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Primeira Edição: Entrevista a Néstor Kohan. O original encontra-se em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=6742
Fonte: http://resistir.info
Tradução: JPG
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Os argentinos, os chilenos e muitos outros latino-americanos estão acostumados a ver os principais chefes militares com a sua tradicional pose prepotente, arrogante e autoritária. Na nossa América, cada vez que estas personagens sinistras se dirigem ao povo mostram os dentes como cães assassinos. Fiéis guardiões dos seus amos, os empresários locais e o imperialismo norte-americano, estes militares vêem nos seus próprios povos – o "inimigo" dizem-no nos seus textos doutrinários, ou "civilacho"(1) na sua intimidade – com desprezo e soberba.
Imenso contraste! Quando alguém se aproxima do general Vasco Gonçalves tem a impressão exactamente oposta. Este homem, que foi dos mais destacados militares do 25 de Abril de 1974, a célebre Revolução dos Cravos que derrubou o fascismo em Portugal, fala pausadamente, de forma suave e calma. Tem os gestos amáveis e a atitude de um velho professor universitário. Dirige-se aos interlocutores com um ênfase pedagógico que não consegue dissimular.
A Revolução dos Cravos foi atípica. Teve lugar na Europa Ocidental, precisamente quando se supunha que a revolução já estava fora da agenda. Segundo escreveu o próprio Vasco Gonçalves, "a Revolução de Abril terá sido, na Europa Ocidental e depois da Comuna de Paris, a maior ofensiva feita contra o sistema capitalista". Precisamente quando nos restantes países europeus se abriam as flores murchas do eurocomunismo e da social democracia (correntes que renunciavam a toda a rebelião radical, não por uma momentânea debilidade de forças, mas por princípios políticos) Portugal pôs na ordem do dia a questão do poder. Isto teve lugar em plena crise capitalista (1973-1974), quando o dólar e o petróleo sofreram um abanão mundial, liquidando o keynesianismo do pós guerra e abrindo caminho ao neoliberalismo.
Esta revolução realizada em plena guerra fria deslocava o papel tradicional das Forças Armadas europeias, especialistas na guerra contra- revolucionária nas colónias africanas e, ao mesmo tempo, peritas na contra-revolução e na tortura pelos militares latino americanos (Brasil, Argentina, Chile, etc).
A de Portugal foi uma revolução que questionava num mesmo movimento o vínculo imanente entre capitalismo, fascismo e colonialismo. Três formas de dominação que costumam apresentar-se na literatura política como se fossem fenómenos desligados entre si.
Na gestação dessa situação explosiva convergiram diversas circunstâncias históricas. Por um lado, a rebeldia indomável dos movimentos insurreccionais e guerrilheiros das colónias portuguesas (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, etc). Por outro lado, a crescente mobilização interna do povo português e das suas classes trabalhadoras, fartos de quase 48 anos de ditadura fascista (a mais longa da Europa, encabeçada por Salazar e depois por Caetano). Mobilização que originou, inclusivamente, o aparecimento de núcleos de resistência político-militar, como o dirigido pela Acção Revolucionária Armada (ARA), braço de auto-defesa impulsionado pelo Partido Comunista Português a partir de 1970, apesar de por esses anos a União Soviética defender, para toda a órbita ocidental, a "coexistência pacífica" e o respeito pelas "áreas de influência".
Produto da guerra colonial e desse conjunto de circunstâncias, emergiu uma crescente politização e radicalização dos militares portugueses, os quais em 25 de Abril encabeçaram um levantamento contra a ditadura. Algumas vendedoras de flores na rua ofereceram cravos vermelhos aos soldados insurrectos contra o fascismo. Estes colocaram-nos nos canos das suas espingardas. Uma fotografia que correu mundo deu o nome à revolução. Os insurrectos foram acompanhados pela mobilização de todo o povo e por isso o levantamento militar transformou-se vertiginosamente numa revolução.
O general Vasco Gonçalves foi um dos principais líderes e sem dúvida o mais radical. Foi membro do Movimento das Forças Armadas (MFA) e do Conselho da Revolução. Ocupou o cargo de Primeiro Ministro durante vários governos provisórios que vieram a sofrer tanto golpes reaccionários palacianos como golpes de Estado clássicos.
