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Capítulo 1 - O Domínio Religioso na Arte Romântica
O conteúdo substancial das representações de arte romântica é a subjetividade absoluta, a união do espírito com sua essência, a pacificação da alma, a conciliação de Deus com o mundo e, por isso, consigo mesmo. Portanto, é nesta forma de arte que o ideal parece votado a encontrar sua plena e completa realização. Não vimos que na santidade, na pacificação, na independência, a serenidade e a liberdade são os principais atributos para definir o ideal? Sem querer excluir o ideal do conceito e realidade da arte romântica, entretanto diremos que, em comparação com o da arte clássica, o ideal apresenta-se aí com um aspecto diferente em absoluto. Embora já tenhamos feito uma alusão genérica a esta circunstância, a nós parece necessário insistir sobre a sua significação mais concreta para colocar em evidência, desde já, o tipo fundamental da maneira como se representa o Absoluto na arte romântica. No ideal clássico, o Divino encerra-se nos limites da individualidade; a alma e a santidade dos deuses manifestam-se nos detalhes de suas formas externas e, fundamentada esta arte na unidade indivisível individual, como ela mesma ou na exterioridade, a negatividade da separação, da dor corporal, dos sofrimentos morais, do sacrifício e da renúncia não é um elemento essencial.
Sem dúvida o Divino está, na arte clássica, decomposto em múltiplos deuses, porém isto não constitui separação entre uma essencialidade geral e manifestações individuais subjetivas que possuam forma humana e sejam dotadas de humano espírito; e nem o Divino consiste numa oposição entre o Absoluto, que não se manifesta por sinal exterior, e um mundo onde dominam o pecado e o mal, oposição que se trataria de anular pois só assim poder-se-ia restabelecer a realidade em sua verdade, religando-a ao Divino. Muito pelo contrário, o conceito da subjetividade absoluta implica a oposição entre a universalidade substancial e a individualidade, oposição que é uma mediação, a qual uma vez realizada leva o sujeito a participar da substância universal e faz do substancial um sujeito que se sabe e deseja como tal. Entretanto a subjetividade somente pode se tornar espírito no sentido real da palavra mediante profunda oposição com o mundo finito, e só depois de suprimida esta oposição e alcançada a conciliação com o Absoluto é que o sujeito, agora participante do infinito, eleva-se a uma altura em que se torna espírito absoluto. Desta forma, estamos face a uma nova realidade que, ao fazer parte da esfera espiritual, exteriorizada em uma forma espiritual em essência, possui beleza diferente por completo daquela realizada pela arte clássica.
A beleza grega apresenta o intrínseco da individualidade espiritual em uma pura forma corpórea, suas ações e atos no aspecto puramente concreto; enfim, nela estão interior e exterior em indissolúvel união, pois aquele encontra neste a sua expressão total. Porém a beleza romântica exige outra coisa: ela exige que a beleza, embora se manifestando num aspecto corpóreo e exterior, também demonstre que tal manifestação não a esgota por completo, que não constitui a sua revelação completa e definitiva, cuja condição é refletir sobre si mesma, regredir a uma vida independente. Assim o "fora" só poderá exprimir, na arte romântica, o aspecto interior do espírito caso mostre que não exprime esse aspecto de maneira total, mas que ele possui existência própria, e que esta existência não poderá ser reduzida pelas representações exteriores da arte. Portanto a beleza já não será uma idealização da forma objetiva, mas a beleza da alma, a expressão do que ela possui no mais íntimo, da maneira como nasce e se desenvolve o conteúdo intrínseco do sujeito sem se confundir com o que exteriormente o envolve, embora o penetre de um lado a outro. Em lugar da unidade clássica do dentro e do fora, o que se procura é o tempo oposto, que consiste em atribuir uma nova beleza à forma exterior do espírito; a arte, por isso, já não se interessa pela beleza puramente exterior, por tudo que é exterior geralmente, tratando as coisas exteriores tal como as encontra na realidade imediata, sem impedi-las de alcançar a forma para que tende espontaneamente. A conciliação com o Absoluto se apresenta, na arte romântica, como ação que se realiza na profundidade mais íntima e que, apesar de se exprimir exteriormente, nessa expressão exterior não reconhece a sua forma verdadeira, seu conteúdo e fim autênticos. A conseqüência dessa indiferença pela união idealizada entre alma e corpo é dar um caráter particular à representação mais especial da exterioridade individual, o do retrato, da reprodução pura e simples das características e formas tais como existem na natureza e foram elaboradas pelo tempo, como todos os seus defeitos e deficiências, que não procura minimizar nem, com mais razão ainda, idealizar. De um modo geral, ainda se continua a exigir correspondência entre forma e conteúdo, mas ela se limita a uma forma qualquer, a uma correspondência muito genérica, sem buscar suprimir todas as contingências da realidade empírica e concreta.
Aliás, o caráter fundamental da arte romântica se justifica por uma necessidade verdadeira. Ao atingir sua realização plena, o ideal clássico é encerrado em si mesmo, independente, impenetrável, rejeitando tudo que não é ele mesmo. A forma que apresenta pertence-lhe por completo, ele vive nela, e não a pode sacrificar a nada de comum, empírico ou acidental. Também os seres que, como espectadores, aproximam-se destes ideais, em absoluto não podem considerá-los expressões externas que mostrem possuir afinidades com suas próprias manifestações. Apesar das figuras dos deuses eternos possuírem aparência humana, só em aparência elas são humanas, pois sua realidade profunda nada tem de humano, porque os deuses estão além das doenças comuns à humanas e triunfam de sua precária fragilidade. Os laços que os prendem ao empírico e relativo partiram-se.
