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Capítulo 3 - A Independência Formal das Particularidades Individuais
Com relação ao já visto, em primeiro lugar abordamos a subjetividade em seu âmbito absoluto, ou seja, a consciência na sua mediação com Deus, o processo geral da conciliação do espírito com ele mesmo. A alma fez o sacrifício do profano, natural e humano, até quando estes fatores justificavam-se e nada tinham contrário à moral, visando elevar-se ao puro céu do espírito e nele encontrar satisfação plena. Em segundo lugar, vimos a subjetividade humana, sem renunciar à negatividade implicada em todas as mediações, tornar-se afirmativa para si mesma e para os outros, porém o conteúdo desse infinito mundano era constituído apenas pelo sentimento, pela autonomia individual gerada na Honra, pela interioridade do Amor e pela dedicação da fidelidade. Tal conteúdo, embora passível de se exteriorizar em circunstâncias mais mutáveis, em condições mais variadas e com múltiplos matizes do sentimento e da paixão, entretanto não deixa de representar a autonomia do sujeito e sua interioridade, em tudo e sempre.
Temos agora um terceiro ponto a considerar: o modo como a arte romântica sabe utilizar e representar os demais aspectos da existência humana, exterior ou interior; mostrar como ela concebe a natureza e seu significado para a vida interior do homem, a vida da alma e dos sentimentos. Assistimos aqui à libertação do mundos dos particulares, do mundo da manifestação em geral, ou seja, de um mundo que se comporta de um modo independente e autônoma, embora não estando mergulhado na religião e sem almejar à união com o absoluto.
Agora não vamos portanto nos ocupar de assuntos religiosos, nem de cavalaria, com seus fins e concepções de origem interior. Isso tudo desapareceu, pois eram relações sem realidade presente e concreta. O que caracteriza essa fase é a sede de presentificação e de real, que nos leva a descobrir uma fonte de prazeres no que /e, na finitude humana, em tudo o que é finito e particular, no que está próximo do retrato. Em seu presente, o homem não quer ter relação com nada que não seja o presente, embora isso lhe custe o preço da beleza e do conteúdo ideal, e é esse presente o que ele quer ver recriado na arte, em toda a sua plenitude vital, como emanação da espiritualidade puramente humana.
Como vimos, o Cristianismo não é um produto da imaginação, como são os deuses orientais e os gregos. Se a imaginação cria o significado com o qual realiza a união de uma autêntica interioridade e de uma forma perfeita, e se essa união encontrou sua realização mais completa e perfeita na arte clássica, a religião cristã desde o início idealizou todo o aspecto particular da fenomenalidade intrínseca e estimulou a alma a se satisfazer com o vulgar e acidental dos fenômenos, sem atentar para a beleza. Entretanto a conciliação do homem com Deus só aparece, de início, como mera possibilidade; muitos são os chamados para serem felizes, mas poucos serão eleitos, e a alma para a qual o reino dos céus e o reino deste mundo continuam a ser ambos uma possibilidade além, esta alma deve renunciar, em nome da espiritualidade, ao encantamento do mundo e ao que apela ao seu egoísmo de momento. Ela vem de uma região por demais distante, e por enxergar apenas um aquém afirmativo no que acaba de sacrificar, o fato positivo de estar confinada no presente, e de querer apenas o que o presente lhe oferece, sendo algo que constitui um início, se apresenta na arte romântica em forma de fim, como o último degrau da marcha humana para o aprofundamento e a concentração interior.
Com relação à forma para este novo conteúdo, já vimos como a arte romântica vem desde o princípio lutando contra a oposição entre a infinita subjetividade e a matéria exterior, oposição que não conseguiu eliminar, apesar de todos os esforços realizados, e portanto podemos dizer que é justo ela o que caracteriza a arte romântica. Tão logo se unem, forma e conteúdo separam-se de novo, e assim continuam até se tornarem incompatíveis e inconciliáveis, mostrando assim que se deve procurar a possível união absoluta em um campo diferente do âmbito artístico. Por causa desta separação, do ponto de vista artístico, conteúdo e forma assumem caráter formal, no sentido de que eles não se unem visando constituir um todo indivisível, como acontece no ideal clássico. A arte clássica evolui em forma de figuras impossíveis de decompor. Como demonstramos, ao abordar a passagem para a arte romântica, a degeneração da arte clássica principia no momento em que ela se orienta, ao mesmo tempo, para o domínio do satírico e do cômico, e para o do agradável, para a reprodução de coisas frias e mortas, acabando por se rebaixar à técnica inferior. No todo, os assuntos continuam os mesmos, mas a produção antiga, animada pelo sopro espiritual, dá lugar a uma reprodução cada vez menos espiritualizada, que se adapta a uma tradição exterior, uma ténica manual. A evolução e o desenvolvimento da arte romântica, pelo contrário se realizam no sentido da íntima decomposição da matéria artística, da dissolução e libertação dos seus elementos e das partes constituintes, daí resultando, ao contrário do que assinalamos com relação à arte clássica, um desenvolvimento dos talentos e da arte da representação, que se aperfeiçoam à medida em que se enfraquece a coesão dos elementos que constituem o substancial.
Este capítulo terá três partes.
No primeiro vamos nos ocupar da independência do caráter, mas sob um ponto de vista puramente formal, como se fosse um determinado indivíduo, fechado em si mesmo, tendo um mundo à parte com seus fins e qualidades particulares.
Na segunda parte, a este formalismo e a essas particularidades do caráter, oporemos o aspecto exterior das situações, ocorrências e atos. Como a interioridade romântica é indiferente face aos objetos exteriores, a fenomenalidade real recupera sua completa e plena liberdade, mantendo-se impenetrável e inadequada ao sentido dos fins e das ações. Por tal razão os fatos e as circunstâncias que não têm um nexo racional e necessário para uni-los, associam-se, combinam-se, sucedem-se numa ordem acidental e imprevista, quer dizer, aventurosa.
Por fim, na terceira parte mostraremos ao leitor a dissociação dos aspectos cuja perfeita identidade constitui o próprio conceito da arte, resultando esta separação na decomposição, na dissolução da própria arte. Com efeito, a arte por um lado passa a representar a realidade banal, os objetos em suas particularidades acidentais e individuais, e a valorizar esta realidade aparente com sua mágica; por outro lado, ela se orienta para a representação e concepção puramente subjetivas, submetidas aos acidentes das disposições interiores, ou seja, para o humor, que é uma deformação, uma intervenção, uma inversão dos objetos e da realidade pelas palavras com "espírito", assinalando o fim do poder criador da subjetividade artística sobre a forma e o conteúdo, sejam quais forem.
O infinito subjetivo do homem em si, onde está o ponto de partida da arte romântica, continua a ser o princípio fundamental e inspirador das manifestações que vamos agora abordar. Entretanto a essa infinitude autônoma vem juntar-se um elemento novo, por um lado constituído pela particularidade do conteúdo que é o mundo subjetivo, por outro lado pelas íntimas e diretas relações entre o sujeito e essa particularidade do conteúdo, com os objetivos e desejos implicados nele, e também pela individualidade viva a que se reduz e em que se aloja o caráter. A palavra "caráter" não deve ser tomada aqui no sentido que os italianos lhe deram nas representações de suas máscaras. É certo que as máscaras italianas também representam caracteres determinados, mas esta determinação só se exprime de maneira abstrata e geral, não em forma de individualidade subjetiva. O caráter, conforme aqui o entendemos, representa um todo acabado, um sujeito individual. Entretanto se ainda abordamos o caráter, formalismo e abstração, é porque entendemos por isso apenas que o principal conteúdo, o mundo formador deste caráter, é limitado por um lado, e por isso abstrato, e por outro lado ele surge como dominado pelo acaso. O indivíduo existe como indivíduo não pelo que tem de pessoal e justificado, mas graças à subjetividade do caráter que portanto se baseia, não no conteúdo e no pathos estável, mas, de um modo formal, sobre a independência individual.
Dois aspectos devemos distinguir no coração deste formalismo.
O caráter afirma-se como energia segura, atribui-se fins limitados, e aplica toda a força da sua individualidade, portanto reduzida, para realizar seus objetivos; por outro lado, contudo, o caráter aparece como totalidade subjetiva, a qual permanece mergulhada na sua interioridade e é incapaz de se exprimir, até exteriorizar-se de modo completo.
O caráter surge portanto no seu aspecto particular, como um caráter particular que tende à perseverança em sua particularidade, e esta, pelo que tem de acidental e fortuito, não se deixa delimitar diretamente pelo conceito.
Uma individualidade assim reduzida a si mesma não poderia ter intenções nem conceber objetivos capazes de se ligar a um pathos geral; tudo o que possui, faz e realiza ela esgota diretamente, sem reflexão, na sua natureza que é uma réplica dela mesma, não se apoiando em qualquer princípio superior nem procurando o que a justifica num elemento substancial mas sempre, de modo imperturbável, ela repousa sobre si mesma, numa estabilidade que tanto lhe permite afirmar-se de maneira positiva como conduzir à perdição de si mesma. Esta independência só é possível onde o extra-divino, o particular humano, assume papel principal. São assim, antes de mais nada, os caracteres descritos por Shakespeare, forçando nossa admiração principalmente pela sua firmeza irremovível e sua unilateralidade.
Não existe neles uma questão de religiosidade, de moral, no sentido próprio da palavra, e os atos dessas personagens não ocorrem face a uma conciliação religiosa do homem consigo mesmo. Pelo contrário, estamos em presença de indivíduos entregues por completo a si mesmos, com objetivos que são só deles, apresentando o sinal da sua individualidade, e que, visando realizar os seus fins, obedecem apenas à lógica impiedosa da sua paixão, sem se deixarem desviar por considerações secundárias ou por precauções de ordem geral. É principalmente nas tragédias como Macbeth, Otelo, Ricardo II que encontramos caracteres desse gênero, cercados de outros caracteres menos delineados e enérgicos. O caráter de Macbeth é dominado pela ambição apaixonada. Após hesitações de início, ele termina por estender a mão para arrebatar a coroa, comete um assassinato e nenhuma crueldade o impede de conservar o que adquiriu com o crime. Tal perseverança sem escrúpulos, esta identidade do homem consigo mesmo e com o objetivo que se propôs atingir, e concebeu ouvindo apenas a sua paixão, constituem o interesse principal dessa tragédia. Nada é barreira para Macbeth: nem o respeito pela mística santa da realeza, nem a loucura da mulher, o abandono dos vassalos, a queda iminente; ele tem perseverança em seus desígnios, e despreza todos os direitos, todas as leis divinas e humanas. Caráter análogo é o de Lady Macbeth, e só a crítica atrevida e absurda de nosso tempo conseguiu levar o Amor do paradoxo até o ponto de fazer de Lady Macbeth uma mulher cheia de afeto. Na sua entrada em cena (Ato I, Cena IV), após a leitura da carta em que Macbeth lhe anuncia o encontro com as bruxas e seu vaticínio:
— "Salve, Than de Cawdor; salve que ainda serás rei!"
