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Jacob Gorender nasceu em Salvador, Bahia, em 1923. Filho mais velho de imigrantes judeus russos, bastante pobres, com muito esforço chegou à faculdade de direito, que acabou abandonando para alistar- se como voluntário da Força Expedicionária Brasileira, lutando na Itália como soldado na Segunda Guerra Mundial. Militante profissionalizado do Partido Comunista (PCB), exerceu cargos importantes em sua estrutura, atuando em vários estados entre 1942 e 1968, quando saiu para fundar — com Mário Alves, Apolônio de Carvalho e outros — o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Sua atividade na oposição à ditadura o levou a dois anos de prisão em São Paulo. Ao sair da cadeia, deixou a militância partidária e desenvolveu seu veio intelectual, ancorado em base sólida, adquirida como professor em cursos do PCB e jornalista de várias publicações comunistas, além de formulador teórico do partido. Desde os anos 70, tem escrito uma obra consistente sobre a história do Brasil, em livros como O escravismo colonial (1978), Combate nas trevas (1987), A escravidão reabilitada (1990), Marcino e Liberatore (1992), Marxismo sem utopia (1999), todos publicados pela editora Ática, de São Paulo.
A entrevista foi realizada na casa de Gorender. Com a clareza e a verve que o caracterizam, ele conversou durante cerca de quatro horas com Alípio Freire e Marcelo Ridenti. A seguir, seguem os trechos principais da entrevista para a Margem Esquerda, cuja edição coube a Rodrigo Nobile e Marcelo Ridenti, redator também desta breve introdução. Com a palavra nosso pensador das esquerdas e do Brasil, que revisou o texto que segue.
Nasci em 20 de janeiro de 1923. Éramos cinco irmãos, todos homens. A minha família era paupérrima, por diversas circunstâncias. Cheguei a passar fome, tive alimentação deficiente, que influenciou minha saúde, pois fiquei enfraquecido. Quando meu pai se casou em segundas núpcias com a minha mãe, ele já tinha cinqüenta anos e ela uns trinta. Ou seja, ele não tinha mais forças para fazer o trabalho que os judeus faziam, de ir às periferias vender utensílios domésticos. Bolsas, sapatos, cortes de fazenda etc. (um judeu ia à frente, com uma caderneta, e um negro ia atrás, com um baú. Lembro-me de que eles anotavam tudo na caderneta e os negros, pardos e mulatos, seus clientes, eram de uma honestidade absoluta). Assim, meu pai conseguiu um emprego, por meio da comunidade judaica: entregava pães, logo pela manhã.
Estudei em uma escola israelita chamada Jacob Dinenson. Depois, cursei o ginasial clássico, de quatro anos, naquele que veio a se chamar posteriormente Colégio da Bahia. Lembro que tive um tênis que furou e precisei tapar com papelão para continuar calçando. Como era bom aluno, poderia passar no vestibular da faculdade de direito, mas não tínhamos dinheiro nem para pagar a taxa de inscrição. Assim, perdi um ano. Quem me ajudou foi o Ariston Andrade, que trabalhava na Infraero. Ele me arranjou emprego no jornal O imparcial, que circulava em Salvador, pertencente à família de um coronelão do interior chamado Franklin Albuquerque, que comprou o jornal para defender seu monopólio da produção da cera de ouricuri, usada na época para fazer discos de vinil.
Não posso negar que o fato de ser judeu exerce uma influência sobre meu modo de ver as coisas e a cultura. Além das disciplinas obrigatórias — dadas por um professor negro, aliás —, havia aulas de iídiche, língua não mais falada em Israel, que hoje usa apenas o hebraico modernizado. Na Bahia viviam cerca de mil judeus e a comunidade tinha uma sede em que se celebravam os cultos religiosos, onde curiosamente se separavam os asquenazes, que vinham da Europa, e os sefardim, que vinham de países árabes. Eu freqüentava a sinagoga e comemorava as festas judaicas. Mas quando tinha quatorze anos comprei em um sebo, na praça da Sé, A origem das espécies, de Charles Darwin, que prova que a espécie humana não nasceu pronta e acabada, mas é o resultado de um processo de evolução. Por isso me tornei ateu, não fui mais à sinagoga e abandonei a religião.