Em Novembro de 1975, um ano e meio depois do início da Revolução dos Cravos, o governo revolucionário foi derrubado. Caiu perante um golpe de estado de direita (no qual se reprimiu o levantamento de algumas unidades militares da esquerda radical). Diferentemente das intentonas anteriores, este novo golpe contra-revolucionário saiu vitorioso. Foi instigado pelo Partido Socialista Português – Mário Soares como responsável civil –, pelos EUA, pela social democracia internacional e pela Internacional Democrata Cristã.
Quanto ao papel de democracia cristã internacional, cabe recordar que, por esta altura, ela participou na desestabilização e no golpe de estado contra o presidente marxista Salvador Allende no Chile, ao mesmo tempo que preparava um golpe em Itália, se o PCI ganhasse as eleições.
Ainda quanto ao papel da social democracia, não pode esquecer-se que a 15 de Setembro de 1975, apenas dois meses antes do golpe, o líder do Partido Socialista Mário Soares tinha denunciado publicamente, dando alento à conspiração da direita que se preparava na sombra, que Portugal corria o risco de converter-se "numa espécie de Cuba na Europa". Um pecado imperdoável ! Anos depois foi público o estreito entendimento então alcançado entre Mário Soares e Frank Carlucci, na altura embaixador dos EUA em Portugal e proeminente homem da CIA, para impedir que surgisse "uma nova Cuba", agora na Europa.
A partir do triunfo da reacção de direita com máscara social democrata, em Portugal tudo volta à "normalidade"... isto é, ao capitalismo, à exploração e à obediência.
Vasco Gonçalves é hoje um homem idoso, mas ainda se lhe incendeia o olhar com o brilho de um adolescente, quando fala da revolução que o teve como principal expoente das forças populares.
Modesto e simples, sente-se surpreendido quando uma humilde camponesa, mais velha que ele, vestida de negro da cabeça aos pés, se aproxima para lhe acariciar a cara, expressar-lhe a sua admiração e sentar-se com ele como se fosse um filho.
Este general atípico defende Cuba e Venezuela e trata por assassinos os militares repressores; declara-se abertamente marxista citando com familiaridade Lenine; envia saudações a Fidel e Raul Castro, enquanto elogia com entusiasmo Hugo Chavez e critica acidamente a social democracia. É sem dúvida uma avis rara. Dialogar com ele deixa uma sensação estranha que surge espontaneamente quando o comparamos com qualquer dos militares tradicionais, sejam eles "nacionalistas" ou liberais, treinados na repressão popular e na protecção servil dos poderosos com dinheiro.
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Nestor Kohan: Como recorda hoje a revolução do 25 de Abril de 1974?
General Vasco Gonçalves: A revolução que se estendeu entre Abril de 1974 e Novembro de 1975 foi o momento mais importante da minha vida, do ponto de vista pessoal. Participar na revolução foi a maior alegria que me foi dado viver. Penso em muitas coisas, no quotidiano, na vontade das pessoas, no espírito reivindicativo e de luta...
NK: Como foi o processo revolucionário?
General Vasco Gonçalves: A partir do levantamento contra o fascismo em Abril de 1974, a nossa revolução vai aprofundando as suas conquistas, modificando as últimas estruturas que caracterizam o sistema. À medida que se sucedem as transformações, a luta de classes vai-se agudizando. Penso que naquela situação não estávamos preparados, não tínhamos um grau de maturação política e social capaz de defender e consolidar a revolução. Não tínhamos esse grau de maturação. Nos primeiros tempos, nos primeiros meses houve um grande entusiasmo popular. Depois, à medida que as conquistas se foram aprofundando, começaram as nacionalizações e expropriações, a reforma agrária, a força dos trabalhadores foi subindo. Os trabalhadores conquistaram muito do ponto de vista político e social, nas relações de trabalho, nas relações entre patrões e assalariados e isso fez com que se agravassem muitas coisas. Fundamentalmente agudizou-se a luta de classes.
NK: Que falhou no processo revolucionário? Por que não pode consolidar-se e triunfar?
