa bifurcação de caminhos: em sua doutrina convergem, como em um foco, todas as tendências fundamentais do desenvolvimento do pensamento filosófico da Grécia (dentro delas, as mutuamente excludentes), para imediatamente depois se dispersar por séculos. O primeiro intento de dar na Grécia uma síntese orgânica de todos os princípios precursores é também o último; esta levou a uma completa exatidão de expressão a incompatibilidade interna do materialismo e do idealismo, da dialética e da metafísica, como princípios de solução do problema fundamental da filosofia como ciência.
Por isso, não é casual que a doutrina de Aristóteles servisse de fonte teórica comum para algumas direções filosóficas, posteriormente divergentes em princípio. Pela mesma razão, cada um dos pontos de vista atualmente enfrentados sobre lógica e sobre a relação da lógica com a ontologia, tem sempre fundamento em considerar a doutrina de Aristóteles como seu próprio protótipo não-desenvolvido, e a seu autor, como seu partidário e predecessor. Cada um dos pontos de vista sobre essas coisas, contempla como “substancial” e “interessante” no sistema de Aristóteles aquele que tendencialmente leva a si mesmo, e tudo que leva ao ponto de vista contrário valoriza como “carapaça” historicamente desprendida...
Assim, uma conhecida tradição na lógica considera diretamente Aristóteles “pai” da lógica; mas na prática, é somente uma direção plenamente determinada na doutrina do pensamento. Por outro lado, Aristóteles é igualmente o “pai” indiscutível daquela direção nessa ciência que leva à compreensão hegeliana da lógica como doutrina sobre as formas universais de tudo existente, quer dizer, daquela direção, a qual, de acordo com os testemunhos repetidos dos clássicos do marxismo-leninismo, serviu de ponto de partida para a compreensão dialético-materialista da lógica(30).
Essa circunstância faz a análise das concepções de Aristóteles tão difícil como proveitosa: ele pode ajudar a esclarecer a essência das atuais discrepâncias, mas imediatamente converte a doutrina de Aristóteles em objeto de discussão dos problemas atuais. A interpretação dos fatos do passado reflete sempre em si a posição em relação ao presente.
Corresponde reconhecer que o sistema de concepções do Estagirita sobre a questão da relação do pensamento com a realidade é extremamente contraditório em seu interior. De cima a baixo o atravessam rachaduras que são impossíveis de silenciar. Neste se encerram, em uma forma mais ou menos clara, tendência antinomias e mutuamente excludentes.
Contudo, uma coisa é indiscutível: a divisão formal das obras de Aristóteles em lógica, metafísica e teoria do conhecimento, que foi realizada por seus comentadores posteriores, não corresponde com o desmembramento interno do sistema aristotélico. Esse corte passa pelo corpo vivo da doutrina e junto a ele mostra um “cadáver esquartejado”, cortando a doutrina onde é impossível cortá-la.
Acima de tudo, fica claro que as obras reunidas pelos comentadores no Organon(31)não correspondem em qualquer caso, nem por volume, nem por conteúdo, com a doutrina aristotélica do pensamento. E, se vamos entender por lógica a doutrina do pensamento, e não uma das escolas formadas posteriormente, então no Organon entra somente uma parte extremamente insignificante da lógica de Aristóteles.
Por outro lado, aquelas ideias que constituirão mais tarde o fundamento teórico da concepção formal da lógica, no próprio Aristóteles não se contemplam nem se fundamentam para nada no Organon, e sim naquela mesma Metafísica, a qual, segundo essa concepção, não tem qualquer coisa em comum com a lógica no sentido estrito do termo.
As leis do “veto da contradição”, do “terceiro excluído” e da “identidade” são formuladas por ele diretamente como princípios “metafísicos” (“ontológicos”) de tudo o que existe, e nos Analíticos se fala de coisas tais como necessidade e casualidade, o um e o múltiplo, tratam-se questões tais como a relação do “geral” com a percepção sensorial, a diferença entre o saber científico e a “opinião”, os quatro tipos de causas etc., ou seja, de novo coisas que “não tem relação com a lógica propriamente”.
E muito correto estava Hegel: “Aquele que acostumadamente extraem nossos lógicos dessas cinco partes do Organon, represente na prática a parte mais pequena e trivial...”(32).
O mesmo Aristóteles nunca nem em qualquer lugar utiliza o termo “lógica” na significação que lhe foi outorgada posteriormente. E este não é um simples detalhe terminológico. A questão é que em sua concepção em geral não há lugar para tais “formas de pensamento” singulares, que representem em si algo diferente, por um lado, das formas universais de tudo que existe e, de outro, das formas de expressão linguística desse “existente”.
Buscaríamos inutilmente em seus trabalhos a representação do “conceito” como “forma de pensamento”: ele conhece a “forma” das coisas, a qual é percebida pela alma “sem matéria”, e a forma (estrutura) da “linguagem falada”. Não há em Aristóteles uma “forma de pensamento” peculiar, um “conceito”; não porque lhe faltava força de diferenciação, e sim porque tal representação colide contra seus princípios fundamentais; aquilo que chamam “conceito” na lógica escolar posterior, em Aristóteles se desprende diretamente e se contempla como parte da “linguagem falada”: como “termo”, como uma denominação (“ορος”) determinada. Por outro lado, aquilo que Hegel chama “conceito” em sua Ciência da Lógica, Aristóteles o contempla ali onde fala sobre coisas tais como “λογος της ουσίας” (literalmente: “palavra que expressa a essência, a substância das coisas”), como “το τί ην ειναι” (literalmente: “ser aquilo que foi”: expressão correspondente à representação da “forma” como “causa final”, como “enteléquia”(33)) etc.
Não há nele ainda o conceito de “juízo” como algo diferente da “linguagem falada”, da expressão verbal do existente.
Em geral, o próprio termo do “lógico” em seu estatuto significa não mais que o “verbal”, em contraposição ao “analítico”, cujo princípio é a correspondência da linguagem e a realidade. Ele conhece e reconhece somente dois critérios de “correção da linguagem”: de um lado, a correspondência da linguagem com as normas gramaticais e retóricas; de outro, com as formas reais e a situação das coisas. A representação de qualquer outro plano de “correspondência”, da correspondência do discurso com normas “lógicas” especiais, com “formas de pensamento como tal” lhe é perfeitamente estranha, rompe com todos seus princípios fundamentais, com sua filosofia. Entretanto, a lógica escolar o apresenta como “pai” justamente desta compreensão.
O princípio da correspondência do discurso no que diz respeito às coisas é o princípio fundamental de sua doutrina sobre os “silogismos”(34), desenvolvido nos Analíticos; a fonte dos “silogismos errôneos” ele verá na não observância dessa exigência. “A fonte de onde nascem os silogismos errôneos é a mais natural e comum, é justamente a propriedade (e a aplicação) da palavra. Na prática, assim como em uma conversa nós não podemos mostrar as próprias coisas tal e como são em si e para si, e sim que no lugar das coisas utilizamos nomes e signos, de forma igual começamos a pensar que o que justamente se relaciona com as denominações, justamente se relacionam também com as coisas”.
Falamos da composição real da doutrina aristotélica do pensamento (de sua lógica, no sentido autêntico da palavra), pois não há nada mais risível que a opinião de que essa lógica se reduz à doutrina dos esquemas de união dos termos na linguagem falada, nas formas silogísticas.
Aqueles esquemas abstratos de união de termos, em cujo descobrimento e classificação vê às vezes a principal realização de Aristóteles no campo da lógica, não desempenham na composição de sua doutrina nem o papel de objeto, nem o de propósitos de sua atenção investigativa. À parte do fato de que essas figuras se realizam por igual na demonstração “apodítica”(35), tanto como no raciocínio “dialético”, e nos laços estritamente linguísticos do discurso “erístico”. Em outras palavras, com sua ajuda pode se expressar tanto o conhecimento real como a opinião mais pura sobre a situação provável das coisas, e inclusive uma mentira linguística consciente, um focus erístico; uma cadeia de “silogismos”, que se remete a uma premissa arbitrária pré-concebida.
Dito de outra forma, a ele não interessam aqueles esquemas abstratos do discurso que são perfeitamente iguais tanto na “demonstração” apodítica, como na dialética (que parte do “provável”), e na erística, e sim justamente o contrário: aquelas diferenças no conhecimento que se escondem sob essa forma exteriormente idêntica. As figuras silogísticas em si mesmas, como tais, como esquemas puros de união dos termos, têm para ele significação somente como figuras retóricas.
Toda sua atenção investigativa está dirigida ao esclarecimento daquelas condições sob as quais estes esquemas de linguagem resultam formas do movimento do saber real e da demonstração real (“analítica”, “apodítica”) que se correspondem com as coisas.