A subjetividade infinita, o Absoluto da arte romântica, pelo contrário jamais desaparecem na sua manifestação exterior, nem são completamente absorvidos nela; continuam a existir em si mesmos, não obstante seu aspecto exterior, a forma objetiva da subjetividade existam para os outros, para serem apreciados e dispostos livremente. Tal exterioridade deve se manter nos limites do vulgar, do empírico e humano, por ser o próprio Deus quem se digna intervir na vida finita e temporal para realizar a mediação e reabsorção da oposição absoluta que faz parte do conceito do Absoluto. Graças a isso, o homem vê que novas perspectivas lhe são abertas; sua própria condição de ser natural lhe inspira agora uma confiança conseqüente ao fato de a forma exterior, perdendo a distância em que se colocava na arte clássica, o alheamento face ao particular e universal, apenas lhe oferecer o que ele mesmo já possui ou o que pertence já àqueles que conhece melhor e mais ama. Por esta familiaridade com o vulgar, a arte romântica atrai e inspira confiança. Entretanto, caso este deliberado sacrifício exterior significar que arte romântica pretende dar relevo à beleza da alma, torná-la mais profunda, conferir-lhe santidade, ela também pretende se confundir com o conteúdo absoluto do espírito e abranger as regiões mais profundas e íntimas da vida humana.
Extrai-se ainda uma outra idéia daquele sacrifício: a de que, na arte romântica, a subjetividade infinita, em vez de se isolar na solidão como o deus grego que vive encerrado em si mesmo num estado de santidade imperturbável, deverá estabelecer relações exteriores com algo que, sem ser ela mesma, não deixa de nela participar, pois a subjetividade encontra-se neste algo sem deixar de ser o que é. Nesta união da subjetividade com o que ela não é consiste a beleza verdadeira da arte romântica, seu ideal cuja forma e manifestação extrínsecas residem na interioridade e na subjetividade, na alma, no mundo dos sentimentos. Portanto o ideal romântico exprime relações com outras espiritualidades que se ligam à subjetividade por liames tão fortes que só nelas e por elas a subjetividade pode exteriorizar todo seu conteúdo intrínseco. Como sentimento, esta vida nos outros e pelos outros é o Amor.
Pode-se então dizer a respeito do Amor, que ele constitui o conteúdo geral da arte romântica, vista em seu aspecto religioso. Entretanto o Amor só adquire sua forma em verdade ideal quando exprime a pacificação afirmativa e imediata do espírito. Por isso devemos, antes de seguir adiante, por um lado examinar o processo através do qual o sujeito absoluto, situando-se numa atitude negativa em relação à finitude e ao imediato da sua manifestação, acaba por ultrapassá-la, desta maneira encontrando a sua expressão na vida, sofrimentos e morte de Deus, condições da sua possível conciliação com o mundo e a humanidade pelos quais se sacrificou. Por outro lado, adotando o ponto de vista da humanidade, devemos examinar aquele processo efetuado por ela, com vistas a realizar em si mesma esta conciliação e lhe conferir a eficácia. Entre estas duas fases negativas da morte e da sepultura em seu duplo aspecto sensível e espiritual vem intercalar-se o que constitui o verdadeiro centro daquele processo, ou seja, a felicidade afirmativa que vem a ser um dos objetos da arte romântica e religiosa.
Trataremos este assunto em três itens.
O primeiro será votado à história da Redenção de Cristo, às manifestações do espírito absoluto por intermédio do próprio Deus concebido em aspecto humano, em sua existência real no mundo finito e com suas condições concretas, e que utiliza essa existência para revelar, aos homens e ao mundo, o Absoluto.
Na segunda, vamos considerar o Amor em sua forma positiva, que é a do sentimento de união e conciliação entre humano e divino: a Sagrada Família, o Amor maternal de Maria, o Amor de Cristo e o Amor dos discípulos.
O terceiro tópico será dedicado à comunidade. Vamos demonstrar como o espírito de Deus está presente entre os homens, tanto conseqüente à conversão das almas e à supressão da parte natural e finita dos homens, como também em conseqüência da união entre o homem e Deus, do regresso da humanidade a Deus, regresso cujos principais fatores foram a penitência e o martírio.
A aparição de Deus neste mundo realizou e certificou a conciliação do espírito consigo mesmo, a história absoluta, o advento da verdade. O conteúdo desta conciliação consiste na união da verdade absoluta e da subjetividade individual humana; todo homem é Deus e Deus é um homem individual. Daí se conclui que todo espírito humano em si é, de acordo com o seu conceito e a sua essência, um espírito verdadeiro; e todo sujeito individual tem a vocação infinita de ser um fim a serviço de Deus e de permanecer unido a Deus. Daí também resulta a necessidade de transformar este conceito em realidade, que é relativamente um simples em si, ou seja, a necessidade de colocar a união com Deus como objetivo da existência humana e atingir esse fim. Uma vez alcançado este fim, o ser humano torna-se um espírito livre e independente. Entretanto isto só é possível quando esta união é concebida como fato primitivo, como a base eterna da natureza divina e humana. Ao mesmo tempo, este fim é o começo absoluto; com efeito ele é apresentado pela consciência religiosa dos românticos, para os quais o próprio Deus se tornou homem e carne, revelou-se como sujeito individual, de tal modo que a conciliação procurada, em lugar de limitar-se a uma simples abstração conhecida apenas através do seu conceito, encontra sua realização objetiva quando se oferece à percepção sensível na forma de um indivíduo humano que realmente existiu. Esta individualidade constitui o momento mais importante porque revela a cada ser humano que a sua conciliação com Deus não é uma possibilidade apenas, mas uma realidade que só depende da vontade que cada um tenha de efetivá-la. Porém considerando que a unidade, como conciliação espiritual de momentos opostos, não é resultado de uma aproximação imediata apenas, o processo através do qual a consciência torna-se de verdade espírito tem de se efetuar em cada sujeito como história sua. Conforme já mostramos, ela é a história do homem individual que se despe de sua individualidade carnal e espiritual, isto é, que sofre e morre, mas que faz isto indo além dos sofrimentos e da morte, ressuscitando como Deus em auréola de glória, como espírito real que, se ainda tem uma existência individual enquanto sujeito determinado, é na realidade e em essência Deus e espírito, no coração da comunidade a que pertence.