General Vasco Gonçalves: Em Portugal não houve de facto forças suficientes porque nas massas populares dominou predominantemente o espírito pequeno burguês tradicional, o medo das transformações, o medo do comunismo, a acusação de que nós queríamos levar o país para o comunismo... todas essas mensagens reaccionárias e propagandísticas tiveram certa receptividade na nossa população. Portanto o Movimento das Forças Armadas foi dividido. Houve militares que se puseram contra as conquistas da revolução, em lugar de as defender. Os próprios vencedores do golpe contra revolucionário do 25 de Novembro de 1975, que foi feito contra os militares situados mais à esquerda, contra os militares progressistas e revolucionários – um golpe que foi protagonizado por uma fracção de militares que tinha participado no levantamento de 25 de Abril de 1974 – paradoxalmente, aceitavam conquistas do socialismo. Alguns destes militares que protagonizaram o golpe de direita de 1975 estavam convencidos que nós, os militares de esquerda, queríamos implantar uma nova ditadura em Portugal, que agora seria uma ditadura comunista. Na verdade esta crença provinha de propaganda da reacção. Assim se dividiu o MFA e a própria população. Então, até mesmo os vencedores do golpe contra revolucionário de fins de 1975 aprovaram uma lei constitucional que dizia que a missão das Forças Armadas era garantir a via pacífica e pluralista para a democracia e o socialismo. O preâmbulo da Constituição da República também se propunha "abrir o caminho para uma sociedade socialista, no respeito pela vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno". Precisamente o que nós queríamos! Eles, os militares que nos derrotaram, estavam convencidos que nós íamos implantar uma nova ditadura, agora comunista, e fizeram então essa lei em defesa do socialismo. Estiveram contra nós, contra camaradas militares, contra os que apoiavam as reivindicações populares e queriam precisamente consolidar essas reivindicações que haviam sido alcançadas.
NK: Fala de propaganda reaccionária e anticomunista destinada a dividir o processo político. Nós, latino americanos, conhecemos muito bem isso. A CIA estava activa em Portugal?
General Vasco Gonçalves: A CIA estava activa! Sim! Juntamente com a CIA estavam activos os serviços de inteligência britânicos. Quanto à CIA é bem conhecido o caso do ex-embaixador norte- americano em Portugal no tempo da revolução, Frank Carlucci, que depois da sua acção em Portugal foi promovido nos Estados Unidos a vice-director da CIA. Também são bem conhecidos os elogios mútuos que trocaram Mário Soares, secretário-geral do Partido Socialista e apoio civil da contra- revolução, e Frank Carlucci. Soares chegou a enaltecer recente e publicamente o grande papel deste homem da CIA na "instauração da democracia em Portugal"... Depois dessas declarações que mais se pode acrescentar?...
NK: A CIA também estava infiltrada nas Forças Armadas?
General Vasco Gonçalves: É minha convicção que sim. No entanto, as condições que vivemos em Portugal não foram as mesmas que se viveram no Chile em 1973, onde a CIA tinha maior influência. Em Portugal, a burguesia, encabeçada pelo PS e pelo PSD, conseguiu dividir o MFA e os próprios trabalhadores. A contra-revolução foi feita por uma via quase pacífica, ao contrário do que aconteceu no Chile.
NK: Qual é então o balanço?
General Vasco Gonçalves: Na hora de fazer um balanço das causas pelas quais fomos derrotados, eu penso que a sobrevivência e permanência da ideologia pequeno-burguesa e burguesa entre a maioria das massas trabalhadoras e entre a maioria dos militares possibilitaram que a direita e a direcção do Partido Socialista golpeassem a direcção da revolução. Deste modo a direcção do Partido Socialista esforçou-se por definir os militares revolucionários e o Movimento das Forças Armadas (MFA) como comunistas. Diziam-nos que éramos todos comunistas, para assim poderem acusar-nos, isolar-nos e afastar-nos. Isso foi o que a direcção do Partido Socialista conseguiu. De aí em diante, desde 1976 até aos nossos dias, Portugal foi e é governado pela direita.
NK: O senhor então era comunista?
General Vasco Gonçalves: Eu então era marxista e continuo a sê-lo.