Pessoalmente, nunca sofri discriminação dentro ou fora do partido pelo fato de ser judeu. Nunca perdi uma promoção, um posto, nunca fui recusado etc.
No Brasil, acho que as pessoas podem ter idéias anti-semitas, mas o anti-semitismo como ação prática quase não existe. Getúlio Vargas fechou alguns jornais que eram editados em iídiche e tomou algumas medidas anti-semitas, mas depois teve de entrar na guerra e não pôde continuar com essas ações.
Comecei como arquivista em O imparcial, trabalhando num setor com um pó tremendo — e eu sofro de rinite... Mas logo o secretário Edgard Curvelo, um típico secretário de jornal que gritava com todo mundo, percebeu minhas potencialidades e me colocou na seção internacional. Recebíamos o noticiário via rádio da Associated Press e eu editava. Depois fui trabalhar no Estado da Bahia, dos Diários Associados, do Assis Chateaubriand.
Outra revista importante dos comunistas baianos era a Seiva, financiada por João Falcão — comunista pertencente a uma das famílias mais ricas da Bahia —, da qual fui redator e diretor. A redação se localizava na rua Chile, uma das mais chiques de Salvador. Tiramos uns vinte números, nos quais publiquei vários artigos.
Acho que o fato mais interessante foi causado pela publicação de uma entrevista incisiva com o general Manuel Rabelo, do Superior Tribunal Militar, que tinha uma posição antifascista. Eu o entrevistei em Salvador. Ele disse que o Brasil precisava participar da guerra efetivamente. Isso antes da criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Achava que não valia a pena declarar guerra e não participar; denunciou que os soldados convocados, em vez de serem treinados para a guerra, ficavam limpando latrinas. Isso atraiu uma censura pesada sobre a revista. Eles não podiam punir o general, mas eu e os irmãos João e Wilson Falcão terminamos na prisão, na Guarda Civil de Salvador, onde ficamos uns cinco ou seis meses, acusados de subversão, por termos publicado a entrevista. O general foi de uma dignidade irreprochável, confirmando a entrevista. Só sei que, após essa entrevista, a revista fechou. Mas a polícia não sabia que éramos comunistas.
O fato é que em julho de todos os anos se reunia no Rio de Janeiro o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que tinha grande repercussão nacional. Eles se reuniam em um edifício na praia do Flamengo que era chamado Germânia, mas o Getúlio mandou nacionalizar todos os nomes estrangeiros. A sede foi doada à UNE pelo Getúlio, que recebia a delegação dos estudantes na época dos congressos — mais tarde, fiz um discurso lá, já como soldado da FEB. Em uma das audiências com os estudantes, eles se queixaram de que havia antifascistas presos e Getúlio mandou nos soltar, anulando o processo.
Tornara-me comunista em 1942. Fui recrutado por Mário Alves, que conhecera na militância estudantil e a quem dediquei meu livro Combate nas trevas. Era a época do Estado Novo, ditadura de Getúlio, os livros antifascistas não circulavam, o comunismo era perseguido. Navios brasileiros foram torpedeados pelos submarinos do Eixo. Muitos civis afogados desses navios vieram parar na costa do Nordeste, inclusive da Bahia, provocando um movimento popular vigoroso com grandes passeatas, o que levou o Brasil a declarar guerra ao Eixo. Eu participei da campanha para o Brasil entrar na guerra, fiz discursos públicos e me tornei conhecido. Nessa época o jornal passou a ter um programa de rádio que era realizado na própria redação, e eu falava por uns quinze minutos sobre a área internacional. Já era 1942, uma fase em que o nazismo estava declinando. Em 1942 se dá a importantíssima batalha de Stalingrado. Em agosto de 1942, o governo brasileiro declarou guerra ao Eixo.