Esta história constitui o assunto principal da arte religiosa romântica, assunto diante do qual a arte, enquanto arte pura, de certo modo constitui superficialidade. É o que está na base desta história, é uma certeza interna, o sentimento e a idéia de uma verdade eterna, a fé que em si mesma possui a prova desta verdade e que assim passa a fazer parte do sujeito, carne da sua carne, alma da sua alma. A fé que atinge sua plena evolução nos dá certeza imediata de que a representação, a idéia dos momentos dessa história basta para nos outorgar a consciência dessa mesma verdade. Entretanto se é da consciência da verdade que se trata, a beleza da expressão e da representação exterior se torna coisa secundária e indiferente, porque a verdade existe para a consciência, até mesmo fora e independentemente da arte.
Por outro lado, o conteúdo religioso da arte possui um aspecto que não apenas o torna acessível à arte mas também o impõe como necessário. Conforme já observamos diversas vezes, a concepção religiosa da arte romântica implica um conteúdo de tal natureza que o antropomorfismo nele se encontra levado ao extremo, pois este conteúdo incide antes de tudo sobre a fusão do absoluto e do divino com a realmente perceptível humana subjetividade, de manifestação exterior e corpórea, apesar do Divino só poder se exprimir em forma de individualidade sujeita a todas as insuficiências naturais e à finitude das manifestações individuais. Neste aspecto, a arte oferece à consciência intuitiva a manifestação de Deus numa figura individual e com presença concreta, na forma de imagem concreta que reproduz, em todas as minúcias exteriores, eventos que se referem somente ao nascimento de Cristo, à sua vida e aos seus sofrimentos, à sua morte, ressurreição e transfiguração, de tal modo que só graças à arte a evanescente manifestação real de Deus adquire uma percepção renovada sem cessar.
Em tudo que se refere à manifestação exterior, deve ser dada ênfase ao fato de ser Deus um sujeito individual, excluso de todos os demais, e Ele representa não apenas a união do divino com o humano, mas também a subjetividade individual nos traços de tal homem determinado. Assim a arte é invadida por todos os acidentais e particulares do mundo exterior, dos quais a beleza do ideal clássico alcançou libertar-se. Aquilo que o livre conceito do belo havia afastado de si por lhe ser impróprio, o que não possui relação com o ideal, é agora recebido como pertencendo necessariamente ao conteúdo, e como tal se tornando perceptível. Se a pessoa de Cristo foi muitas vezes escolhida como assunto da arte, os pintores que pretenderam tornar Cristo um ideal, no sentido clássico da palavra, seguiram um caminho errado. Nas muitas cabeças de Cristo bem se vê serenidade, seriedade, dignidade; porém isto não é suficiente, pois se por um lado Cristo deve ser representado como personificação da interioridade e da espiritualidade em geral, por outro Ele tem de possuir uma personalidade subjetiva e uma individualidade que também são incompatíveis com a representação sensível da santidade na forma humana. Nada existe de mais difícil do que reunir estes dois pólos: forma e expressão; e os pintores acabaram por se embaraçar, quando quiseram se afastar da representação tradicional. As cabeças de Cristo devem ter uma expressão profunda e séria, porém os traços e a forma do rosto não podem possuir nem a beleza ideal, nem participar do vulgar e do feio, nem elevar-se ao sublime.
A melhor forma exterior é a que se coloca a meio caminho entre a particularidade natural e a beleza natural. Esse meio temo conveniente é difícil de encontrar, e para isso podem intervir de modo eficiente o engenho, a inteligência e o espírito absoluto do artista. De maneira geral, e abstraindo do conteúdo que é domínio da fé, as representações que se referem a tais aspectos dependem, mais do que as representações dos aspectos do ideal clássico, do saber e do executar subjetivo do artista. Na arte clássica, o espiritual e o divino representam-se através de formas corporais, do organismo e sua configuração, formas que são o principal interesse após sofrer as modificações que as afastam do vulgar e do finito. Na arte romântica, a figura permanece tal como é nas circunstâncias vulgares, e as formas são consideradas indiferentes até certo ponto, como particularidades que não desempenham papel essencial, podendo ser tratadas com toda a liberdade. Portanto o interesse primordial reside, por um lado, no modo como o artista consegue, apesar de tudo, fazer dos materiais vulgares e conhecidos um meio para exprimir a profundidade e o espiritual; por outro lado, ele reside nos meios e processos técnicos que o artista utiliza para dar às suas figuras uma vida espiritual que nos permita apreender a pura espiritualidade pela intuição sensível.
O conteúdo encerra, além disso, a história absoluta que se extrai do próprio conceito do espírito e que, no aspecto objetivo, apresenta o retorno da individualidade carnal e espiritual à sua essência e universalidade. É que a conciliação da subjetividade individual e de Deus não se apresenta no aspecto de harmonia imediata mas na realização desta harmonia após uma passagem de sofrimentos infinitos, à custa de renúncias, sacrifícios, da abolição de todos os elementos sensíveis, finitos e subjetivos. Cruzam-se finito e infinito aqui em nó indissolúvel, e somente à luz da gravidade e da profundidade da oposição que se tenta diluir, pode-se ter uma idéia da verdadeira profundidade da conciliação, bem como da força da mediação. Portanto é possível dizer que toda acentuação e dissonância com origem nos sofrimentos, martírios e experiências dolorosas integram a mesma natureza do espírito, cuja satisfação absoluta fornece à arte um pedaço do seu conteúdo.
Este processo do espírito, considerado em si e para si, constitui a essência, o conceito do espírito em geral, destinando-se a representar, para a consciência, a história geral que tem de ser desenvolvida em cada consciência individual. Da multiplicidade de consciências individuais é que se constitui precisamente a realidade do espírito, ou, melhor dizendo, esta multiplicidade constitui a prova da sua existência. Ora, sendo seu momento essencial a realização do espírito do indivíduo, sendo esse o principal modo de manifestação do espírito, esta história geral só pode se apresentar com o aspecto de uma história individual, da história do nascimento de um indivíduo, seus sofrimentos, sua morte, sua ressurreição, na qual se conserva, apesar desse transporte individual, o significado da história do espírito absoluto e universal.