NK: Como se formou? Como chegou ao marxismo dentro das Forças Armadas?
General Vasco Gonçalves: Nos tempos de estudante.
NK: O que estudava?
General Vasco Gonçalves: Estava na Faculdade de Ciências. Estudava engenharia militar.
NK: Era uma universidade civil?
General Vasco Gonçalves: Sim, era uma universidade civil. Para entrar na escola militar estudei num curso de engenharia que se cursava durante três anos na Faculdade de Ciências. Ali afeiçoei-me a amigos, que eram estudantes, e a outro grande amigo, um professor que me levou a compreender as relações sociais.
NK: Eram muitos os estudantes marxistas?
General Vasco Gonçalves: Não, na realidade não eram muitos. Na época tudo era censurado. Faltava-nos a liberdade. Essa profunda falta de liberdade do nosso povo deu sentido ao levantamento militar e à revolta popular contra a ditadura e contra a falta de liberdade, contra as posições patronais, contra a exploração dos trabalhadores. Então, o Partido Comunista tinha uma grande influência sobre a população. Era praticamente o único partido organizado que lutava contra o regime fascista.(2) O Partido Comunista contava com uma considerável influência entre os trabalhadores das fábricas. Nesse momento os trabalhadores portugueses eram principalmente agrícolas, porque Portugal era essencialmente um país agrícola. Isso influiu para que predominasse, entre a maioria dos trabalhadores, a ideologia pequeno-burguesa e até burguesa, quase tradicional. Portugal tinha uma influência muito forte da Igreja e pesava muito a tradição. A debilidade no desenvolvimento capitalista de Portugal e o seu atraso do ponto de vista industrial contribui para explicar que entre os trabalhadores predominasse, de facto, a ideologia da classe dominante. Como sabe, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. A população lutava contra o fascismo. Começou então a guerra colonial, que teve uma grande influência na maturação da consciência política de um determinado número de militares que protagonizaram o levantamento do 25 de Abril de 1974.
NK: Quanto durou a guerra de Portugal nas suas colónias?
General Vasco Gonçalves: A guerra durou 13 anos, desde 1961 até 1974. Durante a guerra colonial os militares foram compreendendo que essa guerra não tinha solução pela via das armas. O problema colonial tinha de ser resolvido reconhecendo o direito dos povos à autonomia e à independência.
NK: Quais eram as guerras coloniais de Portugal?
General Vasco Gonçalves: A guerra colonial desenvolveu-se em África: em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau. A partir de 1964 havia três frentes simultâneas. Nessas três colónias havia três campanhas militares.
NK: Participou nas guerras coloniais?
General Vasco Gonçalves: Sim, participei.
NK: Onde?
General Vasco Gonçalves: Estive em Angola e em Moçambique.
NK: Nessa época a França educava os seus militares na doutrina da guerra contra-revolucionária, que aplicou na Argélia e Indochina. Os Estados Unidos fizeram-no também no Vietnam. Na América Latina essa doutrina da guerra contra-revolucionária difundiu-se muito, graças à França e aos Estados Unidos. Aos senhores também os educaram nesse tipo de guerra contra-revolucionária?
General Vasco Gonçalves: Quando começou a guerra colonial vieram ao nosso país oficiais do exército francês na Argélia. Eles falavam-nos de operações. Não era um ensino ou uma instrução formal. Davam conferências sobre a guerra de Argélia, sobre as operações militares e sobre o modo de enfrentar os guerrilheiros.
NK: Em que ano esses instrutores deram as suas conferências?
General Vasco Gonçalves: Eu calculo que tenha sido em 1961, 1962 e 1963. Foi no princípio da guerra colonial. Nessas conferências falavam do ponto de vista operacional militar, do ponto de vista das operações anti-guerrilha e também do ponto de vista da acção psico-social: Como conquistar as populações quando havia movimentos de libertação, movimentos de guerrilha anti-colonial? Como conquistar as ideias das populações? Isso era chamado "acção psico-social".
NK: Como compreendiam os militares portugueses as guerras coloniais e a resistência dos povos oprimidos?