E quando a interpretação escolástica(36) da lógica aristotélica converte estes esquemas abstratos em critério formal de verdade, então dá a eles um significado justamente inverso ao que lhe deu o próprio Aristóteles. Tomados em si mesmos, estes esquemas não guardam qualquer relação com o conhecimento “verdadeiro”; neles se expressa com igual facilidade tanto a verdade como a mentira erística notória. Em Aristóteles, estas se convertem em formas do conhecimento pensante somente ao longo do movimento analítico do pensamento.
A escolástica eliminou da ordem do dia o problema da veracidade dos “enunciados” que entram nos silogismos, substituiu a questão da correspondência dos enunciados com as coisas pela questão da correspondência dos enunciados com o texto da revelação religiosa. Esta última é, para a consciência medieval, sinônimo de verdade absoluta em sua certeza imediata.
A lógica autêntica de Aristóteles se exibe em dois planos: por um lado, no plano retórico-semântico; por outro, no plano “metafísico”, ou seja, no plano puramente do objeto. E, se ele fala de “formas de pensamento”, então ele as contempla em dois aspectos. Um aspecto: a questão da expressão da realidade nas formas (nas figuras e esquemas) do discurso; o outro: a questão das “formas” das próprias coisas que expressa o discurso.
Essa dualidade se projeta, por exemplo, na definição das “categorias”: por uma parte, estas são gêneros superiores dos enunciados, e por outra: gêneros reais do ser. Não é à toa que os “realistas” medievais encontraram a seu favor nas obras de Aristóteles os mesmos argumentos sólidos que seus contrários, os “nominalistas”. No próprio Aristóteles, na dualidade de suas definições, está já contida a contraposição do “realismo” e do “nominalismo”(37).
Como “forma de pensamento” externa, imediatamente visível, em Aristóteles por toda a parte intervém o discurso (exterior ou interior), suas formas compostas, seus esquemas, figuras e estruturas. A própria forma interior do pensamento, quer dizer, aquele conteúdo que se expressa com ajuda do discurso é a forma da coisa impressa na “alma”.
As palavras, denominações, termos e definições significam e expressam diretamente as formas gerais das coisas, mas em nenhum caso “conceitos”, como se dá na lógica posterior, começando pelos estoicos(38).
Entre a “forma da coisa” e sua expressão linguística está somente a “alma” com sua atividade. E se a palavra expressa diretamente não a “coisa”, e sim a “impressão” dessa coisa na alma, então ele trata essa “imprecisão” como o ser ideal da forma da própria coisa. A “impressão” é a forma da coisa, percebida sem matéria. Não por casualidade, compara Aristóteles o ato da percepção da coisa com a impressão de um selo sobre a cera mole.
A alma pensante, segundo Aristóteles, é mais perfeita enquanto menos tenha “de si”, de sua própria e específica natureza individual no ato de percepção: enquanto mais suave seja a cera, com mais exatidão se inscreverá nela a forma do selo; enquanto mais perfeita seja a alma, mais claramente intervém nela a forma da coisa. A “forma da alma” é a capacidade de receber nela qualquer forma, não aceitando nela nada de si. Isso significa que a alma está desprovida de qualquer tipo de forma especial que não possa se mesclar com a “forma da coisa” no ato de percepção dessa última. Isso significa que a “alma” é, como possibilidade, qualquer forma específica, uma capacidade absolutamente plástica, aquela mesma “forma” atual que nela está impressa em um momento determinado.
Este levantamento da questão está dirigido com toda sua nitidez contra o princípio idealista-subjetivo, segundo o qual o homem, em sua percepção do mundo exterior tem que lidar não com as coisas, e sim somente com os resultados da ação dessas coisas sobre os órgãos dos sentidos, sobre sua natureza singular e única, refratando de início a ação externa. Justamente daqui o idealismo subjetivo tira a conclusão de que o homem não pode saber em geral se existe ou não acaso “na prática” aquele que percebe, eliminando dessa forma a questão sobre a realidade do mundo exterior.
Essa premissa do idealismo subjetivo em geral, Aristóteles a desenvolve em sua análise dos problemas psicológicos. A solução da questão sobre a essência da imagem sensorial na alma individual ele exaure definitivamente no plano da análise psicológica, ou seja, naquele mesmo caminho no qual se resolve na realidade essa questão. A realidade objetiva tanto das coisas singulares quanto das “formas gerais” nas quais existem, não constitui para ele um problema filosófico, visto que no plano psicológico ele a levanta e a resolve como materialista consequente.
Porém, mais nítido se torna diante dele o problema propriamente filosófico: o problema da relação da razão pensante como capacidade universal, como “forma das formas”, com a realidade “autêntica”, “raciocinada”; e da realidade “raciocinada” (da realidade sensorialmente perceptível, do “universal”) para o “singular” e o “único”. Mas justamente aqui é que se apresentam diante dele todas aquelas dificuldades, em torno das quais permanentemente “complica e cai”, retornando no fim aquele mesmo idealismo objetivo que não lhe satisfazia na forma platônica.
“Não há dúvidas sobre a realidade do mundo exterior – observa Lenin nas margens da Metafísica. – Se equivoca o homem precisamente na dialética do geral e singular, do conceito e da sensação etc., da essência e fenômeno etc.”(39).
Em outras palavras, o idealismo objetivo de Aristóteles é consequência direta de sua incapacidade de desenvolver com a dialética o problema do conhecimento pensante. Inconformado com a solução platônica do problema, ele de todas as formas leva em conta magnificamente todas aquelas dificuldades que revelou Platão. Uma solução materialista a essas dificuldades ele não encontra, porém, na intenção de resolvê-las desenha exatamente aquela problemática que tendencialmente leva à lógica em sua compreensão hegeliana.
Na medida em que o pensamento se contempla em Aristóteles não somente a partir do ponto de vista daquela forma externa, na qual este se realiza na alma humana (ou seja, a partir do ponto de vista das figuras e esquemas de sua expressão verbal), mas também a partir do ponto de vista do conteúdo e objetivos de sua atividade, é que surge diante dele o plano “metafísico” de estudo, e com ele, todas as verdadeiras dificuldades filosóficas.
O conceito central da “lógica objetiva” de Aristóteles é, como se sabe, a “ουσία”: a “essência”, a “substância” das coisas. Este conceito está ligado ao problema da definição “verdadeira”, objetiva, quer dizer, a definição que expressa o “gênero” e a “espécie” real da coisa, seu lugar e seu papel no sistema da realidade.
Em outras palavras, se na lógica “subjetiva” Aristóteles se ocupa da questão sobre de em que relação se encontra o nome, a denominação, a designação em relação às coisas sensorialmente perceptíveis, no plano da lógica objetiva essa questão já não lhe interessa (e isso está completamente justificado).
Aqui se desenvolve outro problema totalmente distinto: em que relação se encontra a coisa singular, sensorialmente perceptível, em relação a sua própria “essência”, a “espécie” em relação ao “gênero”. Aqui se fala não da relação do sentido da palavra que designa a “espécie” em relação ao sentido do “nome genérico”, e sim da relação da “espécie” real em relação ao “gênero” das coisas. Em nenhum lugar Aristóteles mescla a questão da relação do geral com o singular, e o único, com a questão da relação da palavra com a coisa única sensorialmente perceptível, como o mesclou posteriormente, por exemplo, a filosofia de John Locke. Pois uma superposição tal do problema do geral e singular com o problema da palavra e a coisa tem sua premissa em uma representação que era perfeitamente estranha à filosofia antiga: a representação segundo a qual o “singular”, o sensorialmente perceptível, é algo mais real que o “geral”; o “real” e imediatamente evidente é somente o “singular”, e o “geral” é somente produto da atividade de abstração humana.
Sócrates e Platão destruíram a sofística com os argumentos da prática real da sociedade a eles contemporânea, ou seja, com aqueles argumentos com os quais se refuta justamente o princípio do idealismo subjetivo. Por esta via Platão demonstrou que o indivíduo (o “singular”) vive e age dentro de certo todo organizado, o qual domina a lei sobre ele, estabelece os marcos e fronteiras de seu arbítrio. O “universal” – como lei e princípio de existência do “todo” – intervém como uma realidade mais, e aquele todo, dentro do qual transcorre a evolução individual, se mantém inalterável, rigorosamente organizado.
Aristóteles parte de uma visão espontaneamente dialética da realidade dentro da que vive o homem, vendo-a como um todo único coerente, como um sistema dentro do qual cada coisa tem sua significação objetiva, independentemente de circunstâncias particulares, de caprichos e opiniões individuais. De modo que o próprio levantamento da questão da relação do “geral” e “singular”, do “gênero” e “espécie”, da “espécie” e “indivíduo” nele não pode levantar por princípio em um plano puramente objetivo, na esfera psicológico-semântica. A palavra ou termo (na medida em que esta não é somente som) é para ele a designação imediata da realidade verdadeira, objetiva, existente fora e independentemente do indivíduo, ou das coisas em seu significado objetivo universal.