Ela exclama:
— "Tu és Glamir e Cawdor, e serás o que foi anunciado. Temo, porém, por sua natureza; ela está saturada demais com o leite da doçura humana para que escolhas o caminho mais curto."
Nada demonstra de afeição, nem manifesta a menor alegria face à felicidade do marido, nenhuma disposição moral, simpatia ou remorso que testemunhem alguma nobreza da alma; ela apenas teme que o caráter do marido não esteja à altura de sua ambição e se transforme em obstáculo à sua realização. E ela considera até mesmo o próprio marido como mero instrumento. Lady Macbeth age sem hesitações ou reflexão, sem a menor dúvida, o que aliás se encontra mesmo em Macbeth, apesar de lhe faltar qualquer espécie de remorso, obedecendo apenas à abstração e dureza de seu caráter, que visa realizar o que lhe convém exclusivamente. A catástrofe que se abate sobre Macbeth vem de fora, porém Lady Macbeth dobra-se a uma catástrofe interior: enlouquece. Ocorre o mesmo com Ricardo III, com Othelo, Margarida e tantos outros. Que contraste apresentam eles com os caracteres mesquinhos da literatura moderna, por exemplo os de Kotzebue, que parecem tão nobres, grandes, perfeitos, mas não passam de caracteres pusilânimes. Outros, que não tinham desprezo demais por Kotzebue, não fizeram melhor do que ele, como por exemplo Kleist com a sua Catarina e o príncipe de Homburgo. Sua perdição consiste em que, desprezando a lógica segura da vigília, procederem como sonâmbulos, presos a influências magnéticas. O príncipe de Hamburgo é um general desprezível; ele se distrai quando tem de se preparar para o combate, expressa mal suas ordens e, após uma noite mal dormida, entrega-se aos atos mais excêntricos. É descrevendo tais contradições e discordâncias de caráter que seus autores pretendem imitar Shakespeare, e até serem seus sucessores. Estão muito distantes disto, porque em Shakespeare os caracteres são coerentes sempre, e fiéis a si mesmos e à sua paixão, e seu destino revela-se em tudo que lhes acontece.
Quanto mais particular é um caráter, mais ele obedece às suas tendências apenas, seguindo um caminho que conduz ao mal; porém os obstáculos que lhe antepõe a realidade concreta são mais numerosos, e maior é o risco dele desfalecer na concretização de suas tendências; com efeito, o destino que lhe é imanente e o destruirá mais se afirma e exterioriza. Esse destino não se desenvolve como uma conseqüência das ações exteriores do indivíduo, mas sim de modo independente; é um desenvolvimento interior, que acompanha o desenvolvimento do próprio caráter até perder o auto-domínio e atingir um estado de selvageria, de composição e esgotamento. Entre os gregos antigos, que não atribuíam ao caráter subjetivo o principal papel, mas sim ao conteúdo essencial, a evolução do destino se liga menos à do caráter que, aliás, não evolui de modo acentuado, chegando ao final quase em estado idêntico ao de suas manifestações iniciais. Nos casos que agora abordamos, a realização de um ato não é apenas um processo exterior, mas é também desenvolvimento da interioridade subjetiva. Os atos de Macbeth podem ser observados, por exemplo, como as manifestações de uma alma que chegou ao mais profundo da selvageria, mas se realizam com uma lógica que, passado o momento da indecisão, explode com violência irresistível. Sua esposa tomou a decisão já no princípio, e por isso o desenvolvimento do caráter se manifesta nela em forma de uma angústia interior que acaba na destruição física e moral, no desvario da loucura. Acontece o mesmo com os caracteres mais ou menos insignificantes. É verdade que os antigos caracteres também surgem com certa fixidez, achando-se muitas vezes comprometidos em situações tão complicadas, que delas só podem sair pela intervenção de um deus ex-machina. porém essa fixidez é rica de conteúdo, como por exemplo a de Filocteto, tendo no seu conjunto a justificação de um pathos moral.
Pela natureza acidental dos objetivos destes caracteres, os quais são os de individualidade independente, nenhuma condição objetiva parece possível. A relação entre o que eles são e o que se lhes é oposto, continuam vagas e indefinidas, e eles não saberiam responder a quaisquer perguntas que lhes fossem feitas. Portanto verificamos, mais uma vez, a intervenção da necessidade mais abstrata de todas, que é o fatum, e a única conciliação ao alcance do indivíduo consiste no seu infinito ser-em-si, na conservação da sua estabilidade, que lhe possibilita manter-se impassível perante sua paixão e destino.
O lado formal do caráter pode estar na sua própria interioridade, porque o indivíduo é incapaz de ir além dela, de se exteriorizar e desenvolver o seu conteúdo.
São almas substanciais que preenchem um todo, porém de tal maneira elas se fecham em si mesmas, que nenhum dos seus movimentos se manfesta por sinais exteriores. O formalismo que antes descrevemos era caracterizado por uma precisão rigorosa do conteúdo, por um único fim que o indivíduo buscava atingir através de todos os meios, obstáculos e circunstâncias exteriores, até a vitória ou a catástrofe. Pelo contrário, o formalismo que agora abordamos se caracteriza pela reflexão sobre si, pela ausência de exteriorização e desenvolvimento da vida interna, de afirmação concreta e visível. Uma alma fechada em si mesma desta maneira é como uma pedra preciosa cuja existência só se revela, com a rapidez de um relâmpago, em alguns clarões de momento.
Tal fechamento em si mesmo só possui valor e interesse para os indivíduos com uma rica vida interior, porém que só dão a conhecer a riqueza e profundidade de suas almas por sinais mudos, e até pelo silêncio. Tais naturezas simples, ignorantes de si mesmas, podem exercer a maior atração. Comparemos então o seu silêncio com a calma superficial de um mar profundo e inescrutável, mas não à de um homem sem nada para dizer, vazio e boçal. Porém muitas vezes ocorre que um homem vazio e nulo consegue criar, pela manifestação imperceptível de referências vagas a certas idéias, uma reputação de sabedoria profunda e interioridade, chegando-se mesmo a lhe atribuir uma riqueza espiritual inesgotável quando, na realidade, existe apenas uma fachada exterior, e por dentro o vazio. Pelo contrário, o conteúdo e a profundidade infinitas das almas que chamamos silenciosas (e isso exige do artista grande genialidade e talento na realização) revelam-se por manifestações que, isoladas, dispersas, ingênuas, involuntariamente significativas, na intenção de ser apenas compreendidas pelos outros, mostram que uma alma dessa qualidade possui uma sensibilidade profunda para o aspecto substancial das circunstâncias a seu redor, porém não permite que sua reflexão se perca no labirinto dos interesses e considerações particulares e dos limitados fins dos quais se afasta e ignora, não se distraindo pelos movimentos comuns do coração, suas simpatias e antipatias banais.
Entretanto mesmo para uma alma assim integrada, assim recolhida em si mesma, deverá chegar o momento de se entreabrir para o exterior, para certo ponto determinado, momento no qual porá toda sua força inata em um sentimento de importância decisiva para sua vida, a que se liga com vigor inusitado, desta maneira atingindo felicidade ou desgraça. Em outros termos, esta alma vence ou é derrotada, uma vez que, para se manter, o homem deve possuir uma substância moral rica, a qual, só ela, pode lhe atribuir segurança objetiva. A esta categoria de caracteres pertencem as criações mais deliciosas da arte romântica, em especial as criadas por Shakespeare com beleza perfeita, como Julieta, namorada de Romeu. Os artistas modernos em geral representam Julieta como uma criatura cheia de vida, sensibilidade, entusiasmo, nobreza, enfim, como um ser perfeito. Entretanto ela pode ser concebida de maneira diferente: como uma jovem entre quatorze e quinze anos, muito simples, quase uma criança, que ainda não se conhece nem ao mundo circundante, sem emoções nem desejos, que nada ambiciona e olha o que a rodeia qual foram imagens projetadas por uma lanterna mágica, sem extrair delas qualquer lição, nem mesmo pensando em refletir sobre essas imagens, enfim vivendo em perfeita ignorância. Vemos de repente esta alma sofrer e desabrochar, mostrar-se capaz de esperteza e reflexão, de todos os sacrifícios e sofrimentos. Poderíamos considerá-la uma rosa que abriu todas as pétalas de uma só vez, uma fonte interior e oculta da qual se projeta de súbito o conteúdo que até então estivera sem características, e tudo isso movido por um interesse único, uma só paixão: a de se escapar da prisão espiritual em que estivera encerrada até então. Também diríamos ser tudo um incêndio ateado por um só fagulha, ou o botão que logo desabrocha assim que tocado pelo Amor, e mais depressa floresce para mais rápido murchar.
Tudo é ainda mais verdadeiro para Miranda, em A Tempestade. Ela é educada na solidão, e Shakespeare a mostra em seus primeiros encontros com homens, e apesar de apresentá-la em duas cenas breves, nos oferece dela rápido uma concepção completa, infinita. Podemos incluir também nesta categoria a Thecla de Schiller, embora sendo já produto de poesia refletida. Embora levando uma existência luxuosa, ela não se submete à vaidade nem se entrega à reflexão, continuando sujeita a um único interesse de maneira ingênua, e só por ele e para ele vive. Principalmente ela é uma daquelas nobres e belas naturezas femininas, para as quais o Amor constitui um segundo nascimento espiritual, uma iniciação no mundo e revelação da própria interioridade.