General Vasco Gonçalves: Os militares portugueses foram compreendendo que a solução não podia ser militar, que a guerra não se ganharia. Além disso o mal estar nas colónias conduziu à politização. Quero dizer que os movimentos de libertação das colónias portuguesas deram uma grande contribuição para a própria libertação do fascismo e do colonialismo em Portugal. Os militares portugueses foram reconhecendo que cada luta de cada um destes povos era uma luta justa. Em contrapartida, a nossa guerra, do ponto de vista de Portugal, era uma guerra injusta. A guerra colonial não era uma guerra sentida nem querida pelas próprias massas portuguesas. Do ponto de vista moral os militares estavam cada vez mais desmotivados na guerra colonial. Também por isso entre os oficiais e os quadros militares permanentes surgiu o descontentamento e a oposição contra a guerra colonial. Entre eles, uma minoria constituiu o Movimento das Forças Armadas (MFA). Isto significa que uma coisa é o Movimento das Forças Armadas e outra coisa são as Forças Armadas. O MFA era constituído por uma pequena parte dos oficiais de carreira e quadros permanentes que elegeram como profissão a vida militar. As Forças Armadas também eram constituídas pelos milicianos, os quais, depois de passarem pelo serviço militar obrigatório, voltavam à vida civil. Estes últimos só eventualmente eram militares.
NK: Que importância teve a existência destes milicianos?
General Vasco Gonçalves: A participação de milicianos nas nossas forças era cada vez maior porque não se podia manter três frentes de batalha ao mesmo tempo. Essa grande participação de milicianos conduziu também à consciencialização dos quadros permanentes e dos oficiais de carreira. Essa foi a sua importância. Além da luta dos povos coloniais e do descontentamento dos militares portugueses, existia uma grande efervescência no movimento estudantil. Tudo isto confluiu.
NK: O Movimento das Forças Armadas (MFA) só agrupava os militares e quadros permanentes ou também incluía os milicianos?
General Vasco Gonçalves: Incluía ambos. Foi a própria guerra colonial que conduziu a que os quadros permanentes contactassem imediatamente os quadros milicianos. Como ambos os grupos tinham a mesma vida, corriam os mesmos riscos na guerra, isso influiu para que houvesse um intercâmbio de ideias e opiniões entre os quadros profissionais permanentes e os militares milicianos. Eles, os milicianos, estavam melhor preparados politicamente que nós, os militares profissionais, porque nas universidades civis havia uma discussão ideológica, política e social que não existia nas escolas militares. Por essa razão os militares milicianos estavam melhor preparados ideologicamente. Isso conduziu à criação de melhores condições de maturação na consciencialização política dos militares e quadros permanentes.
NK: O Movimento das Forças Armadas (MFA) tinha uma orientação marxista?
General Vasco Gonçalves: Não, de maneira nenhuma. O MFA não era um movimento revolucionário. Era um movimento que pretendia pôr fim à guerra colonial e resolver o problema da independência das colónias portuguesas que era, na verdade, a causa da guerra colonial. O fascismo e o colonialismo não podiam conceder a autonomia e a independência aos povos coloniais. O que nós pretendíamos era encontrar uma solução política para a guerra colonial. E a única solução política consistia no reconhecimento do direito à autonomia e à independência de todos os povos coloniais. Esse era o nosso objectivo fundamental. Nesse objectivo a grande maioria dos militares estava de acordo, e os mais audazes, os mais activos, os que tiveram mais coragem para tentar alcançar esse objectivo foram os que constituíram o Movimento das Forças Armadas (MFA).
NK: Quantos eram os que integravam o MFA?
General Vasco Gonçalves: Cerca de 300 ou 400 militares, aproximadamente, enquanto o conjunto de oficiais permanentes das Forças Armadas era um total de 7.000 ou 8.000.
NK: O MFA actuava na clandestinidade?
General Vasco Gonçalves: Sim, éramos clandestinos. Nesse momento o governo fascista já estava muito desgastado e em Portugal havia uma grande contestação contra o fascismo entre as massas populares e trabalhadoras. Por isso as reivindicações do Movimento tiveram uma grande receptividade.
NK: Em que ano nasceu o MFA?