A realidade objetiva das formas gerais das coisas é para Aristóteles tão indiscutível como a própria realidade das coisas singulares. Tanto uma quanto outra existem para ele igualmente fora e independentemente da alma humana individual, de sua atividade. A atividade da alma somente reproduz aquilo que “existe” fora e independentemente dela. Isso é materialismo puríssimo, contudo, com todas aquelas debilidades fatais, das quais o materialismo não pode desprender-se até Marx e Engels.
Essa debilidade se encontra já no fato de que a categoria de “realidade objetiva” vem a dar aqui tudo que existe fora e independentemente da alma individual: incluída também a “razão” coletiva do organismo social humano; incluídas as formas universais – formadas historicamente – de atividade do próprio pensamento. De modo que a análise psicológica da “alma” que leva à conclusão sobre a existência das “formas universais” fora dessa alma, não só não resolve o problema cardinal da filosofia, mas justamente o situa em toda sua nitidez. As formas universais as quais se subordina a atividade da “alma” humana – jurídicas, éticas, artísticas e as outras formas de atividade – se contrapõe ao indivíduo como algo situado fora dele, com o que deve contar não menos (e em certo sentido, mais) rigorosamente que com as formas das coisas sensorialmente perceptíveis.
A análise psicológica se detém diante desse fato: ao indivíduo, na qualidade de realidade independente de si, se contrapõe a ele também um sistema de conhecimentos, um sistema de formas universais de expressão da realidade sensorialmente perceptível, um sistema de conceitos, normas, categorias historicamente formadas. O indivíduo não cria ele mesmo essas formas universais do saber (ele as toma já preparadas de outros homens) no processo de sua formação.
Adquirindo conhecimentos (normas, conceitos, categorias, esquemas e formas universais de atividade da “alma”) a “inteligência” individual tem a ver não diretamente com a “realidade” em seu significado materialista, e sim com a realidade já idealizada, com a realidade enquanto já encontrou sua expressão na consciência social, na definição, na expressão verbal.
A apropriação socialmente humana da realidade se realiza diretamente através da conquista do conhecimento, através da conquista dos conceitos e categorias universais. E justamente através da conquista do conhecimento o indivíduo adquire o significado universal (social) das coisas; ou, em outras palavras, as coisas em seu significado diretamente universal.
O fato de que Aristóteles chega justamente daqui a uma solução idealista objetiva da questão fundamental da filosofia não se percebe transparentemente em seus raciocínios do famoso livro XII da Metafísica.
Primeiramente, ele constata que “o ser do pensamento e do objeto não são o mesmo”, levando em conta ao “pensamento”, como atividade subjetiva do homem, a diferença do “objeto” como coisa sensorialmente perceptível. Essa diferença consiste diretamente em que em um caso a “forma” se realiza na “matéria”, e no outro, na palavra, na determinação linguística.
“O assunto, contudo, está em que – continua ele imediatamente depois disso – em alguns casos o conhecimento é [o mesmo que] objeto do conhecimento; no campo dos conhecimento criativos [quer dizer, no campo das “artes”(40)] é a essência tomada sem matéria, e a essência do ser no campo dos conhecimentos teóricos é a formulação lógica(41) [do objeto] e o pensamento [que o concebe]”.
Nessa consideração surge claramente a “base terrena” de seu idealismo objetivo, sua definição pronunciada perfeitamente no espírito de Hegel, segundo o qual “é o mesmo a razão que aquilo que se pensa por ela”.
A dificuldade que repousa diretamente na base de sua inclinação para o lado do idealismo objetivo de Platão está relacionada com a própria natureza do conhecimento teórico.
Aristóteles diferencia rigorosamente o saber teórico (a “razão”) do saber comum, com o que relaciona a percepção sensorial, a opinião e a “inteligência”. O saber comum (incluída a “inteligência”) percebe as coisas tal e como elas existem na realidade imediatamente empírica.
“Tanto a percepção sensorial, como a opinião e a inteligência sempre – como vemos – estão dirigidas ao outro, mas para si mesmas (somente) de uma maneira acessória” – observa ele no mesmo livro XII.
A peculiaridade específica do saber teórico realizado pela “razão” se encerra justamente em que aqui o objeto fundamental é não o “outro” (quer dizer, as formas ligadas à “matéria”, e sim as “formas” como tais, tomadas à margem da matéria, ou seja, as formas na medida em que estão expressadas em uma formulação “lógica” (que em Aristóteles significa verbal).
Em outras palavras, a “razão” está dirigida não a o “outro”, e sim a si mesma, não às “coisas” simplesmente, e sim às coisas tal e como existem na razão, em um conjunto de conhecimentos, em sua determinação universal, no seio de um esquema ideal da realidade. Diretamente significa isso: o conhecimento teórico da coisa se encerra na investigação dos distintos pontos de vista sobre ela, na análise das determinações de sua “essência”.
Se o saber comum percebe aquelas “formas” que estão presentes nas coisas, naquela combinação sua em que estão dadas empiricamente, o saber teórico tende a separar as formas necessárias das coisas das formas casuais, a buscar a “causa” etc.
O saber comum tem a ver com as “formas” tal e como estão realizadas no “outro”, e simplesmente as fixa segundo o princípio: “Corisco é um homem, bípede, instruído, sentado, branco, saudável” etc., etc. Em outras palavras, o princípio do saber comum é o princípio da análise simplesmente empírica e da síntese, que seguem escravos diante da certeza sensível, não importa quão “falsa” e “errônea” seja em si mesma.
Em contraposição ao “saber comum”, com sua dependência escrava do “outro”, isto é, das circunstâncias a ele externas, do singular, a “razão” intervém no papel de juiz em relação à empiria e à opinião que a expressa. Esta não só dá uma expressão verbal ao fenômeno sensorialmente determinado, mas sim o “julga” a partir do ponto de vista de certos princípios universais, propondo estes princípios universais na qualidade de medida de veracidade, na qualidade de medida da correspondência com a “razão”. Como autêntico juiz, a razão aplica ao singular um certo princípio universal e faz isso com o objetivo de investigar quanto esse singular se corresponde com sua própria medida universal, com seu próprio significado universal no sistema de atividade: com sua “essência” ou “objetivo”.
Ao final, Aristóteles se depara frente àquela dificuldade em que cresceu o sistema de Platão, diante da dificuldade que é fatal para qualquer tipo de materialismo, excluindo o dialético. Essa dificuldade está ligada à verdadeira natureza da relação teórica com as coisas, ao papel ativo das determinações universais no processo de conhecimento racional, ao caráter e origem sócio-histórico dessas determinações universais.
O juízo empírico do tipo “Corisco é branco” se comprova por via de sua comparação com os protótipos sensorialmente determinados, e, por outro lado, com os significados dos termos geralmente aceitos. Completamente distinto são os juízos daquela espécie que Hegel chamou “juízos do conceito” (“este ato é bom”, “essa casa está boa” etc.). Aqui se fala não da correspondência da expressão verbal com o fato singular, e sim da correspondência do fato singular com certo critério universal. Contudo, toda a dificuldade se encerra justamente em saber de onde e como se toma na inteligência individual essa definição universal e por qual via se pode esclarecer seu próprio conteúdo, o “significado verdadeiro” de palavras tais como “bem”, “belo”, “causa”, “essência”, “todo”, “parte” etc. Em outras palavras, todo o problema se reduz ao significado objetivo das categorias, aquelas determinações universais, através das quais a inteligência conhece as coisas: sua natureza especial consiste que “com sua ajuda e em base nelas se conhece tudo mais, e não nelas, através daquilo que repousa sob elas” – com nitidez levanta Aristóteles a essência do problema.
“Aquilo que repousa sob elas” na expressão verbal intervém também como “sujeito” (“υποκείμενα”): essas são as coisas singulares sensorialmente perceptíveis. Como tais, elas não podem ser nem protótipos, nem critérios de veracidade das determinações universais, na medida em que propriamente existem e se expressam graças à presença de “primeiros princípios” universais.
Nas redes da natureza dialética da relação do universal com o singular é que se rompe o pensamento de Aristóteles. Por um lado, a “essência primeira” intervém como “singular”, por outro, como “universal”; por um lado, como forma indissoluvelmente ligada à “matéria”, por outro, como “forma” pura em si, como “enteléquia”, como “aquilo, graças ao qual” a coisa é tal e como é.