Encontra-se a mesma interioridade, incapaz de se explicar e exteriorizar por completo, nos cantos populares, em especial nos alemães, cantos de uma alma rica mas fechada em si mesma, que só por sugestões e alusões isoladas consegue exprimir sua riqueza e profundidade. Em épocas de civilização avançada, quando a consciência desperta e refletida mostra-se pouco compatível com a ingenuidade das épocas mais primitivas, as produções desse tipo são muito difíceis de concretizar, e só os artistas com um dom poético original o conseguem. Já vimos antes com que sabedoria Göethe conseguiu exprimir de modo simbólico, nos seus Lieder, toda a fidelidade e infinitude da alma, por meio de traços simples, exteriores e indiferentes na aparência. É suficiente citar a balada de O Rei de Tule, uma das mais belas criações poéticas de Göethe: o rei só usa a taça que sua bem-amada lhe tinha ofertado como expressão do Amor. À hora da morte, ele reparte seu império e tesouros entre os cavaleiros que o cercam, mas atira a taça ao mar, para que nenhum outro a possua depois dele: "Ele a viu boiar, encher-se e afundar no mar profundo. Seus olhos fecharam-se, e nunca mais ele bebeu uma gota sequer".
Uma alma tão profunda e silenciosa contém a energia do espírito em estado latente, como o sílex contém a faísca que salta dele. Incapaz de refletir sobre ela mesma, sem ter sido ainda submetida à experiência, ignorando a si mesma e as suas possíveis reações, nem sempre o encontro com a realidade serve para despertar nela um sentimento de liberdade. Ela fica vulnerável a assustadoras contradições, quando a desgraça dissonante invade sua vida, não tem pontos de apoio e carece "saber viver", desconhece como estabelecer o acordo entre seu coração e a realidade, para se defender dos seus ataques e se adaptar resguardando tudo. Quando se envolve em um conflito, este indivíduo só consegue solucioná-lo por meios violentos, impulsivos e irrefletidos, ou por uma passiva resignação. Hamlet possui, por exemplo, uma bela e nobre alma. O que faz sua inferioridade não é uma fraqueza interior mas a ausência de um sentimento vital e vigoroso, capaz de contrabalançar a melancolia e a tristeza que o dominam. Ele tem uma sensibilidade refinada; sem motivos para temer nada, embora tudo lhe pareça suspeito, ele é tomado pelo pressentimento de que se realizou um crime monstruoso. O espírito de seu pai lhe revela os detalhes do que suspeitava. Logo ele está pronto para a vingança, mas só interiormente. Ele nunca perde de vista o lhe mostra o coração, mas em vez de se deixar arrastar pela paixão como Macbeth, em vez de matar, expandir sua cólera, indo como Laertes direto ao fim, mantém a inércia de uma alma nobre encerrada em si mesma, que não consegue se exteriorizar, incapaz medir forças com as circunstâncias exteriores. Hamlet espera: para ficar em paz com sua própria consciência, procura uma certeza e, em vez de tomar uma decisão, deixa-se guiar pelas circunstâncias. Nesta alienação da realidade, ele se engana mesmo perante a evidência e mata Polonius em lugar de matar o rei. Age impulsivamente quando deveria agir com reflexão; quando as circunstâncias exigem a sua intervenção fica encerrado em si mesmo e permite que os eventos e acasos resolvam sem sua presença e decidam por ele sobre seu próprio destino e o dos seus amigos.
Nos dias atuais, estas ocorrências são muito freqüentes. São situações de indivíduos que saíram das classes inferiores e que, sem ter cultura suficiente para conceber objetivos gerais, para ter alvos diversificados e sem alcançar um fim determinado, ficam ao desamparo e não têm onde aplicar sua atividade. Esta carência de cultura leva as almas fechadas a se agarrar com tanto mais força quanto mais inferior for sua cultura, ao objetivo que subjuga o destino de sua individualidade, por mais insignificante que seja. Esta monotonia dos homens silenciosos, fechados em si mesmos, é uma característica alemã na essência, tornando os que a possuem em sujeitos teimosos, antisociais, inacessíveis, contraditórios no que dizem ou fazem. Vamos aqui citar Hippel, como um dos que souberam representar com talento especial esses homens de alma silenciosa. Hippel é autor de uma das raras obras originais de humor que surgiram em língua alemã. Ela se chama Caminhos em Linha Ascendente. Esse escritor se afasta do absurdo sentimentalismo das situações, característica das obras de Jean Paul. Pelo contrário, ele se afirma como notável personalidade, cheia de viço e de vida. O que ele sabe pintar de modo lúcido em especial são os caracteres deprimidos, que não conseguem se arejar e quando resolvem se exteriorizar, fazem-no com violência quase sempre terrível. Eles resolvem a contradição sem fim que existe entre sua interioridade e as infelizes circunstâncias em que vivem, de modo terrível e numa seqüências de ações que, em condições diferentes, resultam do acaso ou de uma sorte imprevista, como no caso de Romeu e Julieta por exemplo, onde os acasos exteriores frustraram a esperta armação do monge, levando os amantes à morte.
Assim interessam-nos os caracteres formais: por um lado, por sua força de vontade infinita, inerente à subjetividade particular que se afirma como ela é, impelida apenas por si mesma; por outro lado, por serem indivíduos cuja alma é total e ilimitada em si, a qual, tocada em algum ponto, concentra nele toda a extensão e profundidade individual mas que, não tendo suficiente experiência do mundo exterior, vê-se desamparada e incapaz de tomar uma decisão refletida, havendo conflito. O interesse que nos despertam esses caracteres também se revela sob outro ponto de vista, que não é puramente formal, mas substancial, no sentido de que eles podem nos mostrar, em caso de se perderem, se os limites da subjetividade não resulta da sorte ou do destino, se a unilateralidade que os força a limitar sua atuação a objetivos determinados, excluindo todos os outros, não se deve a estar seu particularismo, que se quer exteriorizar, dominado por interioridade mais profunda. Em Shakespeare existem personagens que possuem essa profundidade e riqueza espiritual. São homens de espírito genial e força de imaginação excepcional, que têm capacidade para se elevar, por via de reflexões, acima de sua condição e dos fins determinados que ela implica, de modo que só em conseqüência de circunstâncias infelizes ou querelas em que se envolvem por causa de sua condição, eles são obrigados a fazer o que fazem, e são coisas que eles não fariam em circunstâncias normais. Não queremos dizer que os crimes de Macbeth, por exemplo, devem ser atribuídos a bruxas malignas; as bruxas são apenas a metáfora poética daquela vontade rígida e sem escrúpulos que possui Macbeth.
Tudo que fazem as personagens de Shakespeare, todos os seus fins particulares, têm origem apenas nelas mesmas. Entretanto existe nestas individualidades um elemento de grandeza que as eleva sobre o que elas são em realidade, acima de seus objetivos, interesses e atos na vida corrente. Os caracteres vulgares de Shakespeare, Stéfano, Trinculo, Pistol e o rei da vulgaridade, Falstaff, não escapam decerto à vulgaridade, mas se revelam ao mesmo tempo indivíduos que possuem notável inteligência, sendo capazes de compreender tudo e possuir o que é necessário para levar uma existência livre e para ser até grandes homens em outras circunstâncias. Os heróis da tragédia francesa, pelo contrário, mesmo até os maiores e melhores, são muitas vezes orgulhosos e perversos, procurando justificar suas ações com toda espécie de sofismas. Não há justificativas nem sentenças em Shakespeare; é tudo guiado pelo destino, acontece tudo necessariamente. Sem queixas nem lamentações, os indivíduos assistem ao desenrolar dos acontecimentos exteriores, bem como aos de suas próprias vidas, que lhes parecem também exterior. Eles se inclinam perante o destino.
Após havermos descrito as modalidades em que se apresenta a independência do caráter individual, vista do interior, lancemos um olhar para suas relações com o exterior, para as particularidades das circunstâncias e situações estimulantes do caráter, para os conflitos em que ele se encontra envolvido, e para o maneira da interioridade se comportar no coração da realidade concreta, de modo geral.
Uma das determinações fundamentais da arte romântica consiste, como vimos, no fato de a espiritualidade, a alma voltada para si mesma, formar um todo que basta a si mesmo, apesar de se encontrar separada por completo da realidade exterior que, sem ser penetrada por ela, leva existência independente, composta por sucessões, complicações, mudanças infinitas e acidentais. Portanto ela é indiferente por completo às circunstâncias que lhe aparecem, porque todas são igualmente acidentais. Importa para ela menos criar uma obra sólida e duradoura do que se afirmar de um modo genérico, agir por agir.
Nos encontramos face a um objeto análogo ao que uma vez denominamos desdivinização da natureza. O espírito se retirou do mundo exterior para voltar a si mesmo, mas sem a interioridade subjetiva para animá-lo, o mundo exterior continua a seguir seu caminho sem se preocupar com a subjetividade. Visto sob o ponto de vista da verdade, o espírito surge conciliado, mediatizado com o Absoluto; porém como este é o campo da subjetividade autônoma, que desconhece outro ponto de partida além dela mesma, perseverando no que é e tal como é, a desdivinização que mencionamos atinge igualmente o indivíduo agente, que se vê assim colocado, com suas finalidades acidentais, em um mundo feito de acasos e acidentes com o qual não é possível unir-se para formar um todo coerente. Tal relatividade dos fins em ambiente relativo, esta relatividade cujas determinações e complicações não dependem do sujeito e que, tendo origem exterior e acidental, cede lugar a conflitos também acidentais, complicados, ramificados e entrelaçados de maneira extravagante; dizíamos, esta relatividade constitui o lado de "aventura", característica principal das formas, ocorrências e atos qualificados como românticos.
Do ponto de vista do ideal clássico, no rigoroso sentido da palavra, toda ação e todo acontecimento visam a determinado fim, verdadeiro e necessário em si, cujo conteúdo vai determinar a forma exterior e também a maneira de concretizá-los no real. Este não é o caso das ações e ocorrências tratadas pela arte romântica. Embora sejam os seus objetivos de representação de natureza geral e substancial, eles não são os que dirigem a ação, regulam a ordem e a seqüência de suas fases, mas permitem que evolua em todos os aspectos livremente, ao sabor do acaso e dos acidentes da realidade exterior.
Apenas uma única obra absoluta o mundo romântico deveu realizar: a difusão do cristianismo, o despertar do espírito comunitário. No coração de um mundo hostil, formado pela Antigüidade em decadência por um lado, por outro caracterizado pela barbárie e por consciências grosseiras, esta obra, quando passa da doutrina à ação, só pode ser uma obra passiva de aceitação dos sofrimentos e martírios, de sacrifício da vida temporal de cada pessoa para a salvação eterna da alma. Seguiu-se a esta obra, durante a Idade Média, a da cavalaria cristã, a expulsão dos mouros, árabes e maometanos em geral; depois, pela ação magna das cruzadas para a conquista dos locais santos. Este não foi um objetivo humano, no sentido amplo e próprio da palavra, isto é, um propósito de importância humana em essência, mas um fim que só podia ser realizado pela reunião de indivíduos isolados, que não demorou para atrair adesões individuais de todos os lados.