O oposto dessa vida de Deus ocorre quando o espírito perde sua existência individual, deixando de ser tal homem determinado: esse reverso é representado pela história da paixão, pelos sofrimentos na cruz, pelo calvário do espírito, pelo suplício da morte. Portanto estamos face a um conteúdo essencialmente incompatível com o ideal dos clássicos, um conteúdo que serve o mínimo possível à representação desse ideal, pois a manifestação exterior e carnal, a existência imediata, revela-se tal que o indivíduo perante ela adota uma atitude negativa, entre seus sofrimentos, a qual lhe permite, sacrificando o sensível e a individualidade subjetiva, ascender à verdade e ao céu. O corpo terrestre e a frágil natureza estão, na verdade, por assim dizer sublimados e santificados, por ser o próprio Deus que se manifesta neles; entretanto este corpo e esta natureza, por outro lado afirmam-se, enquanto humanos, como objetos de negação e só através do sofrimento se manifestam, enquanto no ideal clássico, o puramente humano mantém uma unidade harmoniosa com o substancial e o espiritual, que nada consegue perturbar. O Cristo torturado, com a coroa de espinhos, arrastando a sua cruz até o calvário, pregado nela, morre lenta e dolorosamente, uma morte de mártir; esse Cristo não pode ser representado nas formas da beleza grega; é a atmosfera de santidade que envolve essas situações e as torna belas, é sua profundidade interior, o grau infinito do sofrimento suportado com divina serenidade, onde a eternidade espiritual está presente.
Amigos e inimigos se colocam ao redor desta figura central. Os amigos não são ideais tampouco, mas são, de acordo com seu conceito, indivíduos vulgares, homens particulares que a força espiritual eleva para Cristo; e os inimigos, assumindo uma atitude oposta a Deus, irão condenar Cristo, martirizá-lo, crucificá-lo, e por isso representam-se como animados por uma perversidade que se traduz exteriormente pela feiúra e pelo grosseiro, e a barbárie, e por rostos deformados e odiosos. O não-belo, em todos os aspectos, sendo o contrário do que caracteriza a arte clássica, aqui surge como um momento necessário.
A morte contudo só pode ser considerada como estado transitório na natureza divina, como uma fase do movimento do espírito para a conciliação consigo mesmo, para a integração do humano com o divino, do universal com a subjetividade aparente. É esta afirmação que deve ser representada positivamente, pois ela constitui a base e a exigência primitiva. Ascensão e ressurreição, na história de Cristo, são os assuntos mais favoráveis para a representação artística. Podemos ainda acrescentar, a estes, os que se referem aos momentos em que Cristo ensina. Entretanto aqui as artes plásticas vão de encontro a grandes dificuldades, pois sua missão é dupla: por um lado, devem representar o espiritual como tal, na sua interioridade profunda; por outro lado, o espírito absoluto, infinito, unido intimamente à subjetividade e elevado acima da existência imediata, nem por isso deve deixar de possuir, no corpóreo e exterior, a completa expressão de sua infinitude e interioridade.
O espírito como tal, o espírito considerado em si e para si, não poderá constituir objeto direto da arte. Sua conciliação suprema e real consigo mesmo só pode ser uma conciliação puramente espiritual, que em virtude do seu caráter puramente ideal, não se presta à expressão artística, porque a verdade absoluta é superior à aparência criada pela beleza e não consegue separar-se do sensível e fenomênico. Por isso, se a arte quiser dar ao espírito, em sua conciliação afirmativa, uma existência que não apenas o mostre como pura idéia, objeto de percepção puramente ideal, mas o torne alcançável também pela percepção sensível, pela intuição e contemplação, só conseguirá fazê-lo naquela forma única que satisfaça a exigência dupla da espiritualidade e da exteriorização pela arte: esta forma é a que exprime a interioridade do espírito, os movimentos da alma e a vida do sentimento. Essa interioridade, que é a única coisa correspondente ao conceito do espírito livre e que basta a si mesmo, é o Amor.
O conteúdo do Amor implica os momentos que já definimos e que constituem o conceito fundamental do espírito absoluto: o regresso tranqüilo a si mesmo a partir do que é outrem. Tal outrem, no qual o espírito pode persistir sem deixar de ser espírito, deve por sua vez participar no espiritual, ser uma personalidade espiritual. A verdadeira essência do Amor é o suprimir da consciência de si mesmo, o esquecimento em um outro eu com objetivo de se encontrar novamente, entrar de novo em posse de si mesmo, neste esquecimento e supressão. Esta mediação do espírito consigo mesmo e sua elevação à totalidade constituem o Absoluto, não com sentido de uma singular subjetividade e, por isso mesmo, finita; não no encontrar-se e se realizar em outro sujeito finito e confundir-se com ele, mas no sentido de que é o Absoluto, o conteúdo da subjetividade, que se mediatiza consigo mesmo num Outro; é o espírito que só se satisfaz quando chega a saber-se e a se querer como Absoluto em outro espírito.
Tal conteúdo pode se caracterizar, assim como o Amor, de modo mais preciso, dizendo-se que é a forma do sentimento concentrado, do sentimento que reflete sobre si mesmo nas profundezas da alma e se manifesta como expressão condensada destas profundezas, em vez de tornar explícita toda a sua riqueza e torná-la perceptível em todos os detalhes. Daí resulta que o espírito deixa de reagir contra a representação artística como o seria na sua pura universalidade espiritual e, graças ao sentimento tornado subjetivo, se torna alcançável pela arte. Com efeito, se por uma lado, estando o espírito mergulhado nas profundidades da alma, tentar trazê-lo à claridade da luz por meio da arte seria alterar sua natureza, por outro esta mesma forma implica um elemento que a arte pode captar facilmente. A alma, o coração, o sentimento, por mais interiores que sejam, na verdade estão ligados ao que é sensível e corpóreo, pois estes lhe permitem a manifestação exterior; e são meios para realizar tal manifestação., os olhos, traços do rosto ou ainda outros menos materiais, como o som e a palavra, que servem para exprimir a vida mais íntima.