A genialidade de Aristóteles no plano desse problema se descobre em que ele não se detém nem um instante naquele ponto de vista achatado, de acordo com o qual o “universal” se forma por via de uma simples abstração empírica, por via da separação de todo o “igual” que tem as distintas coisas e fenômenos singulares. A propósito, depois daquela crítica demolidora que foi submetida ao empirismo absoluto dos sofistas nos diálogos de Platão, este ponto de vista em geral já era impossível; mas Platão demonstrou magistralmente que as intenções de definir o “universal” pela via da simples indução levam momentaneamente a uma contradição na definição. Nem o “bem”, nem a “beleza”, nem a “essência”, nem a “causa” intervêm como o “abstratamente geral” no mundo dos fatos empiricamente determinados.
E na medida em que o conhecimento teórico tem que lidar não com aquelas composições mais ou menos casuais, nas quais os “gêneros” e as “espécies” intervêm na composição das coisas e fenômenos singulares, e sim com aquelas relações necessárias, nas que estes “gêneros” e “espécies” se mantêm um ao outro “em si mesmos”, independentemente de qualquer possível composição empíricas destes, Aristóteles se encontra de novo diante das mesmas dificuldades que serviram de ponto de apoio para a doutrina de Platão.
Sob o gênero da “razão divinizada”, como protótipo eterno e imóvel segundo o qual deve medir a atividade da inteligência humana individual, ele também reconhece e mistifica não outra coisa que o fato da dominação real do desenvolvimento espiritual (social) universal sobre o indivíduo.
O sistema de determinações categoriais universais da realidade, espontaneamente formadas no desenvolvimento espiritual coletivo, se contrapõe à inteligência individual como uma realidade “ideal” independentemente dela. E na medida em que ele se descobre diretamente somente através do desenvolvimento conjunto do saber, em cujo caminho é que este se conforma realmente, se obtém, então, a conhecida ilusão de idealismo objetivo. Partindo do processo psicológico (do processo de reflexo da realidade na inteligência individual) não pode se entender o surgimento das categorias. Elas se formam somente no desenvolvimento conjunto da cultura espiritual, e se contrapõe à inteligência individual como algo “objetivo”, como aqueles “significados das palavras”, que compelem o indivíduo com uma força violenta ao longo de sua relação para com o “conhecimento.
Por isso é que na “filosofia primeira” Aristóteles investiga também diretamente não as “coisas”, e sim as coisas tal e como já estão apresentadas no “saber”, ou seja, contempla e “experimenta” diferentes definições teóricas, pontos de vista, concepções.
Por isso é que também sua análise das categorias com frequência se perde na “definição de palavras”, no esclarecimento, que chega ao pedantismo daqueles requintes nos quais se empregam tais palavras como “causa”, “forma”, “princípio” e outras. Na prática o que ocorre não é uma análise filológica, e sim o sentimento de determinações universais típicas, já cristalizadas solidamente no desenvolvimento espiritual coletivo. Para chegar às conclusões relativas ao “sentido autêntico” das categorias, ele se move por uma observação cuidadosa daquelas dificuldades, colisões e antinomias que surgiram no confronto de diversas definições das categorias, na luta de escolas e concepções.
Em outras palavras, a genialidade de Aristóteles consiste em que ele busca as definições objetivas das categorias justamente ali onde as categorias na verdade surgem: no processo coletivo de movimento do conhecimento teórico, e não no plano do conhecimento das coisas pela “alma” individual.
A alma individual – como ela pensa – já usa as categorias, já está relacionada de alguma maneira com a “razão universal”. Realmente, a “familiarização” com a razão se realiza como processo de aquisição do conhecimento. Por isso é que Aristóteles também considera que o conhecimento teórico tem o próprio “conhecimento” na qualidade de “objeto” a que se dirige, a seus princípios, que não podem ser de maneira alguma deduzidos da simples percepção das “coisas” pela alma individual.
Ao final se obtém uma concepção acabada, cuja essência consiste em que as determinações universais das “coisas” se realizam somente através da investigação do “conhecimento”. Portanto, na investigação do “conhecimento”, a inteligência pensante tem que lidar também diretamente “consigo mesma”, mas como resultado dessa investigação intervém não outra coisa que o esquema ideal “divinizado” da verdadeira realidade “racionalizada”.
Mistificado aqui está aquele fato plenamente real de que a “alma” singular tem sempre que lidar diretamente não com as “coisas” como tais, em sua objetividade pura, e sim com as coisas em seu significado sócio-histórico. Em outras palavras, entre a “alma” individual, por um lado, e o mundo das coisas, por outro, há certo “elo intermediário” que é a sociedade com sua cultura desenvolvida. O indivíduo em geral se relaciona com a natureza através da sociedade, como membro de um organismo social humano: tanto na ação prática quanto na percepção teórica.
Por isso no conhecimento teórico a “alma” individual começa a ver claro o “mundo das coisas” através do sistema das categorias da “razão”. Estas últimas, por sua vez, se opõem na qualidade de “objeto ideal”, o qual exige uma assimilação especial. Se familiarizar com o “universal” significa converter a própria “inteligência” individual em órgão do “todo”, significa assimilar aquele sistema de determinações universais, o qual, segundo Aristóteles, não é outra coisa que a “razão divinizada”.
Em outras palavras, aqui temos que lidar com o antecedente antigo da concepção hegeliana. Aqui, de forma mistificada, se realiza nada menos que a investigação das leis do desenvolvimento de toda a cultura espiritual anterior aos gregos; nada menos que a investigação daquelas colisões e contradições no desdobramento e resolução das quais se efetua sempre o processo de conhecimento teórico da realidade.
A partir desse ponto de vista torna-se compreensível a conhecida observação leninista em torno do valor real da lógica aristotélica: “A lógica de Aristóteles é interpelação, busca, caminho para a lógica de Hegel; e dela, da lógica de Aristóteles (quem por toda parte, em cada passo levanta a questão precisamente da dialética), fizeram uma escolástica morta, desfazendo-se de todas as buscas, vacilações, vias de levantamento das questões”(42).
Em outras palavras, a verdadeira conquista de Aristóteles repousa não em sua elaboração dos esquemas do conhecimento “apodítico”, o qual ele mesmo considerava encarnação da verdade absoluta, conhecimento absolutamente “correto”, e sim justamente naquela mesma “dialética” que ele mesmo havia situado em uma faixa inferior. Mas a “dialética” na compreensão e definição do próprio Aristóteles é justamente o modo de investigação e “experimentação” (em busca da veracidade) de pontos de vista gerais distintos, o modo que inclui em seu conteúdo o esclarecimento e solução das contradições nas definições; em resumo, é também aquele mesmo “modo” de levantamento das questões, sobre cuja base foram elaboradas tanto a Metafísica, como a Física, como o trabalho Da Alma, e todas aquelas obras geniais que fizeram época no desenvolvimento da filosofia.
Se não vamos tergiversar a verdadeira fisionomia de Aristóteles em favor de uma das concepções contemporâneas da “lógica”, então se impõe constatar que em sua doutrina realmente se entrecruzam pontos de vista não só distintos, mas também diretamente contrapostos, sobre o pensamento, sobre suas formas, sobre a relação das formas do pensamento com a realidade objetiva. O ponto de vista materialista sobre a relação das formas de pensamento com as formas das coisas nele constantemente cede o posto ao ponto de vista idealista da “razão” como atividade dirigida somente a si mesma; a interpretação “ontológica” das “formas de pensamento” se confunde com sua compreensão sintática formal, e inclusive gramatical; o pensamento se vê tanto a partir do ponto de vista de sua veracidade objetiva como a partir do ponto de vista de sua forma puramente psicológica etc., etc.
As fissuras internas penetram também a própria lógica “objetiva” de Aristóteles. No interior de sua autêntica “lógica”, ou seja, no interior da Metafísica, lutam entre si não somente os princípios excludentes do materialismo e idealismo, mas também os da dialética contra a metafísica. O magnífico mestre da dialética como método de descobrimento e solução das contradições nas definições teóricas não pode, contudo, se entender com o problema da coincidência de contrários e conduz a uma vigorosíssima luta contra Heráclito. Verdade é que o princípio do “veto da contradição” que ele formula aqui, não significa nele mais que “o homem não é um trirreme”. O veto não tem o caráter formal que tomará nos estoicos. Em Aristóteles o “veto” se refere, propriamente, somente à existência empírica imediata. O ser da coisa “em potência”, este já não é aplicável. E essa limitação (na compreensão flexível da relação de “possibilidade” e “realidade” que desenvolve Aristóteles) liquida imediatamente ou, em todo caso, arruína substancialmente a interpretação metafísica do “veto”.
E não por casualidade os estoicos, que converteram as ideias aristotélicas em cânones mortos, se viram necessitados de “corrigir” a Aristóteles nesse ponto. Para dar ao “veto” o caráter de uma norma formal absoluta, eles rechaçaram a “contradição” (como coincidência de definições mutuamente excludentes) também no plano da “possibilidade”.