Em 1943, o governo de Getúlio, já alinhado aos Estados Unidos, fez um projeto de enviar três divisões brasileiras à Itália. No final só enviou uma divisão, 25 mil soldados. Havia os soldados dos regimentos, mas também se abriu o voluntariado. Nesse ínterim, um general fez uma provocação: “Os estudantes que participaram das manifestações, exigindo que o Brasil participasse ativamente da guerra, têm agora a oportunidade de se apresentar como voluntários”. Assim, eu, o Mário Alves e o Ariston Andrade decidimos nos apresentar voluntariamente, sem passar pela aprovação do Partido Comunista, que na época se encontrava esfacelado, em virtude da repressão. O Mário Alves era muito franzino, portanto não foi aceito. Eu tinha naquele momento uns vinte anos, era franzino e tinha a estatura mínima permitida, mas acabei incorporado ao Exército. Fomos enviados em um pequeno navio a São Paulo, já que na Bahia não havia treinamento apropriado. O naviozinho no qual fomos para o sul era acompanhado por um navio de guerra brasileiro, pois havia o perigo de torpedeamento. As condições eram precárias, dormíamos ao relento, fazendo do nosso capacete o travesseiro. Felizmente não choveu. Serviam carne quase crua, o que causou aos soldados grande descontentamento, e eu pensei que fosse resultar num levante. Seria um pão-de-ló para os nazistas se houvesse esse levante. Então tomei coragem, fui conversar com o capitão do navio e, com diplomacia, alertei-o quanto ao perigo. Ele tomou providências, a comida melhorou e tudo acabou bem. Quando cheguei a Taubaté, onde o treinamento era dado, recebi um fuzil Springfield norte-americano, fizemos exercícios com canhões, mas fui selecionado para o pelotão de transmissões, no setor telegráfico, que exigia certo nível cultural, pois havia a necessidade de aprender o código Morse. Apresentei-me, falando que era terceiranista de direito. Nessa condição, fomos à Itália. Entramos em um navio norte-americano, no Rio de Janeiro, e partimos. Os norte-americanos proibiram todos os pratos da culinária brasileira, como a carne- seca, os outros ingredientes da feijoada, só permitindo na Itália o feijão com arroz. Forneceram-nos dois sacos de roupas, um para o inverno e outro para o verão europeu.
Apesar de estarmos sob o Estado Novo, havia alguma liberdade de imprensa, pois o inimigo era o fascismo. Maurício Grabois, Pedro Pomar e João Amazonas editavam uma revista chamada Continental, que defendia as posições antinazistas. Fui à redação no centro do Rio, onde conheci o Grabois e eles me deram uma senha para contatar alguns comunistas, que também embarcariam comigo. Eram quatro oficiais, entre tenentes e capitães, e alguns sargentos. Nenhum soldado, que eu me lembre, mas pode ser que me engane. Eu estabeleci contato com os oficiais. A importância do grupo era pequena, pois eram poucos, não se pode superestimar. Vou mencionar um nome, pois ele já morreu e isso não interferirá em sua carreira militar: Alberto Firmo de Almeida, do setor de transmissões, o que me possibilitou um contato freqüente sem levantar suspeitas. Outro comunista que gostaria de citar é o Hilton Vasconcelos, combatente na artilharia. O encontro era difícil, pois estávamos em guerra e a frente se estendia por uns vinte quilômetros, mas, como eu trabalhava na transmissão, tinha alguma mobilidade. Ficávamos na estrada 64, sofrendo os bombardeios dos alemães que dominavam o monte Castelo. Durante o inverno, a FEB realizou três tentativas de tomá-lo, que fracassaram porque nevava muito e não havia condições de progredir. Uns vinte soldados, que se aproximaram do comando alemão, morreram ali, e seus cadáveres só foram resgatados quando a neve derreteu. No total, o Brasil perdeu 484 soldados, aos quais se acrescentam cerca de três mil feridos. Alguns amigos morreram, mas nenhum de antes da guerra.
Não me lembro de ter recrutado nenhum soldado para o partido. A FEB editava um jornal, impresso em Florença, que tinha a colaboração do pintor comunista Carlos Scliar. Nesse jornal, publiquei um artigo assinado. Não conhecia o Salomão Malina na época, ele não era da minha unidade. Ele foi condecorado por bravura. Depois da guerra, quando Malina se tornou comunista, o presidente Dutra cassou sua medalha. Não se pode cassar o heroísmo.