As cruzadas, vistas dessa maneira, podem ser conhecidas como a aventura cristã coletiva da Idade Média, aventura coerente e fantástica, de natureza espiritual se assim as quisermos designar, mas sem um fim espiritual de verdade e que se enganou em seus atos e caracteres. É que, no aspecto religioso puro, o propósito das cruzadas era exterior, vazio de conteúdo. A cristandade só pode buscar salvação no espírito, só no Cristo ressuscitado que está à direita de Deus e que possui realidade viva no espírito apenas, não em seu túmulo, que está nos lugares sensíveis onde temporalmente habitou em outros tempos. O fervor religioso da Idade Média só tinha por objeto o local exterior da Paixão, a situação exterior do Santo Sepulcro. O fim puramente mundano da conquista era não menos contrário ao objetivo religioso, da aquisição que, em seu aspecto exterior, parecia ser algo religioso. Assim, visando aquisições espirituais e interiores, procurava-se conquistar os lugares exteriores abandonados pelo espírito, e ganhos temporais justificando fins profanos com razões religiosas. Constitui toda a incoerência e o absurdo das cruzadas o fato de as relações entre exterior e interior estarem invertidas por completo, em lugar de serem concebidas em união harmoniosa. por isto exterior e interior encontram-se na execução sobrepostos mas não conciliados. A piedade se degenerou em brutalidade e num barbarismo terrível, e esta mesma brutalidade, de origem no egoísmo do homem e nas suas paixões violentas, resulta, em certo momento, numa ternura profunda e na contrição espiritual que na verdade constituíam o único objetivo ao qual deveriam os cristãos cingir-se. Pela oposição entre todos esses elementos, às ações e eventos, referidos a um único fim, faltava a unidade de um comando conseqüente e lógico, porque os cruzados estavam fragmentados e decompostos em aventuras, vitórias, derrotas, numa teia imensa de acidentes pitorescos; e o resultado obtido não correspondeu, por isso, aos meios postos em atividade e à importância da preparação. Podemos até dizer que o objetivo foi frustrado pelo modo como se pretendia alcançá-lo. As cruzadas ilustraram, mais uma vez, a importância das palavras: "Não permitirás que ele descanse no túmulo. Não sofrerás a decomposição do teu santo. Entretanto o fervor com que se meteram a procurar Cristo vivo naqueles lugares e mesmo no túmulo, para satisfação do espírito, revela, diga o que disser o Senhor Chateaubriand, uma aberração do espírito, de que a cristandade deveria mais tarde ressuscitar para voltar à vida plena e sadia da realidade concreta.
A demanda do Santo Graal constitui propósito análogo, parte místico, parte fantástico, mas sempre aventuroso na tentativa de realização.
O propósito que o homem é chamado a realizar dentro de si mesmo é mais elevado, é um fim vital de que seu destino eterno depende. Esse é o tema que Dante abordou em A Divina Comédia, sob o ponto de vista da concepção católica, nos guiando através do inferno, purgatório e paraíso. Apesar da rigorosa organização do conjunto, essa obra é rica em quadros fantásticos e aventuras de todo gênero. Obra de santificação e condenação, ela realiza o fim proposto não de maneira genérica, mas com um número incalculável de individualidades que faz desfilar perante nós com todas as suas particularidades, e o poeta apodera-se dos direitos eclesiásticos, dispondo das chaves do reino dos céus, absolvendo, condenando. Assim ele se agiganta em juiz supremo do mundo e arroja a prerrogativa de enviar para o inferno ou o paraíso os sujeitos mais conhecidos do mundo antigo e do mundo cristão, poetas, burgueses, guerreiros, cardeais e bispos.
No domínio profano, os outros assuntos, ricos em ações e ocorrências, as aventuras variadas ao infinito, os acasos interiores e exteriores com referência ao Amor, à Honra e Lealdade. São assuntos que levam os homens a duelarem para conquistar a glória, salvar a inocente perseguida, realizar façanhas as mais extraordinárias em honra de uma dama, ou defender o direito ultrajado, com a força do braço ou pelo valor das armas, mesmo quando em face de uma quadrilha de ladrões. A maioria destes assuntos não envolvem qualquer situação ou conflito em que a ação se desenvolva com necessidade; é a alma procurando expandir seu conteúdo, e só consegue fazê-lo nas aventuras. Assim, por exemplo, as manifestações exteriores do Amor, sob o ponto de vista do seu conteúdo específico, não possuem outro propósito que não o de exprimir a firmeza, fidelidade, permanência do Amor. Tratando-se de fornecer provas de amor, e tudo sendo colocado na dependência de tais provas, as ações que se referem à manifestação do Amor não são determinadas por elas mesmas, dependem da disposição do momento, dos caprichos da dama, dos acidentes exteriores. O que é verdade para o Amor, também é verdade para a Honra e a coragem. Ambas são inerentes a indivíduos sem conteúdo espiritual, sempre dispostos a se identificar com não importa qual conteúdo que encontra por acaso, dando-lhes a ocasião de sentir esse encontro como ultraje, ou encorajamento para mostrar sua valentia. Uma vez que a escolha do conteúdo não obedece a nenhum critério, não há conceito que permita julgar o que é lesivo à Honra ou digno de apelar para a coragem. Acontece o mesmo com a defesa do direito, que é também um dos propósitos da cavalaria. Justiça e direito não são considerados um estado ou um propósito firmes e estáveis, de acordo com a lei e seu necessário conteúdo, mas como concepções submetidas às mudanças do humor subjetivo, embora interferir ou não fazê-lo, em defesa do direito, bem como os juízos que devem ser considerados justos ou injustos em cada caso, dependem por inteiro do arbítrio individual.
O que caracteriza desta forma, em especial no âmbito profano, a cavalaria e o formalismo dos quais vimos falando, é a natureza acidental das circunstâncias em que a ação se desenrola como da vontade subjetiva. As individualidades que possuem caráter particular podem adotar qualquer conteúdo acidental e concretizá-lo empregando a energia e à custa de conflitos originados no exterior, caso não pereçam neles. É o que acontece com a cavalaria, que na Honra, no Amor e na fidelidade encontrou uma justificação de sentido mais elevado, quase moral. Reagindo em circunstâncias isoladas, ela mesma assume de verdade um caráter acidental, porque em vez de tentar a realização de uma obra geral, ela se limita à busca de objetivos particulares e suas relações entre si, e por isso estes fins assumem caráter arbitrário, ilusório, aventureiro. Levada às suas últimas conseqüências, esta corrida às aventuras, esta procura de fins quiméricos, que só existem na imaginação subjetiva e não possuem relação com o real, logo se manifesta em ações e cria situações nas quais predomina o elemento cômico. Assistimos portanto à dissolução da cavalaria. Esta dissolução aparece com nitidez nas obras de Ariosto e de Cervantes, enquanto Shakespeare evidencia principalmente o lado cômico dos caracteres fechados em seus exotismos, dominados por completo pela sua singularidade individual. O mais divertido em Ariosto são as as complicações infinitas dos destinos e objetivos, as combinações inverossímeis de circunstâncias fantásticas e situações observadas, às quais o poeta dá um tratamento lúcido e com ligeireza de aventura. Suas personagens levam a sério todas as loucuras e extravagâncias. Em especial o Amor, baixando das alturas celestiais em que Dante o colocara, despindo-se da ternura imensa que Petrarca lhe concedeu, muitas vezes degenera em pornografias e impele a conflitos ridículos; o heroísmo e a coragem, por seu lado, são levados a tal extremo que provocam não a admiração das coisas inverossímeis, mas o sorriso com que recebemos as narrações impossíveis. Descrevendo situações produzidas ninguém sabe como ou por quê, dissociando e causando brigas, que são interrompidas e voltam a ocorrer, para novamente se confundir até sumir tudo inesperadamente, Ariosto sabe mostrar, ao mesmo tempo, o que existe de cômico e exótico na cavalaria, e tudo que havia de grande, a coragem, a audácia, o Amor e o sentimento da Honra, mas sem ignorar o reverso da medalha, que é a astúcia, é a manha, a presença de espírito em situações patéticas na aparência, etc.
Enquanto Ariosto insiste no principalmente fabuloso das aventuras cavalheirescas, Cervantes se apóia mais em seu aspecto romanesco. Dom Quixote é dotado de uma natureza nobre que o espírito da cavalaria leva à loucura assim que, em sua busca de aventuras, esbarra nas condições firmes e imutáveis da realidade exterior. Daí resulta a oposição cômica entre um mundo organizado pela razão e pela lógica imanente, e uma alma isolada por outro lado, que pretende recriar esse mundo que é fatal para a cavalaria, por via da obediência aos princípios e regras da cavalaria, os quais quer impor, acaba se perdendo. Mas a despeito dessa aberração cômica, no Dom Quixote encontramos tudo que se admirou antes em Shakespeare. Cervantes soube também apresentar seu herói com uma natureza nobre, plena de dons espirituais e que nos desperta um interesse verdadeiro. Apesar do caráter quimérico de sua causa, Dom Quixote está seguro de si, ou melhor, a aberração consiste justo no fato dele estar e continuar seguro de sua causa. Sem esta serenidade infinita, que o impele a conformar-se ao conteúdo e às conseqüências de suas façanhas, Dom Quixote não seria um romântico verdadeiro, e a confiança que deposita na verdade substancial de sua maneira de pensar é complementada por caracteres de grande beleza que alcançam a genialidade. Enquanto Cervantes procura ironizar a cavalaria romântica, Ariosto mergulha em gozações fáceis; entretanto as aventuras de Dom Quixote constituem o núcleo de um admirável conjunto de novelas românticas que se destinam a mostrar o valor verdadeiro de tudo que, nas outras partes do romance, é apresentado de modo cômico.
Da mesma forma que a cavalaria degrada-se facilmente no cômico, mesmo na realização de seus interesses mais importantes, também Shakespeare utiliza um processo duplo que consiste ora em apresentar cenas e figuras cômicas, junto aos caracteres individuais plenos de firmeza e de situações trágicas de verdade, ora em atenuar a firmeza dos caracteres lhes conferindo juízos humorísticos que pretendem alcançar. Falstaff, o bobo de O Rei Lear, a cena dos músicos em Romeu e Julieta, são exemplos do primeiro modo, e Ricardo III é exemplo do segundo.