Se o conceito do ideal consiste na conciliação da interioridade com sua realidade exterior, podemos definir o Amor como o ideal da arte romântica, do ponto de vista religioso. Ele é a beleza espiritual. O ideal clássico também continha a mediação e conciliação do espírito com seu outro. entretanto nele o outro era o "fora" impregnado de espírito, o organismo carnal do espírito. No Amor, pelo contrário, o outro das coisas espirituais não é o natural; sim, é uma consciência espiritual, um outro sujeito no qual e pelo qual o espírito realiza-se como se não saísse de si mesmo, como se estivesse em seu elemento próprio. Tal satisfação afirmativa, e essa realidade em que ele encontra seu repouso e sente-se feliz, conferem beleza ideal ao Amor, mas beleza que é espiritual também, passível de se exprimir tão-só como interioridade, como manifestação da vida anímica mais profunda. O espírito que se sabe presente, que se sabe como espírito diretamente, aquele cuja existência compõe-se de elementos espirituais e se desenvolve no âmbito espiritual, esse é a interioridade por excelência, e a interioridade do Amor, mais exatamente.
Deus é Amor. Sua mais profunda essência deve ser concebida como encarnada em Cristo e representada de modo a se prestar à atividade artística. Entretanto Cristo encarna o Amor Divino, que tem por objeto, por um lado, o mesmo Deus em sua essência imaterial e invisível, e por outro lado a humanidade que deve ser redimida. Assim, Cristo não pode representar a integração de um sujeito com outro sujeito determinado, pois ele encarna a idéia em si do Amor, na sua universalidade, o Absoluto, o espírito da verdade nos elementos e na forma do sentimento.
A universalização da manifestação do Amor é resultado da universalidade do seu objeto; com efeito, a concentração subjetiva do coração e da alma cessa de desempenhar um papel principal, não obstante ser entre os gregos a idéia genérica e não o aspecto subjetivo da forma e do sentimento individuais, o que ocupa lugar principal (é verdade que tinham intenção diferente) nos mitos que se referiam ao antigo Eros Titânico e a Vênus Urânia. Só quando Cristo é também concebido, nas representações românticas, em certa medida como sujeito individual refletido sobre si mesmo, a expressão do Amor adquire a forma da interioridade subjetiva, baseada, é certo, no aspecto universal de seu conteúdo.
Entretanto o assunto mais acessível à arte neste domínio é o Amor de Maria, o Amor materno. A imaginação religiosa do romantismo trabalhou sobre este assunto com maior êxito e felicidade. Esse Amor é real e humano por excelência, mas também é espiritual, desinteressado, desprovido de qualquer desejo, livre de qualquer elemento sensível, mas presente apesar disso tudo. É a interioridade santificada, gozando de satisfação absoluta. É um Amor sem exigências, mas que não é a amizade, pois mesmo sendo a mais profunda, a amizade tem sempre um objetivo determinado, sempre existe para um fim comum que é seu fundamento primordial. O Amor maternal existe por outro lado fora de toda a comunidade de fins e interesses; ele tem uma base natural e se mantém através de liames naturais. Entretanto no caso de Maria o Amor materno não está reduzido a esses limites puramente naturais. Na criança que carregou em seu ventre, gerada em suas dores, ela encontra a si mesma; nesta criança e por ela, Maria toma consciência de si mesma; e esta criança que é sangue do seu sangue, mesmo se colocando tão acima dela não deixa de lhe pertencer, de ser um objeto no qual ela esquece a si mesma e se reconhece. A natural interioridade do Amor materno espiritualiza-se no filho e na mãe, porém esta espiritualidade maravilhosa e imperceptível é penetrada por afinidades naturais e sentimentos humanos. Esta é a santidade do Amor materno; entretanto primitivamente, tal santidade é só a de uma única mãe. Com certeza este Amor não é livre de dor, de sofrimento que entretanto é provocado pela sorte do filho que é martirizado, expira e morre, não, como veremos adiante, pelo calvário e pela injustiça exteriormente infligidas, nem pelas lutas infinitas contra o pecado, nem ainda pelas torturas cujo autor é ele mesmo. Essa interioridade é o que constitui a beleza espiritual, o ideal, a identificação do homem com Deus, com o espírito, com a verdade; é um esquecimento de si mesmo, renúncia absoluta a si mesmo, porém olvido e renúncia que conduzem ao reencontro e reconhecimento de si no objeto do Amor de onde promana uma satisfação infinita.
Se o Amor materno, imagem por assim dizer do espírito, substitui o próprio espirito de modo tão belo na arte romântica, é porque o espírito, na forma do sentimento, pode ser apreendido pela arte, e porque o sentimento da união individual com Deus só existe, na forma mais primitiva, mais viva, mais real, no Amor materno da Virgem. Este Amor participará necessariamente da arte, pois lhe faltaria um ideal se não o fizesse, lhe faltaria serenidade afirmativa, satisfação que a felicidade suprema outorga. Houve um tempo em que o Amor maternal da Virgem era considerado e representado como o mais sagrado e mais nobre de todos os sentimentos. Porém quando o espírito toma consciência de si, tal como ele existe no seu próprio elemento, separado da base natural constituída pelo sentimento, na isolada mediação desta base está o meio de atingir a verdade. É por isso que a mediação interior do espírito se tornou, no protestantismo, a verdade suprema, em oposição ao culto de Maria que inspira a arte e a fé.
Por último, a serenidade afirmativa se manifesta como sentimento entre os discípulos de Cristo, entre as mulheres e os amigos que o seguem. São quase todos caracteres que, embora não tendo sofrido as torturas e sofrimentos da conversão, percorreram todas as fases mais difíceis da idéia do cristianismo, assimilando-a, e a ela se ligaram com todas as suas forças, graças à amizade, à doutrinação, ao exemplo de Cristo. Falta-lhes a união e a interioridade que se realizam no Amor maternal, e o elemento de ligação entre eles é a presença de Cristo, o hábito da vida comum, a ação direta do espírito.