General Vasco Gonçalves: Em 1973. O ditador Salazar já tinha morrido e o seu sucessor pretendia fazer uma política que aparentemente era mais "suave", pretendia dar uma cara mais "liberal" ao fascismo. A nossa situação agravava-se dia a dia. A situação na guerra colonial piorava a cada momento. Pouco a pouco o Movimento das Forças Armadas foi colocando as suas reivindicações a céu aberto. As reuniões de discussão do Movimento sobre o futuro das Forças Armadas e de Portugal não eram abertas porque existia uma polícia política fascista chamada PIDE, que também estava metida dentro das Forças Armadas. Chegou-se, então, a uma situação na qual o governo já não tinha poder suficiente para impor a sua vontade e nós, os oficiais, já não estávamos dispostos a aceitar todas as ordens. Começavam a existir as condições subjectivas necessárias e imprescindíveis para uma revolução.
NK: Está a pensar na análise de Lenine sobre uma situação revolucionária?
General Vasco Gonçalves: Naturalmente. Estou a pensar exactamente nisso. Portanto, as múltiplas circunstâncias iam conformando as condições subjectivas para o triunfo da revolução.
NK: Como foi a ligação entre a ascensão das massas trabalhadoras e a própria dinâmica das Forças Armadas (MFA)?
General Vasco Gonçalves: Na altura as Forças Armadas em Portugal não tinham um objectivo de revolução social, queríamos uma democracia política, melhores condições de vida para os trabalhadores, melhores condições para o desenvolvimento da cultura em Portugal... No conjunto, como Movimento – repito e sublinho as palavras "como Movimento" – não estava entre os nossos objectivos fazer uma revolução socialista. Depois, com o avanço do movimento popular e das reivindicações populares, e com o impulso da justeza destas reivindicações, a luta de classes levou-nos ao projecto da transição para o socialismo. Uma vez, um intelectual brasileiro disse que nunca tinha visto no mundo um movimento popular nas ruas como o que tinha visto em Portugal. Um movimento nas ruas com as suas reivindicações... existia a enorme influência entre os trabalhadores do Partido Comunista, que era o único partido organizado politicamente que tinha combatido o fascismo. Uma influência que se estendia aos trabalhadores rurais. Deste modo foi-se desenvolvendo um processo de reivindicações populares, que eram justas e que foram consideradas justas pelos próprios militares. Era assim natural que esse processo desembocasse, pelo seu próprio desenvolvimento, numa luta pelo socialismo. Aqueles militares que estavam verdadeiramente identificados com os interesses populares e com a razão das massas trabalhadoras dominaram as relações de força dentro do Movimento das Forças Armadas (MFA). Este último era um movimento unitário. Tinha como base a necessidade da solução política do problema colonial. Nisso estávamos todos de acordo, desde a direita até à esquerda, e isso levou-nos à conclusão de que para solucionar o problema colonial era necessário derrubar o governo fascista. A princípio, entre os nossos camaradas militares, muitos pensavam que se podia impor ao governo fascista outra solução para o problema colonial, sem necessidade de o derrubar, mas isso não resultou. Mas logo desde a formação do Movimento das Forças Armadas, desde o Verão de 1973 até Abril de 1974, foram amadurecendo as ideias dos militares. Isto permitiu amadurecer as condições subjectivas, as condições ideológicas, as condições do factor subjectivo para derrubar o governo fascista. Nós concluímos que com aquele governo não era possível chegar a uma solução política do problema colonial. Tornava-se necessário derrubar, deitar abaixo o governo fascista para, então, solucionar o problema colonial negociando com os movimentos de libertação, como por exemplo o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). O governo fascista-colonialista foi derrubado pelo Movimento das Forças Armadas e logo nesse momento houve um vigoroso levantamento popular e nacional.
O impulso das massas populares e dos trabalhadores, exigindo um empenhamento social e político mais alargado e profundo do que o inicialmente previsto pelo Movimento das Forças Armadas fez que a relação de forças dentro do Movimento fosse favorável aos militares que mais se identificavam com as aspirações, as reivindicações, os interesses populares e imprimiu uma dimensão revolucionária ao golpe militar. Foi nestas condições que surgiu a aliança Povo-MFA, que foi o motor da revolução. Nessa acção popular tiveram um papel destacado o Partido Comunista, outras forças progressistas e o movimento sindical. O MFA era dirigido por uma Comissão Coordenadora e constituiu uma Junta de Salvação Nacional que era formada por oficiais generais que, na sua maioria eram gente de direita, mas que, também, estavam de acordo com a solução do problema colonial por via pacífica e através de uma solução política.