O romancesco, no sentido moderno da palavra, finalmente se liga a esta dissolução do romântico que acabamos de descrever; o romanesco começa nos primórdios da cavaria e nos romances pastorais. Ora, este romanesco é a cavalaria porém levada a sério, como um conteúdo real. A vida exterior, até então submetida aos caprichos e adversidades do acaso, transformou-se numa ordem segura e estável, a da sociedade burguesa e do Estado, de modo que são agora a polícia, os tribunais, o exército, o governo que substituíram os fins imaginários que os cavaleiros se colocavam.
Por este motivo, a cavalaria dos heróis dos romances modernos sofrem também profunda transformação. Agora se trata de indivíduos que, com seu amor, sua honra, suas ambições e aspirações por um mundo melhor, contestam a ordem existente e a prosaica realidade que em todos os seus domínios se levanta como obstáculo. Impacientes perante esses obstáculos, eles exageram seus desejos e exigências subjetivas, e cada um deles vive em um mundo encantado que o oprime e que ele julga ser seu dever combater, pois resiste a seus sentimentos e paixões e lhe impõe uma conduta e um modo de viver determinado pela vontade de um pai, uma tia, ou pelas condições e convenções da sociedade. Estes novos cavaleiros são recrutados entre os jovens principalmente, que são obrigados a viver em um mundo que julgam ser incompatível com seus ideais, considerando uma desgraça a existência da família, da sociedade, do Estado, das leis, das profissões, etc; segundo eles, isso tudo é uma ameaça perene aos direitos do coração. Portanto se trata de abrir uma brecha nesta ordem de coisas, e transformar o mundo, aprimorar ou pelo menos construir na terra um pedaço do céu, buscar e achar a mulher que será como deve ser, tirá-la do ambiente negativo que a circunda, de sua família e da vulgaridade em que vive, para lhe oferecer uma existência digna, adequada ao ideal representado por ela. No mundo moderno estes sonhos e lutas são próprios do que denominamos "anos de aprendizagem", e seu único interesse está no valor educativo que significam para o indivíduo, pondo-o em contato com a realidade existente e enriquecendo-o com experiências práticas. Tais anos de aprendizagem incrementam portanto a sabedoria do sujeito, que termina por compreender que sua combatividade, seu espírito agressivo a nada levam de útil e que é mesmo mais adequado ajustar seus desejos e sua maneira de pensar às condições da vida real, integrar-se nela para adquirir apoio firme, um ponto de partida racional para as experiências que virão a seguir. Quaisquer que tenham sido suas discordâncias com o mundo, por mais áspera que tenha sido a luta em que se empenhou, ele acaba casando com a mulher que mais lhe convém, e segue uma carreira profissional, torna-se um filisteu igual aos outros. A mulher toma a seu encargo a direção da casa, e nascem os filhos, e a mulher, antes adorada como um ser único, comporta-se como todas as outras mulheres, o emprego torna o trabalho obrigatório, causa aborrecimentos, o casamento se transforma em calvário doméstico; enfim, é o despertar após a embriaguez da juventude. Aqui também observamos caracteres inclinados à aventura, com a diferença de que terminam achando o bom caminho, destruindo na vida real o que tinham de fantástico.
Resta-nos demonstrar agora como a arte romântica, que constitui em si o princípio de dissolução da arte clássica, realiza na prática esta dissolução.
Antes de tudo, o que importa considerar aé o caráter acidental e exterior por completo, dos assuntos apropriados pela atividade artística e o modo como ela os trata. Nas obras plásticas da arte clássica, o relacionamento entre a subjetividade interior e o exterior são tais que o externo representa a própria forma interior, não tendo assim qualquer independência. Por outro lado, na arte romântica, onde a interioridade vem debruçada sobre ela mesma, o conteúdo total do mundo externo possui liberdade de movimentos e pode manter sua particularidade singular. Inversamente, quando a interioridade constitui o momento essencial da representação, o problema de saber qual é exatamente o conteúdo da realidade exterior e do mundo espiritual que a alma poderá manifestar não tem nenhuma importância. A interioridade romântica pode se manifestar em todas as circunstâncias possíveis e imagináveis, acomodar-se a não importa que estados e situações, cometer muitos erros e mergulhar em complicações infinitas, causas toda espécie de conflitos, pois o que ela sempre busca não é um conteúdo objetivo e válido em si, mas sua própria imagem, seja qual for o espelho que a reflete. Por isso, tudo tem seu lugar na representação romântica, grande ou pequeno, importante ou sem significação, moral e imoral, e quanto mais a arte se torna secular, mais se prende ao que existe definito no mundo, maior valor lhe confere, e o artista se identifica com as coisas na medida em que as representa e do modo como as representa. Em Shakespeare, que representa os atos em suas relações finitas, as personagens se dispersam em atos isolados e os mais importantes e nobres interesses arrojam o mesmo valor que têm os menores e secundários. Sentinelas e cortesãos aparecem no mesmo plano em Hamlet; no Romeu e Julieta vemos a vida doméstica junto ao amor dos namorados; em outras peças atuam bobos e mendigos, aborda-se todo gênero de vulgaridades cotidianas, aparecem tabernas, carroceiros, em analogia com o âmbito religioso da arte romântica, em que o nascimento de Cristo e a adoração dos reis magos nunca se separa de um boi, um burro, um estábulo coberto de sapê. Poderíamos citar uma enorme variedade de exemplos deste enobrecimento que a arte confere às coisas mais baixas e vulgares.
É no coração desta acidental condição dos objetos que em parte servem para ambientar um conteúdo que possui certa importância e que, por outro lado, são representados por eles mesmos; dizíamos, é no coração desta condição acidental que ocorre a decomposição da arte romântica. A realidade, por um lado, se apresenta naquilo que constitui, do ponto de vista do ideal, sua objetividade prosaica, e o conteúdo do cotidiano se dá não no que ele tem de substancial, implicando o divino e o moral; mas a realidade aparece como sujeita a toda espécie de variações aqui, e de natureza caduca; por outro lado, é a subjetividade, com seus sentimentos e concepções, com seus direitos e a força do seu espírito, com sua astúcia, quem procura dominar o conjunto da realidade, nada deixando subsistir das relações estabelecidas e dos valores convencionados, e só se sente satisfeita quando tudo o que submete desta maneira acaba por tomar a forma e assumir o lugar que as opiniões, caprichos e a genialidade subjetiva lhe oferecem, e revela-se como dissociável em si e se apresentando nesse aspecto perante a percepção e a sensibilidade. No que virá adiante, teremos que falar, em primeiro lugar, no princípio das numerosas obras de arte que na sua representação do corrente e da realidade exterior se aproximam do que se convencionou chamar imitação da natureza.
Em seguida, vamos abordar o humor subjetivo, cujo lugar na arte moderna é muito importante, constituindo mais particularmente a característica de um grande número de obras poéticas.
Mostraremos em terceiro lugar de que modo e em que medida a arte exerce sua atividade em nosso tempo.
O número de objetos incluídos nessa esfera amplia-se infinitamente, porque o conteúdo da arte imitativa não é o necessário em si, estando portanto preso em certos limites, mas a realidade com tudo o que existe de acidental nas formas e relações, a natureza com suas formações lúcidas e múltiplas, variadas, o trabalho cotidiano do homem, sujeito às necessidades naturais e proporcionando satisfações pequenas, as situações e atividades da vida familiar e das obrigações cívicas, enfim, tudo que existe de mutável infinitamente, variável, instável no mundo subjetivo. Obtemos desta maneira as obras que não apenas se aproximam do retrato, tal como ocorre de certa forma na arte romântica, mas também as que são retratos elas mesmas, no sentido conotativo do termo, e ocorrem nas artes plásticas ou nas descrições poéticas. Em outras palavras: estamos frente a obras que representam uma volta à natureza, orientação voluntária para o acidental, para o imediatismo da existência, prosaico e sem beleza própria.
Temos, portanto, direito de perguntar se tais obras são dignas de ser consideradas verdadeiras obras de arte. À luz do conceito do ideal, conforme já o definimos, que obriga a arte a possuir uma forma adequada a esse conteúdo, por um lado, estas criações da arte imitativa parece não ter valor além do medíocre. Entretanto a arte ainda implica outro elemento que, em especial neste caso, tem enorme importância: a concepção subjetiva e a execução pessoal da obra artística; a função do talento individual que nunca perde de vista, mesmo na mais radical acidentalidade, a vida substancial da natureza e as manifestações do espírito e que sabe sublinhar, por esta verdade entrevista e apreendida, o que parece insignificante em si, com um talento de execução que desperta admiração.
Acrescente-se a isto a viva simpatia que alma e espírito do artista assumem perante estes fins, como se apresentam em sua forma e fenomenalidade exteriores, e que os oferecem à percepção animados desta maneira. São estes os principais motivos porque não podemos recusar, a tais obras, a qualificação de artísticas.
Entre as artes particulares, foram a pintura e a poesia que se dedicaram principalmente à representação de tais objetos. O que constitui aqui a forma da representação é o particular em si mesmo, e como conteúdo, por um lado; por outro lado, é a singularidade acidental com certeza, mas inseparável do conjunto a que pertence. Nem arquitetura, nem escultura ou música se prestam à realização desse trabalho.
A poesia pode utilizar-se da vida doméstica, cuja base substancial é a honestidade, a sabedoria prática e a moral comum, com suas vulgares concepções burguesas, escolhendo suas cenas e figuras nas classes inferiores e médias. Entre os franceses, foi Diderot principalmente quem defendeu o natural na arte, quer dizer, a reprodução do real. Göethe e Schiller na Alemanha, apesar de terem seguido caminho idêntico na juventude, mas concebendo o natural com sentido mais elevado, nunca deixaram de procurar nesse mesmo natural e particular um conteúdo mais profundo, nem de descobrir conflitos mais essenciais e de interesse mais genérico. Kotzebue e Iffand, por seu turno, um com rapidez superficial de concepção e execução, o outro com exatidão mais séria, não souberam se elevar acima da moral burguesa e reproduziram a vida cotidiana do seu tempo com minúcias prosaicas e sem nenhum interesse poético. Durante muito tempo, a arte foi uma coisa estranha para nós, a qual recebíamos de fora, sem ligação com nossa terra, com o espírito nacional. Esta orientação para a realidade existente correspondia à exigência de dar à arte um conteúdo imanente e familiar, ou seja, a vida nacional do poeta e do público; ela foi a exigência de aplicar à arte a representação de conteúdos que fossem nossos de verdade, de fazer uma arte nacional, mesmo sacrificando a beleza e a idealidade que deu origem à corrente realista de que falamos. Outros povos desdenharam essa forma de arte ou só mais tarde começaram a se interessar por assuntos cotidianos.