Está perfeitamente claro que a transformação da versão aristotélica do “veto” em um cânone absolutamente formal da lógica está ligada organicamente nos estoicos a uma compreensão antidialética da necessidade, ao fatalismo de sua “ética” e de sua “física”.
Tudo isso demonstra uma vez mais que se se vai considerar Aristóteles “pai da lógica”, então ele será “pai” da lógica hegeliana não em menor medida, mas sim na medida muito maior que a de ser fundador daquela escola específica na lógica, a qual até hoje se considera a si mesma a única “lógica no sentido estrito da palavra”, a única herdeira legítima de Aristóteles.
O desenvolvimento da filosofia depois de Aristóteles se produziu nas condições históricas da destruição e desintegração do regime escravista antigo e de sua condição de Estado.
O profundo vínculo interno das três doutrinas fundamentais pós-aristotélicas (o estoicismo, o ceticismo(43) e o epicurismo(44)) com este fatídico processo para o mundo antigo o viu já Hegel; e o jovem Marx, em sua dissertação de doutorado, a ilustrou com toda a exatidão que era possível no terreno de uma visão idealista objetiva da história. Com todo o engano da compreensão das causas gerais que provocaram o naufrágio tanto do mundo grego real, como de sua expressão filosófica abrangente no sistema de Aristóteles, é profundamente correta a compreensão do fato de que estas são duas formas de expressão, segundo Hegel, de um “terceiro” momento crítico no processo de realização do espírito absoluto no mundo, e de acordo com a compreensão materialista da história, se trata da desintegração da formação social escravista.
Na caracterização da época que engendrou as doutrinas dos estoicos, dos céticos e dos epicúreos, em Marx já se encerra uma avaliação geral daquela relação em que se encontram essas três escolas em relação ao desenvolvimento precedente do pensamento filosófico.
E, se a desintegração do império mundial de Alexandre, o Grande, o qual em pouco tempo unificou artificialmente elementos completamente diversos, com frequência é comparado com o destino do sistema de Aristóteles, também destruído por forças centrífugas que continham princípios mutuamente excludentes, esta semelhança de destinos, a partir do ponto de vista da compreensão materialista da história, é totalmente compreensível. A imagem artística do jovem Marx transmite correta e profundamente o ânimo da época aberta depois de Aristóteles: “Assim, por exemplo, a filosofia epicúrea e a estoica foram a felicidade para seu tempo: assim a mariposa noturna, depois da caída do sol comum a todos, busca a luz das lâmpadas, que os homens acenderam cada um para si”.
O edifício esbelto do mundo grego desmoronou diante dos olhos de seus habitantes: salvar o “todo” foi impossível, e cada um buscou salvar pelo menos uma parte do mundo conhecido. Não é de estranhar que o sistema de Aristóteles (este esquema filosófico geral da consciência antiga) pairava suspendido no ar. Se desintegrou aquele “todo”, cujo “bem” este sistema adotou na qualidade de princípio universal (aglutinante), e se dispersaram aqueles elementos que este princípio cimentava.
O desenvolvimento da filosofia nessas condições não podia ainda se realizar sob a forma do desenvolvimento total posterior do sistema aristotélico.
Aristóteles parte do “todo” e contempla o indivíduo humano como um elemento realmente subordinado a este todo. O “todo”, com sua ordem universal é a premissa de todas as suas construções. Por isso, no pensamento, o indivíduo humano está também capacitado para contemplar a si mesmo como “a partir de fora”; a partir do ponto de vista daquele “todo” universal, organon do qual é a alma pensante do indivíduo.
Sobre essa base ele trata a questão da relação do “universal” com o “singular” como uma questão puramente lógica, a toma diretamente em sua forma universal.
Completamente distinto é o ponto de vista de partida em seus sucessores. Aqui a questão da relação do “singular” com o “universal” a partir do princípio se antropologiza: esta se levante diante do todo como questão da relação do indivíduo humano singular para todo o “mundo” restante, cujos contornos universais o fazem vacilante, turvo, instável. Aquela “ordem das coisas” universal fora da cabeça, a qual Aristóteles considerava “divino”, considerava medida e critério de correção da inteligência singular, começou a titubear.
Seus contornos precisos se fundiram e foram privados de qualquer significado “divino”. Na “ordem das coisas” fora da cabeça, o grego dessa época já não podia ver uma forte sustentação para o pensamento, assim como no sistema de conhecimento, onde se expressava esta ordem destruída.
Aqui mesmo é que surge a conhecida representação dos estoicos, que delimita grosseiramente sua lógica da lógica de Aristóteles. Se para Aristóteles a palavra “logos” é a significação das coisas, e a questão sobre o significado das coisas no sistema da realidade, nos estoicos, por “sentido da palavra” se entende aquele estado interior da alma, o qual é excitado pela coisa.
Entre a coisa, sua forma objetiva, por um lado, e o signo verbal, por outra, os estoicos estabelecem um elo intermediário que não havia em Aristóteles: o estado fisiológico-psicológico da alma individual, aquela “troca” que ocorre na “alma” sob a ação da coisa. A palavra, segundo os estoicos, designa não a coisa, e sim somente o modo de vivência das coisas pelo indivíduo. Essa posição dos estoicos representa em si um híbrido suficientemente eclético de um materialismo fisiológico tosco com um puríssimo idealismo subjetivo. A questão da relação do “singular” com o “universal” subitamente se faz descer do plano do lógico geral (no qual foi levantada e resolvida por Aristóteles) ao plano da relação da percepção sensorial (da vivência) da coisa com a palavra, ou seja, a um plano de observação psicológico-semântico.
Se Aristóteles vê a definição da razão como expressão imediata da situação objetiva universal das coisas fora e independentemente do indivíduo existente, como expressão imediata de formas objetivas universais da realidade, nisso ele está perfeitamente correto.
Por sua vez, quando os céticos e os estoicos se encontram frente ao fato de que aquelas formas objetivas das coisas que Aristóteles apresentou em seu sistema como “eternas”, como “correspondentes à razão divina”, se derrubam por uma torrente de acontecimentos, eles aqui tiram diretamente a conclusão de que as definições de Aristóteles são puras ilusões verbais, puros fantasmas subjetivos, os quais não somente não correspondem, e sim que nunca lhes correspondeu qualquer realidade objetiva.
Em outras palavras, do fato de que uma série de determinados conceitos do sistema aristotélico deixou de corresponder com a situação objetiva dos assuntos (portanto essa troca) e de que na realidade objetiva já não podem observar as formas que correspondem a esses conceitos, tiram a conclusão sobre a natureza linguística do conceito em geral.
Em Aristóteles o “sentido da palavra” é objetivo [предметен]. Isso significa que desvendar a definição da palavra que designa um objeto [предмет] pode realizar-se somente pela vida da definição do objeto, pela via do esclarecimento de seu papel objetivo no sistema da verdade.
Não é assim nos estoicos. Neles a palavra expressa não o objeto, e sim sempre aquela “troca” que o objeto produziu na “alma do indivíduo”, aquele estado interior da alma que eles denominam também “sentido da palavra”.
Este famoso “lekton” – protótipo da representação lógico-formal do “conceito” é justamente aquilo que “se diz” com ajuda e na forma da palavra como um som foneticamente determinado. Por isso para o estoico não é importante diretamente o “significado” objetivo [предметное] da palavra, e sim aquele “sentido” que se relaciona na “alma” com essa palavra.
Em outras palavras, a visão de Aristóteles sobre a relação da palavra e o pensamento se interpreta de uma maneira puramente formal. Em Aristóteles, aquilo do que se fala no discurso é o objeto [предмет] e sua forma objetiva. Nos estoicos, “aquilo que diz” (o “lekton”), em nenhum caso é um objeto, e sim somente aquilo tal e como é vivido pelo indivíduo, um certo estado subjetivo da alma individual.
Tal confusão de conceitos está ligada ao fato de que os estoicos concebem o indivíduo isolado, singular, como sujeito do conhecimento, enquanto Aristóteles – embora em uma forma idealisticamente mistificada – reconhecia como tal a razão social conjunta dos homens, com a qual se relaciona o indivíduo através da aquisição do conhecimento, através da assimilação das determinações universais das coisas.
Uma vez que se faz do indivíduo o ponto de partida da consideração, os estoicos também consideram a relação desse indivíduo com o mundo que o circunda. A ligação desse indivíduo com as coisas naturais se realiza através da sensação e a percepção, e a ligação com outros homens, através da palavra, através do discurso. E justamente por isso, a questão do acordo do conhecimento como tal com o objeto se mescla perfeitamente neles com a questão sobre as normas que garantam a simplicidade da relação mútua entre os homens singulares.