Quando retornamos ao Brasil, demos baixa. Voltei a Salvador e me integrei ao Partido Comunista (PC), cujo dirigente principal era o Giocondo Dias. Ali passei a dirigir o jornal que o partido editava, chamado O momento, precário graficamente, com uma impressora muito modesta, mas tirávamos entre 1.500 e 2 mil exemplares que circulavam diariamente. Ao mesmo tempo, militava no comitê municipal do PC. Até que os dirigentes nacionais, que ficavam no Rio de Janeiro, me convocaram para trabalhar lá, no Classe operária, o jornal teórico do partido, semanal. Depois, passou a se chamar Novos rumos. Eu aceitei mudar de Salvador, embora soubesse que isso ia magoar meus pais. Foi no final de 1946. Além de Novos rumos, trabalhei para o jornal diário A imprensa popular, até que eles foram fechados e veio a ilegalidade do partido. Mas como eu não havia participado de nenhuma ação direta, vivia legalmente.
No Rio, ajudei a fundar a associação dos ex-combatentes, que se reunia em um edifício de uma entidade chamada Liga de Defesa Nacional. Permaneci no Rio uns seis anos, depois me desloquei para São Paulo, por volta de 1953. O primeiro-secretário do PC em São Paulo era o Carlos Marighella, eu era o segundo-secretário de propaganda. Depois houve a campanha pela paz, o famoso Apelo de Estocolmo, que dizem ter sido redigido por Stalin. Fazíamos coleta de assinaturas, mas a minha participação não foi relevante.
Eu lia muito, tinha muita curiosidade. Stalin e Lenin, todos éramos obrigados a ler. Depois do Estado Novo, a literatura marxista tornou-se mais disponível. Recebíamos as obras basicamente em castelhano, algumas em francês.
Já haviam enviado a Moscou uma primeira turma de estudantes, com o Apolônio de Carvalho e outros. Fui na segunda turma, em meados de 1955, verão lá. Em vez de vivermos em Moscou, nos colocaram a 30 quilômetros, em uma mansão gigantesca, que deveria ter pertencido a alguma família da nobreza do tempo de czarismo. Em um pavilhão ficaram uns quarenta homens e em outro cerca de uma dezena de mulheres, entre elas a minha futura companheira, Idealina. Nos enamoramos, mas só nos unimos no Brasil, pois ali não era possível. Ficávamos isolados e só tínhamos contato com professores, seguranças, uma enfermeira e cozinheiros. Apenas quando tínhamos problemas médicos nos levavam a Moscou, e raras vezes para assistir a peças de teatro ou concertos no Teatro Bolshoi. Em seis ou sete meses, eu já podia falar russo. Ali as aulas eram em russo, com tradução para o espanhol, pois não havia tradutor para o português. Mas poucos tinham familiaridade com o espanhol, estes contavam com a ajuda dos colegas.
Nos domingos havia uns bailecos, com vitrola de discos de acetato em 48 rotações. Tocavam-se valsas, sambas, algumas músicas russas que serviam para dançar. Mas tinha umas dez mulheres para quarenta homens, então as coitadas tinham que dançar sempre, revezando os parceiros. Havia uma vigilância moralista, mas ali nasceram namoros, acho que não apenas o meu.
Não me incluíram na delegação brasileira ao XX Congresso do Partido Comunista soviético, em 1956. Os delegados foram o Diógenes Arruda Câmara, o Mário Alves e o Maurício Grabois, que era o chefão da nossa turma. Também foi delegado o Jover Telles, que mais tarde viria a se tornar um traidor, como se sabe, pois entregou a direção do PCdoB em 1976. Lamento muito o ocorrido.