Entretanto esta forma de arte é capaz de promover criações admiráveis, e basta mencionar para isso a pintura flamenga. Quando procuramos, na primeira parte desta obra, definir o ideal, mostramos o que constitui o fundamento substancial dessa pintura. A alegria que os holandeses achavam nas coisas da vida, até nas suas manifestações mais vulgares e sem importância, vinha de serem obrigados a conquistar, em lutas ásperas e esforços penosos, o que a natureza oferecia sem lutas nem esforços a outros povos. No espaço limitado de que dispunham, eles eram forçados a velar pelas coisas mais insignificantes, atribuindo valor ao que não possuía valor nenhum para outros povos. Além do mais eles eram um povo de navegadores, pescadores, de camponeses e burgueses, ativo na capacidade para extrair de todas as coisas, das mais importantes às ínfimas, o que lhes era útil ou necessário. Eram de religião protestante, coisa muito importante, porque o protestantismo é a única religião que não afasta os fiéis da prosa da vida, cujo valor é livre por inteiro e não depende de considerações religiosas. Em outras condições, não teria ocorrido a nenhum povo a idéia de criar obras de arte cujos conteúdos eram objetos em aparência banais e vulgares, como os que aparecem nesses quadros. Entretanto apesar da sua ligação com os interesses materiais, não podemos dizer dos holandeses que tenham levado uma existência medíocre e de horizontes espirituais limitados. Pelo contrário, eles reformaram sua própria Igreja, venceram o despotismo religioso e o poder e grandeza política da Espanha, conseguindo elevar-se a um nível de bem-estar, riqueza, segurança e otimismo que lhes fazia ver como algo agradável até os detalhes mais vulgares do cotidiano, graças à sua atividade intensa, seu amor ao trabalho, coragem, espírito de economia, à sua liberdade. Isso justifica o conteúdo que escolheram para suas obras de arte.
Sem dúvida, tais objetos não podiam contentar as pessoas com um sentimento artístico profundo, as quais procuram na obra de arte um conteúdo de verdade transcendente. Mas se estas obras não conseguem satisfazer a alma e o espírito, elas inspiram um prazer real a quem as contempla, porque elas nos impressionam com a excelência dos objetos pintados, a maneira habilidosa dos artistas os colocarem nas telas. Quem quiser saber o que significa a arte de pintar precisa conhecer estes quadros e, diante deles, não poderá deixar de dizer: este pintor sabia pintar! Os artistas não devem nos ensinar o que são os objetos que eles pintam. Não é necessário olharmos para seus quadros para sabermos o que são uvas, flores, árvores, dunas, o mar, o sol, os interiores e utensílios da vida doméstica, cavalos, guerreiros e camponeses; sabemos também o que é fumar, arrancar dentes, e conhecemos as cenas domésticas de todo tipo. Tampouco é pelo conteúdo real que a pintura flamenga nos encanta, mas pela aparência dos objetos, feita abstração de seu uso e destino reais. Esta aparência se prende à beleza, e a arte está na segurança com que o pintor consegue representar o mistério que se oculta na aparência dos fenômenos exteriores considerada em si mesma. A arte principalmente consiste em surpreender expressões fugazes, momentâneas, do mundo e da vida em particular, para fixá-las e as fazer perenes. Uma árvore, uma paisagem são por elas mesmas, já objetos fixos, estáveis, permanentes. Entretanto apreender o brilho de um metal, a cor de um cacho de uvas iluminado pelo sol, o luar, o brilho da luz, um sorriso, a expressão de uma emoção repentina, um movimento, uma postura, um gesto engraçado, enfim, tudo o que existe de mais breve e fugidio, e fixá-lo em toda a sua pujança, em sua espontaneidade viva, esta foi a tarefa que se impôs e realizou a arte de que tratamos. Se, em seu ideal, o que a arte clássica principalmente exprime é o substancial, a arte flamenga apresenta a natureza em mutação permanente, nas suas manifestações súbitas e instantâneas: o leito de um rio, uma queda d'água, as ondas do mar, uma vidra tranqüila através do vidro cintilante, etc. o aspecto exterior da realidade espiritual captada nas situações mais variadas: por exemplo, uma mulher que enfia uma agulha à luz do candeeiro, o repouso de um grupo de salteadores, o riso e as gargalhadas de um camponês, são todos assuntos nos quais pintores como Van Ostade, Téniers, Steen demonstraram uma sabedoria insuperável. É o triunfo da arte sobre o que há de ultrapassado e mortal na vida e na natureza, triunfo que ultrapassa o poder da substancialidade sobre o acidental e transitório, e que nos faz duvidar até desse poder.
Depois de apreender a aparência dos objetos no seu conteúdo e tendo estabilizado esta aparência, a arte limita-se a isto. Além dos objetos, são os meios de representação que se tornam um fim em si mesmos, e a habilidade subjetiva na aplicação desses meios passa a constituir a finalidade das obras artísticas. Os antigos holandeses tinham já estudado com profundidade o aspecto físico das cores. Van Eyck, Memling, Schoreel sabiam reproduzir, visando dar uma ilusão de realidade, o brilho do ouro e da prata, das pedras preciosas, da seda, do veludo, etc. este conhecimento sobre como alcançar os efeitos mais impressionantes pela mágica das cores e pelo mistério dos seus encantos, agora adquire um valor em si. Assim como o espírito que pensa e apreende reproduz o mundo pela representação e pelos pensamentos, também o principal objetivo agora é a reprodução subjetiva do exterior por meio dos elementos sensíveis que são a cor e a luz. É como uma música objetiva, os sons das cores. Com a cor, ocorre o mesmo que com a música; nesta, um som isolado nada significa; ele só tem significado na sua relação com outros sons, sejam tais relações de contraste ou de acordo, de fusão ou transição. Examinando de perto uma cor que brilha como o ouro, cintilando como a trança de um cabelo iluminado, só conseguimos ver riscos e pontos brancos e amarelos, superfícies coloridas; uma cor isolada não consegue produzir nenhum efeito, ela só o produz quando é associada a outras, adquirindo brilho e cintilações. No atlas de Telburg, por exemplo, cada marca de cor é cinza-pardo, um pouco amarelecido ou esbranquiçado, mas quando se olha de alguma distância, e na relação como conjunto, se obtém o brilho belo e doce que corresponde ao atlas real. Ocorre o mesmo com tudo o que é representado nesse quadro, os jogos de luz e a cor das nuvens. Não é o reflexo da sensibilidade, a qual busca se exteriorizar, como ocorre muitas vezes na representação de paisagens, por exemplo, mas sim da habilidade subjetiva que se manifesta, neste modo objetivo, com uma propriedade que os meios de criar uma objetividade possuem por eles mesmos, por sua ação que transmite vida.
Desta forma, o interesse pelos objetos é desviado, e o pintor, em lugar de tentar a criação de uma obra perfeita que basta a si mesma, procura mostrar sua brilhante subjetividade, seu talento inigualável. Mas quando o artista exterioriza esta subjetividade vindo aplicá-la não aos meios da representação exterior mas ao conteúdo, a arte penetra o domínio do capricho e do humor.
O que aparece representado no humor é a pessoa do artista, no que ela tem de superficial e profundo, sendo portanto do valor espiritual que possui o artista, o que se trata antes de tudo nessa forma de arte. No humor, o propósito do artista não é dar uma forma definitiva para um conteúdo objetivo, constituído já nos seus principais elementos em virtude das propriedades inerentes a esse conteúdo, porém mergulha no objeto, empregando sua habilidade em dissociar e decompor, via "achados" espirituosos e inesperados, tudo o que procura tornar objetivo e revestir de forma concreta e estável. Desta forma, substrai-se toda a independência do conteúdo objetivo, conseguindo ao mesmo tempo abolir a coerência estável da forma adequada à própria coisa; a representação passa a ser um jogo com os objetos, uma deformação dos sujeitos, um vaivém e entrecruzar de idéias e atitudes, nas quais o artista demonstra sua ojeriza pelo objeto e por si mesmo.
O erro cometido aí é pensar que é fácil este abandono às diatribes sobre si próprio e sobre a realidade exterior, recorrendo-se por isto muitas vezes à forma humorística, porém não poucas vezes ocorre que o humor se torna aborrecido, quando o sujeito entrega-se ao acaso dos remoques e graçolas, aproximando voluntariamente as coisas mais heterogêneas e prolongando sem definição tais aproximações, por mais ilógicas que sejam. Alguns povos são mais tolerantes com essa forma de humor, outros não a apreciam. Entre os franceses ela não se sai bem, mas nós somos mais tolerantes com tais exotismos. Jean Paul é um humorista que goza de grande simpatia entre nós, sendo verdade que ele supera todos os demais na arte com que associa as coisas mais afastadas objetivamente, estabelecendo as relações mais retorcidas entre objetos que nada possuem de comum na realidade. A trama, o conteúdo e a narrativa das ações constituem a parte menos interessante dos seus romances. O mais importante está nos chistes de humor que utilizam o conteúdo para exercer sobre ele o espírito subjetivo. Por causa desta aproximação, esta cadeia de assuntos colhidos em todas as áreas do mundo e em todos os domínios do real, o humorista parece regressar ao simbolismo em que significação e forma também surgem apartadas, mas desta vez é a subjetividade do poeta que exerce o seu poder, sobre matéria e significação, aproximando-as de modo caprichoso e inesperado. Entretanto a sucessão ininterrupta desses ditos espirituosos, achados e brincadeiras, cansa logo o leitor, em especial quando este é convidado a imaginar relações quase sempre mais do que enigmáticas, imaginadas pelo poeta de maneira acidental por completo. Encontramos estas metáforas sucessivas em Jean Paul, e zombarias, pilhérias, comparações, cada uma anulando a anterior, e assim nada ocorre e tudo se volatiza. O que devemos dissociar deve ter sido antes desenvolvido e preparado. Por outro lado, quando falta ao sujeito uma base sólida o suficiente, o humor cai facilmente no sentimentalismo, e disto Jean Paul é também um bom exemplo.