Essa mescla orgânica repousa também sobre a base de toda sua lógica, sobre a base da interpretação extremamente formal das ideias aristotélicas.
Sua “lógica” (eles também a chamam “dialética”, embora ela não tenha qualquer coisa em comum com a “dialética” aristotélica) contém duas partes. A primeira – “phoné” – trata do “significante”, dos meios de expressão verbal, das partes do discurso. Aqui se contemplam as letras do alfabeto como “partes integrantes da palavra”, como fisiologia da letra, como gramática, como cânones de composição de frases e palavras, de versos e frases, e inclusive como regularidades formais da correlação dos tons musicais.
A segunda parte de sua “lógica” trata sobre o “significado”, ou seja, sobre o “conteúdo das palavras, sobre o “lekton”, sobre o lado semântico do discurso, e se chama “semaynomen”. Aqui estamos lidando com o protótipo antigo formulado com exatidão da “lógica semântica” contemporânea.
Essas duas partes de uma forma externa se unem em uma só ciência sobre a base de que o conceito fundamental comum a ambas constitui a “palavra” como elemento do discurso humano. Daqui – do significado etimológico imediato do termo “logos” (“palavra”) – os estoicos é que produzem a denominação de sua ciência: “lógica”, como ciência da palavra, da expressão verbal, de suas formas e estruturas.
O pensamento e o discurso, dessa forma, se identificam corretamente já no ponto original, e a doutrina do pensamento se funde com a gramática, com a retórica. O pensamento, de acordo com os estoicos, é o mesmo discurso, só que contemplado a partir do lado de seu “conteúdo semântico”, a partir do lado de sua composição semântica.
As representações em torno do “conteúdo” da palavra e do discurso assumem um caráter refinadamente formal. Por “conteúdo” se leva em conta não o significado objetivo [“предметный”] da palavra e do discurso, como em Aristóteles, e sim aquela “soma de características” que é transmitida pelos homens à palavra – transmitida em parte espontaneamente sobre a base da antecipação, da “prodepsis”, em parte também pela via de um acordo artificial. Justamente dos estoicos é que toma seu princípio a maneira boba de compor termos artificiais com “características” pedantemente enumeradas. Com isso está também relacionada sua ideia da “tabela lógica”, um dicionário de léxicos original, onde todos os termos se determinam através de um esquema de gêneros e espécies: o protótipo de um passatempo semântico com linguagem artificial, o qual supostamente está em condições de dissipar todos os problemas e contradições nos pontos de vista.
Sobre essa base é que realizam os estoicos a revalorização e reconsideração das ideias aristotélicas, dando a elas o caráter de normas absolutas do “discurso verdadeiro”, interpretando formalmente a doutrina aristotélica dos silogismos, a lei do “veto da contradição” e do “terceiro excluído”, a qual, em sua interpretação, se torna antagônica à dialética.
É natural que se a doutrina do pensamento é formalizada por completo, a doutrina das formas universais da realidade objetiva em Aristóteles, que entre organicamente na “lógica”, na “dialética”, se separa em uma ontologia naturfilosófica eclética, em uma física que exibe fantasias especulativas místicas sobre um incêndio universal que periodicamente se repete etc. O lugar do sistema rigorosamente pensado por Aristóteles ocupa uma mescla retalhada de ideias materialistas e idealistas.
Tudo isso permite concluir: a interpretação estoica do pensamento e a doutrina do pensamento não representam em qualquer caso um desenvolvimento posterior da doutrina aristotélica. Essa interpretação liquida todos aqueles momentos dialéticos contidos na doutrina aristotélica do pensamento, de suas formas universais, de sua relação com as formas universais da realidade objetiva.
O mérito dos estoicos não está no desenvolvimento posterior da “lógica” aristotélica, e sim naquelas investigações escrupulosas (com frequência muito detalhistas) que eles dedicaram aos problemas de expressão da realidade no discurso, na palavra: em outras palavras, a realidade sintático-discursiva do pensamento humano. O pensamento se entende neles já não tanto a partir do ponto de vista lógico universal, como a partir do ponto de vista daquelas formas nas quais se realiza pelo sujeito individual, quer dizer, em essência, psicologicamente. Neste plano, os estoicos fizeram não poucas observações detalhada sobre as dificuldades reais e os paradoxos relacionados com o problema da unilateralidade do emprego dos termos, com a questão da relação da representação e o discurso, da unilateralidade da mútua compreensão etc., etc.
Contudo, na compreensão das formas universais reais do conhecimento pensante (das categorias), eles não somente não foram mais além de Aristóteles, e sim pioraram ao extremo aquilo que ele havia alcançado, matando com sua interpretação estritamente formal todas as vivas clarividências dialética do Estagirita. Ali onde Aristóteles vê tanto a necessidade quanto a casualidade, e, portanto, também a dificuldade de compreender sua correlação real, os estoicos veem somente a necessidade.
Ali onde Aristóteles vê, expressa nitidamente e depois investiga a presença de determinações contrapostas de uma e mesma coisa, sempre procurando encontrar para a contradição esclarecida a solução correta, os estoicos com seu “veto” formalmente interpretado fecham inclusive a possibilidade de investigar concretamente essa contradição. O “veto da contradição” em suas mãos se converte em um cânone apriorístico absoluto do “discurso correto” e nesta forma exclui de antemão a dialética inclusive em sua compreensão aristotélica.
Se para Aristóteles a presença de duas “opiniões” encontradas antinomicamente assinala a necessidade de investigar a realidade mais consequente e profundamente, para descobrir por trás das “opiniões” seu verdadeiro protótipo – aquele mesmo protótipo que a partir do ponto de vista parece assim, e a partir de outro, de uma forma diametralmente oposta – então, de acordo com a lógica dos estoicos (a sua compreensão do “veto”), tal via se exclui de antemão. Para eles o “terceiro não está dado”; e é necessário escolher entre as duas “opiniões”, considerar uma como verdadeira, e outra como falsa.
Essa versão do “veto” está ligada organicamente com o excessivo empirismo da “lógica” estoica: o discurso deve expressar “corretamente” e de forma simples aquilo que o indivíduo capta imediatamente com seus órgãos dos sentidos no estado de “fantasia cataléptica”, ou seja, em última instância a vivência individual do objeto [“предмет”] pelo sujeito é neles o critério definitivo da “veracidade do discurso”, da veracidade do conhecimento. Está claro que tal interpretação do “critério da verdade” é, em essência, psicológica, e a “lógica” se reduz no final ao conjunto daqueles cânones formais que devem observar na expressão verbal da realidade sensorialmente perceptível.
Por isso mesmo a “lógica” (a “dialética”) da Stoa se funde em sua real composição com aquilo que Platão e Aristóteles chamaram “erística”, retórica e gramática, e os elementos da verdadeira lógica de Aristóteles os incluem em si de uma forma extremamente eclética e formalizada. Não por casualidade, na lógica dos estoicos pode-se observar a tendência da tradição nominalista.
Com estes “aperfeiçoamentos” os estoicos prepararam também a lógica aristotélica para a percepção da mesma pelos “padres da Igreja”, deram um passo naquela via na qual a “lógica” adotou aquela mesma figura que Kant, dois mil anos mais tarde, considerou definitiva, estabelecida de uma vez e para sempre.
Não era o tempo ainda para a conversão materialista da lógica aristotélica nessa época; para isso não havia condições nem científicas nem sócio-históricas. Como resultado, a interpretação aristotélica da “identidade” das formas universais da razão e das formas universais do “ser” nos estoicos e em Epicuro se abandona simplesmente.
Em Epicuro se desenvolve consequentemente a compreensão materialista de um e outro; nos estoicos se unem ecleticamente a interpretação materialista e a idealista do pensamento e do ser. Mas nem Epicuro, nem os estoicos, nem os peripatéticos(45) podem já levantar o problema em um nível aristotélico. As vias da “lógica” e da “ontologia” se bifurcam a partir deste ponto por milênios inteiros para se cruzar de novo somente na passagem do século XVIII ao XIX e se fundir definitivamente sobre uma base materialista em Marx e Engels.
★ ★ ★
Completando a revisão do ciclo grego do desenvolvimento da filosofia, nos falta caracterizar brevemente os antigos céticos. No plano do nosso problema, eles são interessantes somente a partir de um lado. Se a filosofia grega antiga esboçou todos aqueles campos do conhecimento dos quais deve se formar a teoria do conhecimento e a dialética, os céticos – estes últimos “historiadores da filosofia” da antiguidade – enumeraram todos estes campos do conhecimentos e os reclassificaram, justamente como problemas levantados, mas não resolvidos. Como problemas deixados pela filosofia antiga para um tempo mais feliz para a filosofia.