Aí explode o famoso informe de Kruschev. Primeiramente o Pravda, que eu já lia, publicou uns excertos, afirmando que o congresso havia criticado Stalin; mas o informe não foi publicado. Tive acesso a ele, pois a enfermeira da casa tinha um exemplar em russo. Assim, com a benevolência dela, pude me informar de todos os detalhes e contá-los ao Arruda e ao Grabois, que não dominavam o russo. Eles ficaram alarmados e pensaram: “Vai sobrar para nós”, pois a direção brasileira era de um stalinismo tremendo. E sobrou mesmo. Quando saiu o informe de Kruschev, isso dividiu a nossa turma. Uma parte achou que não era justo e a outra ficou a favor do informe, inclusive eu.
Quando a União Soviética invadiu a Hungria em 1956, isso nos causou uma péssima impressão. Ao menos no pessoal com idéias mais avançadas dentro da nossa turma. Tínhamos um rádio em nosso quarto.
Acompanhei as transmissões vindas de Budapeste, em língua russa. Foi emocionante. Eles diziam: “Estão nos cercando”,
“Disparam contra nós”, até que a transmissão cessou.
Voltando ao informe, como se sabe, ele vazou no exterior. Acho que o próprio Kruschev foi responsável pelo vazamento. No Brasil, chegaram informações, uma vez que o informe tinha sido editado pelo New York Times, e reeditado pelo Estado de S. Paulo. A princípio, os comunistas brasileiros acharam o documento apócrifo, mas quando a delegação chegou da União Soviética, o Arruda e o Mário Alves confirmaram que o documento era exato.
Foi um deus-nos-acuda, porque as bases se rebelaram. Um intelectual do partido chamado João Batista de Lima e Silva, um sergipano muito inteligente e culto, diretor de Novos rumos naquele momento, abriu um debate nessa publicação e na Imprensa popular. Todos podiam escrever e dar a sua opinião.
Assim, diariamente apareciam cartas e artigos de companheiros, dirigentes ou não, que eram publicadas, criticando o partido, a direção etc. Com isso, foram inevitáveis as mudanças na direção. Essas notícias nos chegaram em Moscou. Nós voltamos em 1957, quando soubemos que a luta interna era intensa e que o partido corria o risco de se dividir.
Eu participava de um grupo chamado “abridistas”, ou seja, os favoráveis à abertura da discussão. Tornei-me diretor da Imprensa popular, jornal favorável à discussão. Quando voltei ao Brasil, formamos um grupo que se reunia no apartamento de um intelectual do partido, muito culto, chamado Alberto Passos Guimarães. Eu, Mário Alves, Armênio Guedes, Giocondo Dias — que fazia a ligação com Prestes, ainda sob clandestinidade moderada — e o Alberto. O Jorge Amado participou de uma ou duas reuniões, mas depois se afastou. O Apolônio se integrou depois, quando voltou ao Brasil. Nessas reuniões surgiu a idéia de elaborarmos um documento que viria a ser conhecido como Declaração de Março de 1958. A declaração teria de romper com a linha do chamado Manifesto de agosto de 1950, que pregava a luta armada, e oficialmente ainda estava em vigor. Nós estávamos no governo de Juscelino, não havia um único preso político, a imprensa era livre, os jornais do partido circulavam abertamente, então a nossa linha estava fora de sintonia. Assim, redigi a declaração, que foi uma obra coletiva proposta por nós e aprovada pelo Prestes. Essa declaração passou a ser a linha do partido. Em 1960 se reuniu o V Congresso do Partido, que corroborou a linha da Declaração de Março e ampliou o contexto e abordou outros assuntos, resultando em um livreto. Houve mudanças na direção. Saíram o Amazonas, o Grabois e Pomar, que foram fundar o PCdoB.
A revista Estudos sociais foi criada pelo PC para publicarmos os artigos de maior fôlego que sugiram e não cabiam na imprensa diária. Foram dezenove números, até que veio o golpe de 1964. Não tínhamos divisões, apenas discussões. Eu tinha boas relações com o Leandro Konder, o Carlos Nelson Coutinho, o Astrojildo Pereira — que era um patriarca, fundador do partido —, o Jorge Miglioli, entre outros. Não havia veto da direção do partido sobre os artigos. Havia limites, não se podia ir além do que Prestes aceitaria. Ele até abriu muitas coisas, mas havia um limite.