O verdadeiro humor, que se preserva dessas excrescências e exageros, só tem afinidade com uma grande riqueza e profundidade espiritual, pois só elas permitirão ao humor apresentar como expressão do real o que só tem aparência subjetiva, e mostrar o que existe de substancial na acidentalidade destas aparências, nos simples ditos do espírito. Quando se dedicar ao humor, o poeta deve atuar, como Sterne e Hippel, sem exageros, de modo ligeiro, e o humor será tanto mais profundo quando menos ele insistir em lhe dar ênfase, quanto maior for a espontaneidade do próprio humor. Como se trata de detalhes que aparecem de maneira desordenada e se associam desta forma, o nexo que os une e constitui o núcleo de luz que os ilumina com luz comum deve ser mais profundo.
Assim alcançamos o fim da arte romântica e os portais da arte moderna. Podemos dizer que a tendência geral do moderno consiste na subjetividade do artista não estar mais dominada pelas dadas condições deste ou daquele conteúdo ou forma, mas dominar a todas mantendo toda a sua liberdade de escolha e produção.
Da forma como a temos considerado até aqui, o fundamento da arte é não apenas a união do significado com a forma, mas também a união da subjetividade do artista com seu conteúdo e sua obra. Foi o grau desta união do conteúdo com seu modo de representação, o nível de adequação entre forma e conteúdo, que julgamos constituir o critério o critério substancial que devia inspirar nossos juízos sobre a obra de arte.
A partir dessa ótica, vimos que, nos primórdios da arte, em especial no Oriente, o espírito ainda não era livre em si mesmo, procurava o Absoluto no mundo natural e concebia o natural com caráter divino. Mais tarde, a arte clássica representou os deuses gregos em forma humana, ainda os mantendo ainda ligados à natureza, mas pairando sobre os interesses humanos e já iluminados pelo espírito. Entretanto a arte romântica, concebendo o espírito como interioridade pura e profunda, e recusando qualquer valor à carne, à realidade exterior, ao mundo concreto, meios porém indispensáveis à manifestação do Espírito e do Absoluto, a arte romântica, dizíamos, acaba por adotar uma postura mais conciliadora e positiva.
Tais concepções do mundo, inspiradas pelas religiões, constituem o espírito substancial dos povos e das épocas, e também encontram sua expressão na arte e em todos os outros setores da vida. Da mesma forma que todos os homens, enquanto filhos do seu tempo, atribuem às suas atividades, religiosas, artísticas, políticas ou científicas, o objetivo de servirem como expressão do conteúdo essencial e sua necessária forma, também a missão da arte é exprimir a seu modo, ou seja, em forma artística, o espírito de um povo. Enquanto o artista permanece ligado intimamente à concepção do mundo e à religião de seu povo e de sua época, acreditando nelas piamente, ele trata com a devida seriedade profunda esse conteúdo e a sua representação. Tal conteúdo se apresenta à sua consciência como Infinito e Verdade, como parte integrante de sua mais profunda subjetividade, e a maneira de se exteriorizar constitui para ele, enquanto artista, o meio supremo, necessário e mais elevado de possibilitar a percepção do Absoluto e da alma dos objetos.
Este conteúdo, imanente à sua subjetividade, é o que lhe determina a escolha do modo de representação, de preferência a todos os outros. O artista traz esse conteúdo em si mesmo, we também a sua forma, ambos constituindo a essência da sua personalidade, mas não a essência das coisas imaginadas ou inventadas que são inseparáveis dele, e sem elas ele não seria o que é. Basta-lhe objetivar essa essência, torná-la concreta e exteriorizá-la em forma viva. Só então será possível afirmar que um artista foi inspirado pelo conteúdo que traz dentro de si, e pela forma respectiva. Ao invés de serem arbitrárias, suas criações originam-se dentro dele, brotam dele, desse terreno substancial, deste fundo onde o conteúdo nunca descansa enquanto o artista não lhe der uma forma individual, adequada ao conteúdo. Quando nós modernos, pelo contrário tentamos representar, pela escultura ou pela pintura, algum deus grego ou, como os protestantes fazem hoje, a Virgem Maria, não conseguimos fazê-lo com seriedade verdadeira. Falta-nos a fé íntima, não obstante sermos obrigados a dizer que, nas épocas de fé intensa, não é preciso de nenhum modo que o artista seja um homem piedoso. O que podemos e devemos exigir é que o conteúdo seja, para o pintor, o substancial, e que este seja concebido como a verdade mais profunda, encontrando nisto a marca da maneira original, do modo necessário como será representado. Ao produzir sua obra, o artista procede como um ser da natureza, sua habilidade é um dom natural, seu trabalho não é o do intelecto livre e puro que trata o conteúdo e o submete às leis do pensamento puro; ainda ligado à natureza por muitos laços, o artista se identifica com o objeto, acredita nele, e o considera idêntico ao seu próprio e mais íntimo eu. Por isso o objeto participa da subjetividade do artista, a obra sai da interioridade e do poder irreprimível do gênio em sua forma artística genuína, a produção é firme, sem hesitações, mantendo a intensidade da concepção. Esta é a condição fundamental da arte, no sentido pleno do termo.
Porém devido ao lugar que tivemos de atribuir à arte nas diferentes fases do seu desenvolvimento, esta condição nem sempre foi satisfeita. Não devemos enxergar nisto, porém, uma infelicidade meramente acidental, que atingiu a arte a partir do exterior, por causa da miséria dos tempos, ou pelas tendências atuais à frivolidade, ou por falta de interesse. O fato é conseqüente à própria evolução da arte, a qual, na medida em que exterioriza conceitos imanentes, progride em tal exteriorização, livrando-se aos poucos dos conteúdos que representa. Quando um objeto, pela arte ou pelo pensamento, se faz tão acessível à percepção sensível, que seu conteúdo se esgota, tornando-se tudo exterior, nada restando de interior, o interesse absoluto desse objeto se esvai, pois só há interesse onde houver espontaneidade e renovação. O espírito só atua sobre os objetos enquanto eles ainda mantêm algo misterioso e não revelado, enquanto o conteúdo integra o eu. Entretanto assim que exterioriza as concepções essenciais implícitas em seu conceito, e também o conjunto de conteúdos que são parte delas, logo a arte se liberta dos conteúdos característicos de certa época e de um povo específico, e a necessidade de voltar a eles se faz presente como uma conseqüência da necessidade de adotar uma atitude de oposição ao conteúdo então vigente. Foi desta forma que Aristófanes, face ao seu tempo, assumiu tal atitude, e assim Luciano foi contra todo o passado grego; em Itália e Espanha, na decadência da Idade Média, Ariosto e Cervantes levantaram-se contra a cavalaria.
Assim também vemos aparecer, no coração do tempo em que o artista pertence com sua concepção, conteúdo e forma respectivos, um movimento de oposição que assumiu grande importância nos tempos modernos. Em nosso tempo, e difundido por todos os povos, o hábito da reflexão o hábito da reflexão, o espírito crítico e, entre nós alemães, a liberdade de pensamento, alcançaram também os artistas e levou-os a tornar planos os assuntos e formas de suas obras, após haverem percorrido todas as formas particulares da arte romântica. A fidelidade a um conteúdo particular e a certo modo de expressão adequado a ele, para o artista moderno é coisa do passado, e a própria arte se tornou um instrumento livre que o artista pode adequar, na medida de sua capacidade técnica, a todos os conteúdos, de quaisquer naturezas. Assim o pintor se coloca acima das formas e figuras consagradas, evolui com liberdade sem precisar subordinar-se a conteúdos e percepções que, em outros tempos, se impunham à consciência como sagrados e eternos. Não existe mais conteúdo ou forma imanente à interioridade à natureza, à essência substancial inconsciente do artista, que não recusa objeto, desde que não viole a lei formal que exige beleza e capacidade técnica no trabalho artístico. Não existe atualmente assunto algum livre de tal relatividade, e os que a ultrapassam não se impõem à representação artística com necessidade absoluta. Por tal razão, o artista se comporta em relação ao conteúdo como o dramaturgo fazendo falar e agir outras pessoas, personagens estranhas a ele. Entretanto ele não deixa de trabalhar na sua obra com todo o poder do seu engenho, de tecê-la com sua própria substância, mas de modo genérico e acidental por completo. Não é sua individualidade mais especializada que lhe possibilita isto, pois ele utiliza, para tal individualização, sua reserva de imagens, os modos de expressão que ele já conhece, formas de arte anteriores das quais se recorda, todas as coisas que, por elas mesmas, lhe são indiferentes e só ganham importância quando lhes parecem mais convenientes a este ou aquele assunto.
Na maioria das artes, em especial nas artes plásticas, o artista escolhe objetos no mundo exterior, trabalhando por encomenda, e face a narrativas, cenas, retratos profanos ou sagrados, prédios religiosos, ele se questiona sobre o que poderia fazer com eles. Ele pode se identificar interiormente com certo conteúdo, embora sendo este conteúdo algo que não se encontra no fundo substancial de sua consciência. De nada vale se apropriar das concepções do mundo em tempos passados, convertendo-se, por exemplo, ao catolicismo, como fizeram muitos hoje em dia, em nome da arte, para fixar seus sentimentos e impor-se uma limitação de representações como necessária. Um artista nunca deve buscar colocar-se em paz com sua consciência, nem velar pela salvação de sua alma; esta, grande e livre, antes mesmo de começar a produzir a obra, deve saber onde está, sentindo-se firme e confiante em si mesma. O artista de hoje precisa sobretudo de um desenvolvimento livre do espírito, permitindo-lhe que todos os preconceitos, superstições e crenças que tendam a se ligar em concepções e formas determinadas se transformem em meros aspectos e momentos que o espírito livre pode dominar, recusando a elas o valor de condições sagradas e inatacáveis a que as pessoas devem se submeter, antes porém as recriando e revalorizando com um conteúdo mais elevado.
Desta maneira, todos os assuntos e formas estão hoje à disposição do artista que soube, com seu talento e engenho, libertar-se da prisão a determinada forma de arte à qual, até então, estava condenado.
Vamos agora procurar que conteúdos e formas se oferecem, de modo geral, à arte na fase que consideramos.