Falta considerar um último ponto, ligado ao que já dissemos sobre a história de Cristo. A existência imediata de Cristo, concebido como tal homem preciso, sendo ao mesmo tempo Deus, ou seja, como Deus que assumiu a forma de um homem preciso e determinado, essa existência, dizemos nós, aparece como exorbitante do real. Em outros termos: a manifestação humana de Deus é de tal natureza que impõe a convicção de que a verdadeira divina realidade não reside sua presença ou existência imediata, mas no espírito. Só o espírito confere realidade ao Absoluto concebido como subjetividade infinita. Esta existência absoluta, enquanto universalidade ideal e subjetiva a um só tempo, não é apenas a existência de uma determinada individualidade que, no transcorrer de sua história, realizou a conciliação da subjetividade humana e divina, mas se alargou e ampliou para vir a ser a da consciência humana conciliada com Deus, a da Humanidade em geral que é composta de inúmeros indivíduos. Contudo, considerado em si mesmo como personalidade individual, o homem nada possui ainda de divino essencialmente, pelo contrário, ele é puramente humano e finito, e só realiza sua conciliação com Deus na medida em que apresenta o que é humano como um elemento negativo e, desta maneira, o elimina. Por meio desta libertação de sua frágil finitude, a humanidade revela-se como emanação do espírito absoluto que passa a ser espírito da comunidade em que a união do humano com o divino se realiza no coração da comunidade humana, como mediação real do que, segundo o conceito do espírito, de acordo com sua significação original, deve estar indissoluvelmente unido.
As principais formas que a arte romântica assume, na expressão deste novo conteúdo, são as seguintes: Divino
O sujeito individual que vive em pecado, em luta contra as realidades imediatas e as misérias da existência finita, por estar afastado de Deus, foi predestinado pela eternidade a realizar a conciliação consigo mesmo e com Deus. Porém na história da redenção de Cristo, foi a negação da individualidade imediata que se revelou como o momento essencial; por isto só a renúncia à sua parte natural e à sua personalidade finita podem conduzir o sujeito individual à elevação até a liberdade e à paz em Deus.
Por três meios essa vitória sobre a finitude pode ser alcançada: Divino
Em primeiro lugar, pela repetição exterior da história da Paixão que nós acabamos sentindo como sofrimento real e corporal: o martírio.
Em segundo lugar, pela conversão interior pura, pela mediação interna, realizada através do arrependimento, do remorso e da penitência.
Em terceiro lugar, a manifestação do Divino na realidade do mundo exterior é concebida como supressão do curso natural dos acontecimentos e da forma normal das coisas; é a crença nos milagres em que o poder e a presença do Divino se revela.
A primeira maneira do espírito manifestar sua presença no sujeito humano é aquela em que o homem reproduz em si mesmo a história da paixão, fazendo de si mesmo um protagonista da história eterna de Deus. Isto quer significar o desaparecimento da conciliação afirmativa direta, porque o homem deve conquistá-la na vitória sobre sua finitude. Desta forma o sentimento da indignidade humana é aumentado e intensificado, e a única e superior missão do homem agora é a de vencer essa indignidade, libertar-se deste sofrimento humilhante.
O meio que permite atingir esse fim consiste em suportar os sofrimentos mais cruéis com estoicismo, em impor a si próprio todas as renúncias, sacrifícios, privações; portanto em infligir a si mesmo dores, martírios, torturas, visando assegurar o triunfo do espírito em si mesmo, realizar a união com Deus, criar um céu feito de paz e felicidade. Esse aspecto negativo da dor no martírio se torna um fim em si, e o grau da transfiguração é medido pelo grau de atrocidades que o homem suportou e dos sofrimentos que sentiu. No homem que ainda não desenvolveu por completo sua interioridade, a primeira coisa que tem de ser separada deste mundo e santificada é a sua existência natural, a sua vida, a satisfação das suas exigências mais urgentes e vitais. O que mais contribui para o afastamento da vida com suas exigências e satisfações, para o habituar-se à dor e ao sofrimento, que por fim são vistos como fonte de alegrias, são os martírios corporais, infligidos por inimigos e perseguidores da sua fé, cheios de ódio e de rancor, ou então inventados pelo próprio homem. Em ambos os casos, o homem animado pelo fanatismo do sofrimento aceita o que lhe ocorre não como injustiça, mas como bênção, como a única maneira de vencer a dura impiedade da carne, do coração e da alma, conciliando-se desta maneira com Deus.
Entretanto só ao preço de humilhações e sevícias, de violências contra a carne é que se obtém a conversão interior nas situações que abordamos aqui, e isso torna evidente que a questão da beleza não se coloca para tais violências, que se tornam um assunto muito perigoso para a arte. Os indivíduos devem ser representados, por um lado, em medida maior do que na história da Paixão de Cristo, como indivíduos reais estigmatizados pela existência temporal, mergulhados na finitude e na naturalidade; por outro lado, as torturas e terríveis atrocidades, as mutilações e deslocamentos de membros, os martírios do corpo, os cadafalsos, as decapitações, o suplício do fogo lento, do azeite fervente, da roda, a morte na fogueira etc., por si mesmos constituem processos feios, repugnantes, de tal modo estranhos à beleza que não podem ser assunto para qualquer forma de arte sadia. O artista com certeza pode realizar uma execução perfeita de assunto desse gênero, mas esta será uma perfeição apenas referida ao subjetivo, que, por mais artístico que seja, se esforçará em vão para atingir a concordância absoluta do sujeito consigo mesmo.