Estas eram as famosas “alegorias” do ceticismo, cuja conclusão comum é o “abstinência do julgamento” em geral, a renúncia à abordagem racional dos segredos do ser, dos segredos da vida humana. Os problemas se amontoavam aqui sobre problemas, entrelaçando-se entre si de tal forma que não resta esperança alguma de resolver, mesmo que apenas um deles, isto que todos eles se enlaçam em um nó; e todo o nó se enrola em torno do problema da contradição.
E aqui as famosas dez “alegorias do ceticismo”, os dez problemas decisivos deixados ao futuro pela filosofia antiga:
A essência da primeira alegoria está expressada assim pelo Sexto Empírico(46): não podemos “julgar nem sobre nossas representações, nem sobre as representações de outros seres vivos, na medida em que constituímos uma parte de uma contradição geral e, como consequência disso, estamos necessitados mais de soluções e de juízos, que o que podemos julgar nós mesmos...”. Nós só podemos “dizer que nos parece um objeto determinado, mas renunciamos à afirmação de como é ele por natureza...”. Visto que rapidamente surgem as contradições; visto que nós mesmos estamos estruturados de tal forma que inclusive um mesmo objeto [“предмет”] em dois seres vivos se expressa não só como dois diferentes, e sim como incompatíveis sem contradição...(47)
A segunda alegoria – a segunda contradição insolúvel nos julgamentos – surge à força de que de todos os seres vivos os homens são em essência os seres menos parecidos entre si e, portanto, necessária e naturalmente são contraditórios uns com os outros. Temos corpos diferentes e a isso se agregam também as “almas”, as quais se encontram em permanente conflito com os próprios corpos. E se os seres vivos em geral se contradizem uns aos outros porque têm estruturados seus corpos de modo diferentes, portanto o homem se contradiz a si mesmo, visto que está composto de metades contrapostas uma a outra: alma e corpo... E a isso se agregam ainda as dificuldades criadas pelo discurso, pela Palavra, pelo Logos...
“Se inclusive alguns dos dogmáticos, sendo homens com amor próprio, afirmam que no juízo sobre as coisas é necessário dar preferência a eles frente a outros homens, nós, está claro, sabemos que sua exigência está fora de lugar. Pois eles mesmos compõem uma parte dessa contradição...”.
E cada homem mesmo, inclusive o dogmático, se contradiz a si mesmo. Em dependência das trocas de estado de seu corpo e sua alma ele vive “o mesmo” de modo diferente.
E não somente do estado de seu corpo e sua alma, e sim que também depende de circunstâncias externas que “os mesmos” objetos [“предметы”] nos pareçam uma coisa ou o contrário...
E da “mescla”. Não há em qualquer lugar objetos [“предметы”] “puros”, tal como os quisera representar nosso juízo, nosso pensamento...
E das trocas que produzem nas coisas e em nós mesmos – tudo se transforma em seu contrário, em dependência da “correlação de dimensões e composições” – a quantidade se transforma subitamente em qualidade, o contrário do original, e nosso juízo se contradiz com aquilo que pronunciamos um minuto atrás...
E das “relações”, em cujo contexto se percebe “uma mesma” coisa...
E de como – frequente ou raramente – aparece essa coisa diante de nossos olhos. O raro pode aparecer com frequência, e o comum, raramente. E nós de novo caímos em contradição...
E de nossos postulados morais. As normas morais não são confluentes, se contradizem umas às outras, e o juízo, guiados por elas, também...
Como resultado, nós não sabemos qualquer coisa sobre se poderia julgar categoricamente: isso é assim, e isso não é assim.
Somente uma coisa sabemos com certeza sobre o mundo e sobre nós mesmos: que tanto o mundo como nós mesmos estamos dominados pela contradição. E aqui algo amplamente indiscutível. Isso o demonstra incondicionalmente a história da vida e da filosofia da antiga Grécia; esta é sua indiscutível conclusão resultante. Sobre o mundo e sobre nós, e, consequentemente, sobre nossos juízos, sobre nosso pensamento, rege a dialética. Gostemos ou não; isso é assim. Isso é tanto verdade objetiva e subjetiva alcançada pela história do conhecimento.
★ ★ ★
Isso, pelo visto, é o que quis dizer Lenin ao assinalar que a filosofia grega antiga somente esboçou aqueles campos do conhecimento dos quais deve se formar a teoria do conhecimento e a dialética. A teoria do conhecimento como dialética. A lógica do “juízo” como dialética. Como lógica que não teme as contradições, e sim que sabe resolvê-las.
Notas de rodapé:
(1) Possui graduação em farmácia pela UFPR e é mestre em educação pela UFPR. Participa dos Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa Educação e Marxismo (NUPE-Marx/UFPR), na linha Trabalho, Tecnologia e Educação; e Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFPR), na linha Estudos Marxistas em Saúde. Contato: marcelojss @ gmail.com (retornar ao texto) (retornar ao texto)
(2) [“As matemáticas puras versam sobre as formas no espaço e as relações quantitativas do mundo exterior, e, portanto, de uma matéria bastante real. O fato de essa matéria se nos apresentar sob forma sumamente abstrata, apenas superficialmente, pode nos fazer crer que não têm sua origem no mundo exterior. O que acontece é que, para poder investigar essas formas e relações em toda a sua pureza, é necessário desliga-las completamente de seu conteúdo, deixando-o de lado como indiferente, para assim chegarmos aos pontos sem dimensões, às linhas sem largura e espessura, aos a, aos b, aos x, e aos y, às constantes e às variáveis; e por fim, depois de percorrer todos esses caminhos, chegarmos às criações verdadeiramente livres da inteligência, isto é, às grandezas imaginárias” (Friedrich Engels. Anti-Dühring. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 34). / “A matemática é a ciência das grandezas; seu ponto de partida é o conceito de grandeza” (Friedrich Engels. A Dialética da Natureza. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 132). – M.S.] (retornar ao texto)
(3) [Heráclito de Éfeso. Fragmentos (Sobre a Natureza). Fragmentos 30 e 53. – M.S.] (retornar ao texto)
(4) [Hesíodo. Os Trabalhos e os Dias. Curitiba: Segesta, 2012, p. 91. – M.S.] (retornar ao texto)
(5) Karl Marx e Friedrich Engels. Сочинения [Obras], t. 26, I parte, 1955, p. 23 – Teorias da Mais-Valia. (retornar ao texto)
(6) Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Сочинения [Obras], 1929, t. 1, p. 18. (retornar ao texto)
(7) Karl Marx e Friedrich Engels. Сочинения [Obras], t. 20, p. 581 – A Dialética da Natureza (Matemática). (retornar ao texto)
(8) Karl Marx e Friedrich Engels. Архив К. Маркса и Ф. Энгельса [Arquivos de K. Marx e F. Engels], 1933, t. II/VII, p. 35. (retornar ao texto)
(9) [Anaxágoras descreveu nous como a força motriz que formou o mundo a partir do caos original, iniciando o desenvolvimento do cosmos. – M.S.] (retornar ao texto)
(10) [Filosofia Natural é a parte da filosofia que trata do conhecimento das primeiras causas e dos princípios do mundo material. Foi um termo introduzido pelos antigos gregos para indicar o estudo objetivo da natureza e do universo físico e que foi usado até o desenvolvimento da ciência moderna. Dentre os pensadores gregos, Aristóteles destaca-se por suas especulações e investigações na Filosofia Natural, embora antes dele pode-se apontar os filósofos pré-socráticos Leucipo e Demócrito como importantes propositores de especulações teóricas em Filosofia Natural, tais como o Atomismo. O termo naturfilosofia (Naturphilosophie), ou naturfilosofia romântica (Romantische Naturphilosophie), também é utilizado para identificar uma corrente na tradição filosófica do idealismo alemão, aplicado ao estudo da natureza, no início do século XIX, particularmente associado a Fichte, Schelling e Hegel, porém, existindo outros precursores. – M.S.] (retornar ao texto)
(11) [Heráclito de Éfeso. Fragmentos (Sobre a Natureza). Fragmento 30. – M.S.] (retornar ao texto)
(12) Ver: Karl Marx e Friedrich Engels. Сочинения [Obras], t. 20, pp. 537-538 – A Dialética da Natureza (Matemática). (retornar ao texto)
(13) [Cachorro de Engels, sobre o qual fala em suas cartas à Marx de 16 de abril de 1865 e de 10 de agosto de 1866. – R.L.] (retornar ao texto)
(14) Karl Marx e Friedrich Engels. Сочинения [Obras], t. 20, p. 537 – A Dialética da Natureza (Matemática). (retornar ao texto)
(15) [Um agrupamento, que serve como estratégia protetora, observada em diversos animais; distinta de multidão, por não ser um agrupamento espontâneo. – M.S.] (retornar ao texto)
(16) Ver sobre isso mais acima. (retornar ao texto)