O objetivo das formas de arte em geral era alcançar a verdade absoluta, e devemos procurar o motivo da sua particularização na concepção precisa e definida do que, para a consciência, constituía o Absoluto, envolvendo ao mesmo tempo seu modo de exteriorização. Assim, vimos como a arte simbólica tirava seu conteúdo das significações naturais e as suas formas dos objetos naturais e de suas personificações humanas. Em seguida vimos a arte clássica elevar a individualidade espiritual, vivendo no presente carnal, embora controlada pela necessidade abstrata do destino. Por último, vimos a arte romântica exaltar a própria individualidade com sua imanente subjetividade e com uma interioridade capaz de assumir qualquer forma exterior. Nesta última forma de arte, como nas duas anteriores, o principal objeto da arte é o destino em si. Esse destino tinha de se objetivar, contudo, de se tornar claro, e portanto de se ligar ao conteúdo mundano da subjetividade. o infinito da personalidade primeiro esteve na Honra, no Amor, na Lealdade, em seguida na individualidade particular, no caráter determinado, confundido com o conteúdo particular da existência humana. Por último, o humor rompe a união do Divino com este conteúdo particularmente limitado, que abalou e até destruiu todas as precisões, obrigando a arte a ultrapassar a si mesma. A conseqüência disso tudo foi, contudo, o regresso do homem a si mesmo, a seu mundo interior, e a arte viu-se libertada desse mundo interior, de qualquer ligação a um conjunto limitado de conteúdos e percepções. Então o novo ídolo da arte foi representado pelo humano, ou seja, pelas profundezas e alturas da alma humana, pelo humano em geral com suas alegrias e sofrimentos, seus desejos, atos, destinos. A partir desse momento, o artista encontrou em si mesmo o seu conteúdo, é o espírito humano que determina a si mesmo, meditando sobre o infinito dos sentimentos e situações, descobrindo esse infinito e o exprimindo, espirito que conhece tudo que existe na alma. É um conteúdo que não possui precisão artística como tal, pois é a invenção pessoal que lhe atribui precisão e elabora sua forma, mas sem excluir qualquer outro interesse; desta maneira, a arte não se limita a representar apenas o que é domínio seu, mas pode abranger tudo o referente e relacionado ao homem.
Por esta amplidão e variedade de materiais, temos direito de exigir que o espírito se manifesta, no modo de os tratar, como é no momento presente. É evidente que isto não impede que o artista moderno se inspire nos artistas antigos, ou mesmo nos antiqüíssimos. Ser um seguidor de Homero, mesmo sendo o último deles, é belo, e mesmo as obras que refletem a tendência da arte medieval podem ter seus méritos. Entretanto o valor imperceptível, a profundidade e originalidade dos assuntos são uma coisa, enquanto o modo de tratá-los é outra. Homero, Sófocles, Dante, Ariosto ou Shakespeare não poderiam ser resultado da nossa época; o que foi cantado com tanta magnificência, expresso com tanta liberdade por estes poetas, é realização única e perpétua. Assuntos e maneiras de os tratar ficaram enterrados no passado. Só existe o presente com todo seu viço, o resto feneceu e está morto. Sem dúvida temos direito de acusar os franceses por seus erros contra a verdade histórica e contra a beleza, quando representaram heróis gregos e romanos, chineses e persas na figura de príncipes e princesas franceses, atribuindo àqueles sentimentos e idéias do tempo de Luís XIV e Luís XV. Porém se tais idéias e sentimentos fossem mais belos e profundos, não haveria mal em transferi-los para o presente. Pelo contrário, todos os assuntos, não importando a que época e nação eles pertençam, recebem sua verdade artística da realidade viva, que os introduz em nossa alma e revela o que existe neles de imperecível. Eles são as manifestações do que é eterno no ser humano, em suas significações diversas e aspectos infinitos, que preenchem os limites das situações e dos sentimentos e formam o conteúdo absoluto da arte.
Se após as considerações gerais sobre a natureza do conteúdo da arte, na fase que abordamos, revertermos à questão de saber que formas são características da dissolução da arte romântica, devemos lembrar que enfatizamos, por um lado, a decadência da arte caracterizada pela reprodução dos objetos exteriores em toda a sua acidentalidade e, por outro lado, o humor como forma de libertação da subjetividade que é abandonada à sua acidentalidade interior. Sem ultrapassar os limites do que já expusemos, e para terminar, podemos chamar a atenção para esses dois extremos da arte romântica. Temos de mencionar aqui uma forma análoga às encontradas na passagem da arte simbólica para a arte romântica: imagem, comparação, epigrama, etc. O que caracterizava principalmente essas formas de transição era a separação entre significado interior e exterior, atenuada em parte pela atividade subjetiva do artista e reconduzida, na medida do possível, em especial no epigrama, para a identificação. A arte romântica caracterizou-se, desde seus primórdios, por uma separação mais profunda, por um mergulhar mais radical na interioridade, e sendo a correspondência entre espírito e realidade objetiva imperfeita, a interioridade mostrou-se indiferente a esta realidade. Evoluindo, esta oposição acabaria por concentrar o interesse da arte romântica, todo ele sobre a exterioridade acidental ou sobre a subjetividade igualmente acidental. Mas quando esta concentração do interesse na realidade objetiva e em sua representação subjetiva consegue, de acordo com a base principal do romantismo, penetrar na alma do objeto, e quando, por outro lado, o humor recai por sua vez no objeto e na forma que o reflexo subjetivo lhe imprime, assistimos à sua instalação no próprio objeto, a uma espécie de humor objetivo. Mas este mergulho no interior do objeto só pode ser parcial e manifestar-se em formas como a de um Lied ou como parte de um conjunto bastante amplo. A ampliação e o prolongamento no interior da realidade objetiva levaria necessariamente a ações e ocorrências que só uma representação concreta poderia justificar. Pelo contrário, estamos aqui na presença de uma expansão afetiva da alma no objeto, que sem dúvida pode aumentar, mas que não deixa de ser um movimento subjetivo e esperto da imaginação e do sentimento, um "achado" que não é fruto arbitrário do acaso, mas resulta de um movimento íntimo do espírito, voltado por completo para o objeto de seu interesse, ao qual dá seu conteúdo.
Assim podemos aproximar as últimas realizações da arte romântica ao antigo epigrama grego, onde a forma que mencionamos aparece em seu aspecto mais simples. Nesta forma, não é bastante afirmar sobre um objeto o que seu nome designa, pregando-lhe uma etiqueta, mas é preciso descrevê-lo incluindo um sentimento mais ou menos profundo, uma reflexão sensata, um dito criado pela imaginação, os quais, pela poesia da concepção, animam e ampliam as coisas mais ínfimas. Tal gênero de poemas, seja abordando uma árvore, ou os mortos e vivos, é passível de variedade infinita e se encontram em todos os povos; entretanto eles representam um gênero menor, caindo facilmente na banalidade. Todo homem que sabe refletir e domina sua língua natal é capaz de escrever poemas com a mesma facilidade com que escreve uma carta, se fizer um pequeno esforço de imaginação. É por esta razão que, apesar de todas as variações que um poeta é capaz de realizar com esse tipo de criação, ela aparecem tão semelhantes entre si que a leitura de uma dá a impressão de ser a de todas. Portanto, o que caracteriza principalmente a base que abordamos é que a alma, o espírito, a consciência penetram, nos estados e situações, com toda a sua interioridade, profundidade e riqueza, identificando-se com os objetos e conseguindo, desta maneira, renová-los e lhes atribuir valor próprio.
Os persas e árabes, neste aspecto, criaram com suas imagens de grandeza oriental, com seu feliz e livre jogo da fantasia, que só pode se exercer teoricamente sobre os objetos, eles criaram, dizíamos, obras que podem ser modelos para os artistas de hoje, mostrando-lhes o que a interioridade subjetiva bem inspirada é capaz de produzir. Os espanhóis e italianos criaram também obras excelentes neste aspecto. Klopstock declarou sobre Petrarca: "Os cantos em que Petrarca celebrou Laura são belos aos olhos de quem os admira, mas não aos olhos do apaixonado", porém as odes amorosas do próprio Klopstock estão repletas de reflexões morais, possuem uma melancolia obscura e um desejo imaginário da imortalidade feliz, enquanto em Petrarca admiramos a liberdade e a nobreza do sentimento, o qual mesmo exprimindo o desejo que atrai o poeta para sua bem-amada, fica satisfeito apenas em exprimi-lo. Quando se trata de objetos como o amor e o vinho, o desejo e a cobiça tornam-se indispensáveis, sendo que os persas exprimiram bem esses dois objetos, com imagens de sensualidade exuberante, mas em o fazendo, a imaginação elimina, da área dos desejos práticos, o objeto para onde o interesse subjetivo a conduz; o poeta sente prazer no seu próprio jogo, abandona-se a ele com toda liberdade, passa da alegria à tristeza e vice-versa, com enorme facilidade. Entre os modernos, foram Göethe, em seu Divã Ocidental-Oriental, e Rückert, os que souberam melhor atingir aquela liberdade e, ao mesmo tempo, colocar em suas poesias a profundidade íntima e subjetiva da imaginação. Neste aspecto, existe uma diferença grande entre as poesias do Divã e os poemas anteriores de Göethe. Em Willkom und Abschied, por exemplo, as palavras e as descrições são belas, mas a situação não é bem delineada, o fim é banal e a fantasia, apesar de utilizar sua liberdade, nada acrescentou. Isso não ocorre com o poema do Divã chamado O Regresso. Neste o Amor se desenvolve na imaginação por completo, com seus movimentos, sua santidade, sua felicidade. Nem a nostalgia, nem a languidez amorosa, nem o desejo podemos encontrar em poesias desse gênero; elas só exprimem o prazer proporcionado pelos objetos e o devaneio permanente da imaginação. Tudo é um jogo inocente, no qual a liberdade afirma-se em piadas, na manipulação das rimas, no emprego de uma versificação artificial; acima de tudo, é um anseio feliz que, pela serenidade formal, eleva a alma muito acima das relações sofridas com a realidade finita.
Nossas considerações a respeito das formas particulares que assume o ideal da arte no transcorrer do seu desenvolvimento, terminam aqui. Realizei um exame algo minucioso dessas formas, com o objetivo de mostrar bem o seu conteúdo e, ao mesmo tempo, o modo de exteriorização implicado nele. Como em toda obra humana, o papel decisivo na arte é assumido pelo conteúdo. Em função de seu próprio conceito, a missão da arte é tornar presente, de maneira concreta, o que tem um conteúdo rico, e o trabalho da filosofia da arte é apreender, através do pensamento, a essência e a natureza do que possui esse conteúdo, e sua expressão em forma de beleza.
Inclusão | 27/06/2014 |
Última alteração | 08/09/2014 |