Por este motivo, a representação deste processo negativo ainda precisa de um outro elemento que ultrapassa essas torturas do corpo e da alma, dirigindo-se à conciliação afirmativa. É a conciliação do espírito consigo mesmo, o fim e resultado das atrocidades sofridas e suportadas. Os mártires são, com relação a isto, os guardiães da divindade, a qual eles defendem da brutalidade da força exterior e da barbárie da descrença; eles suportam a dor e aceitam a morte para ganhar o reino dos céus, e a força, coragem e perseverança que os anima deve se manifestar por sinais evidentes. Entretanto, apesar da sua beleza espiritual, essa interioridade da fé e do amor não prova a existência de uma saúde espiritual difundida através do corpo; sim, ela constitui uma interioridade nascida da dor e que, até sua transfiguração, embebe-se ainda numa atmosfera de sofrimento que transmite à sua representação artística. Estes assuntos da piedade foram tratados principalmente pela pintura. Sua missão maior é exprimir a felicidade que os mártires encontram nas mutilações da carne, mostrando, nos traços da fisionomia, no olhar, etc., a resignação, a vitória sobre a dor, a alegria dos mártires que possuem o sentimento da presença espiritual. Pelo contrário a escultura, menos adequada para a representação da interioridade que se concentra nessa forma espiritualizada, só poderá exprimir os sentimentos do mártir mostrando sua causa material, isto é, reproduzindo as mutilações, as deformações e fissuras do organismo corporal.
O mártir não pretende– com esta renúncia e olvido de si mesmo, com esta resignação–, somente abstrair-se da existência natural e da finitude imediata, mas quer principalmente elevar sua alma para o céu até abolir em si tudo o que existe de propriamente humano, tudo que o mantém preso ao mundo, embora os laços que o tornam solidário com o mundo sejam puramente morais e racionais. Quando o espírito, ao se esforçar por fazer viva em si a idéia da conversão, sente-se ainda mais afastado de seu objetivo, mais bárbaros e abstratos são os meios que a força concentrada da piedade o obrigará a empregar na luta contra tudo o que, por sua natureza finita, se opõe à finitude simples em si da religiosidade contra todos os sentimentos humanos, as inclinações morais, exigências, deveres, solicitações do coração. É que a vida moral no coração da família, os laços da amizade, do sangue e do amor, as obrigações para com o Estado ou impostas pela profissão, isso tudo faz parte das coisas deste mundo; e estas, enquanto não estiverem penetradas pelo Absoluto da fé, enquanto não forem absorvidas pelo Absoluto, aparecem à abstrata interioridade da alma crente como indignas de ser admitidas na esfera dos sentimentos e das obrigações, como coisas perniciosas, inúteis e hostis à piedade.
O organismo moral do mundo humano é considerado indigno de atenção porque seus aspectos e deveres ainda não são reconhecidos como anéis necessários e legítimos da cadeia de uma realidade racional em si, que em nada deve atingir o estado de independência isolada mas em que tudo deve, no entanto, ser apreciado como um momento significativo que não convém sacrificar. Vista sob esse aspecto, a conciliação religiosa continua a ser abstrata e a existir no coração simples em si como fé intensa mas sem extensão; é a piedade do coração voltado para si mesmo, que ainda não atingiu a certeza geral e completa, uma segurança racional e compreensiva. Quando uma alma dotada de tal força persevera nessa atitude negativa perante o mundo e se isola, quebrando todos os laços humanos com violência, dá com isso tamanha prova de brutalidade e de bárbara tendência para a abstração, que somos obrigados a nos afastar dela. Do ponto de vista compatível com nossa atual consciência, podemos honrar e estimar esse tipo de religiosidade nas representações alusivas a ele, mas quando a piedade alcança tais proporções que chega a maldizer e renegar o que é moral e racional, somos obrigados a recusar nossa simpatia a tal fanatismo pela santidade e denunciar como imoral e contrária à verdadeira religiosidade a renúncia que considera abominável, que destrói e pisa naquilo que consideramos legítimo e sagrado.
As lendas, histórias e poemas sobre este assunto são vários. Existe por exemplo a história de um homem que, cheio de amor pela esposa e pela família, abandona o lar e cai numa vida errante e um dia regressa como mendigo, mas sem se dar a conhecer; dão-lhe esmola e uma cama no vão da escada; nesse estado ele vive durante vinte anos em sua própria casa, assistindo ao desgosto da família que chora sua ausência, e só revela sua identidade no momento da morte. Esse fanatismo monstruosamente egoísta nos é apresentado como exemplo de santidade. Tamanha persistência na renúncia lembra-nos o requinte de sofrimentos que os hindus se infligem com intuito religioso. Mas a tolerância do hindu apresenta um caráter diferente. Enquanto ele procura o esquecimento mergulhando na profunda noite da consciência, o objetivo do mártir cristão é pelo contrário a dor e a consciência da dor, fim que procura alcançar com tanto maior segurança quanto mais estiverem seus sentimentos ligados à consciência do valor das coisas que rejeita e do seu amor por essas coisas, bem como a consciência dos esforços que faz para prolongar sua renúncia. Quanto mais rico e nobre for o coração que se impõe estas provas, e quanto mais severamente se castigar, com mais dureza sentirá a ausência de conciliação que o expõe às mais terríveis convulsões e aos mais furiosos descarnamentos. Uma alma assim, em nossa concepção, que só quer a si mesma em um mundo inteligível e abomina os deveres e obrigações do mundo real, com os fins que almeja e que são em evidência legítimos, uma alma assim, embora estando presa na engrenagem deste mundo, nas exigências morais que considera repugnantes por serem contrárias a seu destino absoluto, jamais poderá, com os seus sofrimentos montados artificialmente, dar-nos impressão diversa da que nos transmite uma alma perdida, desencaminhada, incapaz de inspirar piedade e indigna de servir como exemplo. Falta a tais manifestações uma finalidade que seja válida para todos, um conteúdo que seja compreensível para todos, pois o que se realiza nelas é puramente subjetivo, o fim a alcançar é o de um único indivíduo que nada mais quer além de salvar sua própria alma, sua felicidade egoísta. Mas a salvação ou a felicidade deste ou daquele indivíduo não podem interessar a um grande número de pessoas.