Não se pensava em luta armada no partido até 1964. Mas havia uma divergência no Comitê Central sobre o que apoiar e criticar no governo do Jango, e antes no do Juscelino. Em que sentido mobilizar as massas? Era esse o ponto, mas não se falava ainda em luta armada, embora sofrêssemos a influência das revoluções chinesa e cubana.
O Fidel passou aqui no Rio em 1960, voltando de um comício em Buenos Aires, e fez um comício na Esplanada do Castelo para umas 10 mil pessoas, pois não houve tempo para uma grande mobilização. Fidel não falou em socialismo, e não foi tão radical como depois se tornaria. Mas falou em libertação, antiimperialismo, antiamericanismo etc.
Em Combate nas trevas, de fato, afirmo que não preparamos uma resistência ao golpe de 1964 e deveríamos tê-la preparado, uma resistência de massas, mas não quer dizer que hoje eu pense exatamente igual ao que escrevi no Combate. Não advertíamos as massas, não as mobilizamos, estávamos tranqüilos, dentro das condições do governo Jango. Quer dizer, não havia nenhuma idéia de que um golpe pudesse ocorrer. Não havia sequer refúgios no caso de um golpe, nem para a própria direção. Eu estava em Goiânia quando ocorreu o golpe, e passei à clandestinidade, não podendo voltar à casa no Leblon onde passei o período mais feliz da minha vida. Nessa condição, passei a atuar em São Paulo e Rio Grande do Sul, já casado com a Idealina.
Na clandestinidade, foi fundado o PCBR. Fizemos uma reunião de militantes divergentes em Niterói e ali surgiu a idéia de fundarmos um outro partido. O Marighella não foi, pois já estava atuando por conta própria, com o que viria a se tornar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas nós queríamos ter um partido, então mantivemos a sigla e agregamos o R — Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. O PCB, com o Giocondo e o Prestes, já não nos interessava, e dele fomos expulsos em 1967. O PCBR chegou a fazer algumas ações armadas, no Rio e em Recife. Eu era o responsável pelo PCBR em São Paulo e aqui não permiti nenhuma ação armada. Era um núcleo não muito grande e procurávamos influir por meio da imprensa, da publicação de folhetos, entre outras atividades.
Fui preso no dia do meu aniversário, em 20 de janeiro de 1970, e fiquei no antigo presídio Tiradentes. Fui condenado a dois anos, pois não tinha cometido assaltos, me acusaram apenas de atividades subversivas. Meu advogado foi Raimundo Pascoal Barbosa, aqui em São Paulo, na Auditoria Militar. No Rio, no Tribunal Superior Militar, foi o George Tavares, ambos muito eficientes.
Fui torturado, não tanto como o Mário Alves, que foi meu grande amigo, companheiro de estudos, de uma vida inteira. O Mário foi preso, levado ao quartel da Polícia do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio, e foi uma das pessoas mais torturadas do período da ditadura militar. Como sempre, os torturadores queriam primeiramente o local onde a pessoa morava, depois quais eram os seus pontos. Se ele revelasse onde morava, a mulher e a filha seriam estupradas, torturadas e assassinadas. Ele sabia disso e não entregou a casa dele. Ele não é lembrado como devia, mas é um dos grandes heróis do povo brasileiro.
Outro herói é o Apolônio de Carvalho, recentemente falecido. No ano passado, estive no Rio e fui visitar a viúva dele, Renée. Na entrada do edifício do Leblon, havia uma placa com os dizeres “Aqui morou Apolônio de Carvalho, herói do povo brasileiro”. Na França, é comum encontrar isso. Esse fato me deixou muito emocionado.