(17) [Baruch de Espinoza. Tratado Político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 8. – M.S.] (retornar ao texto)
(18) [Parmênides. Da Natureza. São Paulo: Loyola, 2002, B3. – M.S.] (retornar ao texto)
(19) Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Сочинения [Obras], 1932, t. 9, p. 225. (retornar ao texto)
(20) [Do poema Movimento (1825) de Pushkin. Trata de Zenon de Eléia e Diógenes de Sinope. – R.L.] (retornar ao texto)
(21) [Semasiologia (do grego semasia: “significado”): seção da linguística (em um sentido mais especializado: um dos aspectos da semântica), que estuda o significado das unidades da língua. – R.L.] (retornar ao texto)
(22) [Platão. Teeteto. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 205. Diálogo entre Sócrates e Teeteto, em que o primeiro relembra as palavras de Protágoras: “Contudo, arriscas-te a não teres emitido uma definição trivial sobre o saber, mas sim aquela que diz também Protágoras. O modo é algo diferente, mas diz a mesma coisa, pois afirma que 'a medida de todas as coisas' é o homem, 'das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são'. Leste isto em algum lado?”. – M.S.] (retornar ao texto)
(23) [Erística é a arte ou técnica da disputa argumentativa no debate filosófico, empregada com o objetivo de vencer uma discussão e não necessariamente de descobrir a verdade de uma questão. – M.S.] (retornar ao texto)
(24) Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Сочинения [Obras], 1932, t. 10, p. 216. (retornar ao texto)
(25) [Estereometria é o ramo que estuda a medição dos corpos sólidos, na geometria. – M.S.] (retornar ao texto)
(26) [Solipsismo é a concepção filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências. – M.S.] (retornar ao texto)
(27) Ver: Platão. Софист [Sofista], 230D. In: Сочинения [Obras], t. V, 1879, p. 505. (retornar ao texto)
(28) [Hipostasiar é tornar algo uma substância, ou fazer de algo, falsamente, uma substância. – M.S.] (retornar ao texto)
(29) Ver: Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Сочинения [Obras], t. 9, p. 147. (retornar ao texto)
(30) Ver: Vladimir Ilitch Lenin. Полное собрание сочинений [Obras Completas], t. 29, p. 314. (retornar ao texto)
(31) [O Organon abre o Corpus aristotelicum e é composto pelos livros: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos e Elencos Sofísticos. Significa "instrumento" ou “ferramenta” porque os peripatéticos consideravam que a lógica era um instrumento da filosofia e, a partir daí, passaram designar o conjunto de textos de Aristóteles a esse respeito. Com essa denominação, os peripatéticos da Antiguidade Tardia marcavam uma diferença com relação aos estoicos, que por sua vez tomavam a lógica como uma parte da filosofia. – M.S.] (retornar ao texto)
(32) Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Сочинения [Obras], t. 10, p. 312. (retornar ao texto)
(33) [Enteléquia na filosofia aristotélica, é a realização plena e completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, concluindo um processo transformativo de todo e qualquer ser animado ou inanimado do universo. É o ser em ato, isto é, plenamente realizado, em oposição ao ser em potência. Aristóteles utiliza este termo em contraposição à teoria platônica das ideias e defende que todo ente se desenvolve a partir de uma causa final interna a ele - e não, como afirmava Platão, por razões ideais externas. – M.S.] (retornar ao texto)
(34) [Silogismo é um termo filosófico com o qual Aristóteles, nos Analíticos Anteriores, designou a argumentação lógica perfeita, constituída de três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das duas primeiras, chamadas premissas, é possível deduzir uma conclusão. – M.S.] (retornar ao texto)
(35) [Apodítico: Diz se de uma verdade ou argumento evidentes por si, não necessitando de provas para serem compreendidos e aceitos. É demonstrado e não se pode contestar. – M.S.] (retornar ao texto)
(36) [Escolástica é o ensinamento filosófico próprio da Idade Média, sendo seu nome originado das escolas monásticas, ou escolas episcopais, único lugar onde se conservava e ensinava o saber. A principal preocupação dos escolásticos não era conhecer novos fatos, e sim integrar o conhecimento já adquirido de forma separada pelo raciocínio da filosofia grega e a revelação cristã, sendo esta última o ensinamento direto de Deus, e, portanto, possuía maior grau de verdade e certeza que a razão natural, sendo a fé o árbitro supremo. – M.S.] (retornar ao texto)
(37) [“Realismo” e “nominalismo”: concepções filosóficas formadas na época medieval em torno da famosa discussão sobre os universais. O conteúdo fundamental dessa discussão era a questão acerca do ser dos universais, ou seja, dos conceitos gerais, em primeira instância aqueles como gênero, espécie, propriedade e outros. Havia dois caminhos radicalmente contrapostos. O primeiro afirmava que aos conceitos gerais correspondia uma essência objetiva universal, uma realidade objetiva, uma ideia, distinta das coisas singulares (essa posição chamada “realismo extremo” se expressou mais nitidamente em Juan Escoto Eriúgena). O segundo postulava que os conceitos gerais têm realidade somente na palavra, com cuja ajuda se afirma o similar ou o convergente nas coisas singulares, de tal modo que a palavra, o nome (do latim “nomen”) são em essência somente signos das coisas e de suas propriedades e fora do pensamento não têm e não podem expressar qualquer realidade objetiva, qualquer protótipo real. Era a via de Roscelino e um tempo depois de William Ockham. A posição intermediária do “realismo agonizante” foi fundamentada por Tomás de Aquino, de acordo com o qual os conceitos gerais são significados, na medida em que neles se engloba a essência das coisas. – R.L.] (retornar ao texto)
(38) [O estoicismo (do grego Στωικισμός) é uma escola de filosofia helenística fundada em Atenas por Zenão de Cítio no início do século III a.C. Os estoicos ensinavam que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sábio, ou pessoa com "perfeição moral e intelectual", não sofreria dessas emoções. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estoicos tomam de Heráclito e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo grego que significa "harmonia"). – M.S.] (retornar ao texto)
(39) Vladimir Ilitch Lenin. Полное собрание сочинений [Obras Completas], t. 29, p. 327. (retornar ao texto)
(40) Nota do tradutor russo. (retornar ao texto)
(41) Aqui está literalmente: verbal. (retornar ao texto)
(42) Vladimir Ilitch Lenin. Полное собрание сочинений [Obras Completas], t. 29, p. 326. (retornar ao texto)
(43) [Ceticismo é qualquer atitude de questionamento para o conhecimento, fatos, opiniões ou crenças estabelecidas como fatos. Filosoficamente, é a doutrina da qual a mente humana não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade. O ceticismo filosófico clássico deriva da Skeptikoi, uma escola que "nada afirma". – M.S.] (retornar ao texto)
(44) [Epicurismo é o sistema filosófico que prega a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos. Já quando os desejos são exacerbados podem ser fonte de perturbações constantes, dificultando o encontro da felicidade que é manter a saúde do corpo e a serenidade do espírito, ensinado por Epicuro de Samos, filósofo ateniense do século IV a.C., e seguido depois por outros filósofos, chamados epicuristas. Epicuro também é conhecido como o Filósofo do Jardim, pois "O Jardim" foi como ficou conhecida a escola por ele fundada e que consistia numa comunidade de amigos e seguidores. – M.S.] (retornar ao texto)
(45) [A Escola Peripatética foi um círculo filosófico da Grécia Antiga que basicamente seguia os ensinamentos de Aristóteles, o fundador. Fundada em c.336 a.C., quando Aristóteles abriu a primeira escola filosófica no Liceu em Atenas, durou até o século IV. "Peripatético" (em grego, περιπατητικός), é a palavra grega para 'ambulante' ou 'itinerante'. Peripatéticos (ou 'os que passeiam') eram discípulos de Aristóteles, em razão do hábito do filósofo de ensinar ao ar livre, caminhando enquanto lia e dava preleções, por sob os portais cobertos do Liceu, conhecidos como perípatoi, ou sob as árvores que o cercavam. – M.S.] (retornar ao texto)
(46) [Sexto Empírico foi um médico e filósofo grego que viveu entre os séculos II e III a.C.. Seus trabalhos filosóficos são um dos melhores exemplos do ceticismo pirrônico e fonte da maioria dos dados referentes a essa corrente filosófica, opondo-se à astrologia e outras magias. – M.S.] (retornar ao texto)
(47) Claro, e aqui a questão que aparece diante do Sexto é: E os animais têm razão? (retornar ao texto)
Inclusão | 04/05/2014 |
Última atualização | 18/11/2015 |