Um modo de representação oposto ao que acabamos de descrever contém a mesma esfera da religiosidade; ele consiste em abstrair dos sofrimentos corporais exteriores bem como em adotar atitude negativa face ao conteúdo legítimo da realidade mundana; este modo de representação se vê colocado, pelo conteúdo e pela forma, em um terreno mais próximo da arte ideal. Agora trata-se apenas das dores espirituais, de conversão da alma. Assim nos são poupadas, por um lado, as atrocidades e horrores das mutilações do corpo; por outro lado, a religiosidade bárbara da alma já não se ergue contra a humanidade moral ou a moral humana visando, no abstrato de uma satisfação puramente intelectual, encerrar-se na dor de uma renúncia absoluta e esmagar aos pés toda espécie de prazer; aquilo contra o que a alma se opõe é o que existe de verdadeiramente criminoso, mau e condenável na natureza humana. É a alma movida por aquela certeza elevada de que a fé, impulso que transporta o espírito para Deus, é capaz de anular um ato realizado, de torná-lo estranho ao sujeito, seja este ato pecado ou crime, e apagá-lo para sempre. Evasão do mal, do negativo absoluto inerente ao sujeito, evasão conseqüente ao desdém que sentem vontade e espírito por si mesmos por causa do mal de que são culpados, regresso ao positivo agora aceito como única realidade oposta à anterior vida pecaminosa: assim manifesta-se a potência verdadeiramente infinita do Amor religioso, da realidade e da presença do espírito absoluto no sujeito. Perseverança e força do espírito subjetivo que, assistido pelo Deus a quem se dirige, triunfa do mal e, enquanto se beneficia daquela assistência, sente-se unido a Deus, o que para ele é uma feliz fonte de alegria.
Se ele não deixa efetivamente de conceber Deus como um 'Outro' Absoluto perante o mundo profano mergulhado no pecado, também não deixa o sujeito de se sentir idêntico a esse infinito e à certeza de possuir uma consciência que participa da consciência divina. Portanto, trata-se de uma conversão puramente interior, que por isso é mais domínio da religião do que da arte; considerando porém que tal conversão realiza-se justo na alma que possui o poder de dar a conhecer, por sinais exteriores, a vida que se agita nela mesma, a arte plástica, a pintura, adquire com isso a possibilidade e o direito de procurar seus temas nas histórias de conversões. Porém, querendo representarem-se tais histórias em todos os seus pormenores, mais uma vez se chegaria a resultados incompatíveis com a beleza, pois muitos desses pormenores têm caráter criminoso e repugnante. Os resultados mais satisfatórios e mais adequados ao conceito do belo, a pintura os alcançará caso apenas represente a conversão e o fazer numa só imagem, sem outros detalhes que pertencem ao que é repreensível e condenável. Assim é a imagem de Maria Madalena, que se deve incluir entre os mais belos assuntos deste gênero, e que foi tratada de maneira particularmente notável e artística pelos pintores italianos. Exterior e interiormente, Maria Madalena aparece nestes quadros como a bela pecadora, tão atraente no pecado como na conversão. Entretanto seu pecado e santidade nunca são levados muito a sério; muito lhe é perdoado porque ela amou muito; ela recebe o perdão por causa de seu amor e sua beleza; seu aspecto comovente consiste no arrependimento que sente por ter amado tanto, nas lágrimas de dor que verte e que são testemunho da bela sensibilidade da sua alma. Seu erro não foi o de ter amado muito; mas é um erro comovente e belo e que a faz julgar-se uma pecadora porque sua beleza, onde se reflete uma rica sensibilidade, mostra que só nobremente e do mais profundo da alma ela poderia ter amado.
O último item, ligado aos dois anteriores e confundindo-se com eles, refere-se aos milagres, que têm um dos lugares mais importantes na vida religiosa. Pode-se definir o milagre como a história da conversão de uma existência natural imediata. A realidade é concebida como algo comum, acidental; é uma finitude que se desagrega, se transforma quando é tocada pelo Divino que intervém diretamente no exterior e particular, e se interrompeu que por convenção chamou-se o curso natural das coisas. A finalidade principal de muitas lendas consiste em representar a maneira da alma, nas suas manifestações exteriores, comportar-se em relação a esses fenômenos que transpõem os quadros da natureza e nos quais acredita ver-se na presença de Deus. Na verdade, porém, o Divino não pode interferir na natureza senão como razão, na forma das leis imutáveis que Deus impõe à natureza, e não é, portanto, através de fenômenos e eventos isolados, contrários às leis naturais, que o Divino pode se manifestar. Só as leis eternas e as determinações racionais interferem na natureza. É assim que as lendas evidenciam quase sempre um aspecto absurdo, artificial e sem o menor sentido, e seu objetivo é apenas fazer acreditar que a presença de Deus está em coisas e circunstâncias incompatíveis com as exigências da razão, portanto falsas e sem nada a ver com o Divino. Emoção, piedade, a conversão de que se ocupam tais narrativas podem oferecer decerto algum interesse, mas só como fatos e experiências interiores; mas querendo estabelecer, entre essas experiências interiores e os eventos exteriores uma relação tal que os primeiros aparentem ser efeitos dos últimas, será necessário que estes não constituam um desafio à razão e ao bom senso.
São estes os principais aspectos do conteúdo substancial que, no âmbito que até aqui nos ocupou, corresponde à natureza de Deus e ao processo pelo qual e no qual Deus se manifesta como espírito. Trata-se de um objeto absoluto que a arte não cria e não expressa pelos seus próprios meios, mas que recebe da religião e que trata com a consciência de que ele representa e exprime a verdade. É o conteúdo de uma alma crente, que é uma totalidade infinita por ela mesma, apesar de o "fora" permanecer mais ou menos exterior e indiferente a ela; não conseguindo realizar uma perfeita harmonia entre o fora e o dentro, esse conteúdo só pode fornecer à arte assuntos inadequados, difíceis e quase sempre até impossíveis de tratar em função das exigências da arte.
Inclusão | 27/06/2014 |