NK: A esquerda do Movimento das Forças Armadas (MFA) tinha por objectivo o projecto da revolução socialista?
General Vasco Gonçalves: Nesse momento ainda não. Havia algumas pessoas que tinham ideias e mais conhecimentos sobre o socialismo e o marxismo, mas pensavam que não havia condições em Portugal para fazer uma revolução socialista. Mas ao longo do processo revolucionário surgiu uma via de transição para o socialismo, através da realização das diversas e sucessivas conquistas populares. Por exemplo, a nacionalização da banca, a nacionalização dos seguros, a nacionalização dos principais sectores básicos da produção industrial, a nacionalização das principais empresas de transporte e comunicações, a reforma agrária baseada em unidades colectivas de produção, o controlo operário, os direitos cívicos, sindicais, laborais e políticos dos trabalhadores. Todas estas conquistas e direitos foram-se alcançando e foram modificando as estruturas económicas. Quando se nacionalizam a banca e as finanças, os seguros e os sectores básicos da produção, começa-se a caminhar por uma via de transição para o socialismo. A via de transição para o socialismo foi surgindo ao longo deste processo de lutas de classe. O que importa destacar é que, o que surge como um golpe e um levantamento militar contra o fascismo e o colonialismo vai-se transformando numa revolução social.
NK: Ao descrever aquele processo revolucionário, do qual agora se cumprem 30 anos, destaca a perspectiva do socialismo. No entanto, hoje em dia, três décadas depois, alguns teóricos propõem recomeçar o projecto do socialismo por uma "terceira via". A partir da sua experiência política, que opinião tem da "terceira via"?
General Vasco Gonçalves: Penso que hoje não há espaço para uma "terceira via". A experiência do passado e do presente demonstra-nos que a "terceira via" caminha sempre para a direita, caminha sempre num rumo reformista do capital, para a ideia de uma suposta "reforma do capital". Não se trata de alcançar um capitalismo reformado sem superar o capitalismo. O capitalismo não é reformável, porque as relações sociais nas quais se baseia, e sem as quais não pode sobreviver, são intrinsecamente injustas e de exploração do homem pelo homem. A "terceira via" não persegue conquistas profundas nas estruturas económicas e sociais. Basta olhar a Inglaterra, a França e a Alemanha para corroborá-lo. Jospin em França, Schroeder na Alemanha e Blair na Grã-Bretanha adoptaram na prática políticas neoliberais e de privatizações. Todos os que pretendem colocar-se entre o capitalismo e o socialismo, no final acabam por adoptar políticas neoliberais.
NK: Tendo em conta os processos políticos em que participou, que pensa da situação que actualmente vive a Venezuela com a liderança de Hugo Chavez?
General Vasco Gonçalves: Penso que também ali se produziu uma aliança entre o povo pobre e as Forças Armadas nas específicas condições geográficas, económicas e políticas da Venezuela e da América Latina. Ali também se está a fazer a tentativa de uma via pacífica e pluralista para o socialismo. O governo do presidente Hugo Chavez está a partir de um processo institucional, mas está de facto a fazer uma revolução.
NK: Alguns teóricos recomendam ao presidente Hugo Chavez seguir o caminho da "terceira via". Na sua opinião é viável na Venezuela uma "terceira via".