Ao deixar a cadeia, tive várias fases. A primeira coisa que fiz para ganhar a vida foi tradução, do espanhol e inglês principalmente, para a Editora Ática. Trabalho penoso, nem sempre traduzia o que gostava. Antes da prisão já tinha a idéia de escrever O escravismo colonial, porque, das leituras que eu fazia, não via razão para caracterizar o passado brasileiro como feudal, que era a doutrina oficial do partido, tendo sido o Brasil o maior importador de escravos de toda a América. Na cadeia, dei um curso sobre isso. Pareceu-me que o passado brasileiro nada teve de feudal, mas sim de escravista. Aí percebi que, trabalhando com tradução, não conseguiria fazer um livro. Comecei a contatar algumas pessoas que pudessem me dar uma quantia em dinheiro, que me propiciassem condições de me dedicar em tempo integral ao livro. Assim, pude escrevê-lo em uma velha Olivetti, e foram várias pessoas citadas nos agradecimentos do livro.
Pude freqüentar a Biblioteca Municipal, a biblioteca da Universidade de São Paulo (USP) — da qual não podia retirar livros, mas outros companheiros retiravam e me emprestavam — e freqüentar arquivos do Estado. Ou seja, juntar a documentação. Nisso passei uns três ou quatro anos. Com o texto pronto e revisado à mão, precisava editá-lo. Mas como fazer isso? Já tinha uns cinqüenta anos ou mais, não era conhecido, pois havia apenas publicado artigos. Aí fui até o José Adolfo Granville, que trabalhava na Ática. Ele tomou os originais e entregou ao consultor da editora, o professor Alfredo Bosi, a quem sou extremamente grato. Ele não me conhecia, pois eu não era universitário, mas recomendou a publicação, que ocorreu em 1978. Depois vieram mais seis edições, às quais fui acrescentando dados, novas entrevistas, e a obra assumiu a forma definitiva. Terminado o livro, fui trabalhar na Editora Abril, e lá fiquei durante oito anos, graças ao Pedro Paulo Poppovic, que era o chefão e grande sujeito.
Depois, nos anos 80, me ocorreu a idéia de escrever sobre o que foi o período militar. Era necessário contar o que houve para fazer a autocrítica da esquerda. Estávamos entrando no período da constituinte de 1986, que culminou com a Constituição de 1988. Tinha que contar o que foi a violência pavorosa da ditadura, com o DOI-Codi, Operação Bandeirante, tortura, assassinatos. Também por parte da esquerda, dos assaltos, dos justiçamentos. Nessa época, eu já tinha o dinheiro, que obtive com amigos, para me dedicar à tarefa integralmente. A primeira edição foi ampliada, pois consegui outras entrevistas que antes, por receio, não eram dadas.
Minha vida poderia ser diferente? Poderia. Muitas coisas que acontecem levam a tal ou qual caminho na vida, mas seria difícil que fosse diferente. Primeiramente, eu venho de uma família muito pobre, o que me empurrava à esquerda, com ódio ao capitalismo. Tornei-me materialista, antes de conhecer o marxismo, através do Darwin. Minhas convicções socialistas anticapitalistas se formaram solidamente nesse período e duram até hoje. É claro que tantas coisas aconteceram, veio o XX Congresso da União Soviética, as revelações do Kruschev, a dissolução da União Soviética, depois voltei em 1991 a São Petersburgo, Hungria e Polônia, onde pude conversar com muitos adeptos dos partidos comunistas daquela época. Eu vi pela televisão, em Varsóvia, o último discurso do Gorbatchev, que já não governava nada, quando baixaram a bandeira de União Soviética e hastearam a da Rússia. E a Rússia se tornou um país entrosado no capitalismo, à sua moda, com grande presença do Estado, sem dúvida, mas capitalista.
Tenho 84 anos completos e boa saúde. Meu pai viveu 90 anos e minha mãe, 85, ou seja, ainda não cheguei à idade deles e tenho mais recursos médicos. Se tiver tempo, inspiração e força, vou escrever um livro sobre Fidel Castro, comparando-o a Stalin, dois governantes inspirados pelo marxismo. Admiro o heroísmo do Fidel, de ter feito de Cuba um baluarte do projeto de socialismo, apesar de ser um país pobre e vizinho dos Estados Unidos. Mas preferiria que em Cuba houvesse uma democracia socialista. Como seria, não sei. É um ideal. Algum dia será realidade.
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Inclusão | 23/04/2015 |