General Vasco Gonçalves: Penso que na Venezuela se está a desenvolver algo bem distinto de uma "terceira via". Ali não há "terceira via" mas o desenvolvimento, de facto, de um processo institucional, através das instituições e do voto popular para a revolução e para o socialismo, não para a "terceira via". Isto é o que eu penso. Para que isso se consiga, é necessário que as Forças Armadas apoiem as reivindicações populares, sociais e políticas. Dentro das Forças Armadas os sectores mais progressistas têm predomínio nas relações de força. Quando houve um golpe contra Chavez e o prenderam, quem o libertou? A acção popular e uma fracção das Forças Armadas que estava do seu lado. Na Venezuela há camadas com bases sociais de apoio entre a população civil. Apoio entre os militares e os civis. Creio que a Venezuela se está a transformar, por uma via pacífica e pluralista, através de um processo de caminho para a revolução e o socialismo. Digo "via pacífica e pluralista" porque na Venezuela não há presos políticos, não há partidos políticos proibidos nem nada disso. Nem sequer os golpistas foram presos. Não é verdade?
NK: Sim é verdade. Mas a via pacífica para o socialismo, para lhe dar um exemplo, não teve graves consequências no fracasso da experiência do Chile em 1973? Não se corre esse perigo?
General Vasco Gonçalves: Sim, Chile, claro que sim! Por isso mesmo ninguém pode dizer que está consolidada a via pacífica e institucional de transição para o socialismo na Venezuela. Não penso que a Venezuela não possa sofrer ou padecer com problemas de contra-revolução; problemas de intervenção dos Estados Unidos, problemas de manipulação das massas populares. Penso que o que se está a passar na Venezuela não exclui que haja grandes ameaças para a democratização, a revolução e o futuro caminho para o socialismo. Na Venezuela também há um processo. A mim dá-me a impressão que esse processo tem cada vez mais apoio popular. Isso verificou-se no recente processo do referendo revogatório. A maioria de apoio a Chavez aumentou. Por isso, quem está de fora como eu, tem a impressão que esta revolução na Venezuela avança, que tem cada vez mais apoio social. Passam-se coisas que também sucederam em Portugal como a acção dos militares entre a população, as campanhas de dinamização cultural do povo feita pelos militares. Na Venezuela o governo está ocupado em grandes tarefas sociais que têm que ver com a melhoria da vida das populações, com a melhoria das infraestruturas e o problema do acesso popular a estas, das organizações, da instrução, da saúde pública, etc. Na Venezuela os militares estão muito empenhados nisso. Nós, em Portugal, também nos esforçámos fortemente nesse sentido.
NK: Hugo Chavez e a Venezuela receberam um apoio maciço por parte de Fidel Castro e do povo cubano. Que opinião tem da revolução cubana?
General Vasco Gonçalves: Penso que a revolução cubana é um exemplo de que é possível resistir, quando existe vontade política para isso e o apoio das massas. Cuba demonstra que a resistência ao imperialismo, a resistência aos Estados Unidos e ao resto dos países imperialistas, é possível. Claro que isso exige sacrifícios. Isso obriga a ter muita consciência política e muita consciência social. Penso que a revolução cubana é um exemplo para todo o mundo, para todos nós. Tanto Cuba como a Venezuela são exemplos para todos aqueles que querem um mundo melhor. Eu, como português, estou profundamente agradecido à revolução cubana e não tenho a menor dúvida de que Cuba é um exemplo para todo o mundo. Um exemplo de que é possível resistir ao avanço do sistema capitalista e à sua globalização e, inclusivamente, ao poder militar mais poderoso de toda a história, porque a "mão invisível" da globalização não é a de Adam Smith mas a força militar dos Estados Unidos e, numa forma subsidiária, da Nato. A revolução cubana demonstra que a política neoliberal não é uma fatalidade nem inelutável. Tenho plena confiança que a revolução cubana não baixará os braços e continuará resistindo.
NK: Como militar e tendo em conta o seu grau de general, qual é a sua opinião sobre militares como o general Videla, sobre Pinochet, sobre Stroessner?
General Vasco Gonçalves: Naturalmente que esses militares são uns criminosos. Tenho a pior impressão de todos eles. Não tenho a menor dúvida de que são uns criminosos e uns assassinos. Criminosos de guerra! Assassinos! Não os podemos conceber de maneira que não seja como autênticos assassinos.
Notas de rodapé:
(1) Depreciativo de civil (nota do tradutor). (retornar ao texto)
(2) O Partido Socialista é recente, formou-se em 1973 e fora de Portugal, na Alemanha Ocidental (nota de N. K.). (retornar ao texto)