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Primeira Edição: Capítulo do livro "Vasco Gonçalves – Um General na Revolução", publicado pela Editorial Notícias. Entrevista conduzida por Maria Manuela Cruzeiro.
Fonte: Resistir.info
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Um outro assunto: todos sabemos que cada vez menos os estados são donos e senhores dos seus destinos. As influências e pressões internacionais são, infelizmente, muito fortes, sobretudo nos pequenos países como o nosso. O processo revolucionário foi acompanhado com a máxima atenção (e preocupação) pelas grandes potências mundiais. O Senhor General afirmou que a CIA trabalhou directamente na queda do Quinto Governo. Não é, naturalmente, o único a fazê-lo, mas o seu testemunho tem um valor especial...
Bom... é um assunto muito delicado, ainda mais para mim, como compreende. Pela própria natureza do meu cargo, não podia afirmar publicamente, como de facto nunca fiz, que a CIA trabalhou directamente na queda do Quinto Governo, mas isso não significa que não tivesse as minhas ideias sobre o que se passava. Concretamente, e como exemplo, posso citar as pressões feitas pelos americanos sobre o Presidente da República, que condicionaram o seu apoio à ponte aérea para regresso dos colonos de Angola e à demissão do Quinto Governo Provisório. Agora, os serviços de inteligência, os serviços secretos, se trabalham bem, não deixam, assim, no momento, provas concretas, fáceis de apresentar publicamente. Podemos ter suspeitas, indícios, informações, hipóteses, e daí tiramos conclusões e procuramos agir em conformidade. Só quando são cometidos erros grosseiros, ou desclassificados os arquivos dos serviços, ou ainda quando surgem a posteriori declarações de antigos agentes ou seus colaboradores é que aparecem à luz do dia essas actividades.
O Senhor General teve, por razões institucionais, contacto directo com o embaixador norte-americano, Frank Carlucci. Com que opinião pessoal ficou?
Antes de mais, é do conhecimento geral que as actividades de um embaixador dos EUA e as da CIA, em qualquer país, são partes do mesmo todo. Tive, naturalmente, contactos pessoais de primeiro-ministro para embaixador dos EUA, mas, por várias razões, era necessário ser reservado e cuidadoso nas conversas. Ele era, como sabe, um alto funcionário da CIA, com uma folha de serviços «brilhante», e foi por isso também que veio para Portugal. E a acção que cá desempenhou também deve ter sido muito apreciada pelo Governo norte-americano, uma vez que daqui foi promovido a vice-director daquela agência. Certamente que, dados os reflexos na opinião pública daquilo que os jornais publicavam desse passado, ele tinha a noção de que nos era suspeito, assim era também cauteloso. Apesar de conhecida essa actividade em vários países, como o Zanzibar, o ex-Congo Belga e o Brasil, não havia condições para se recusar a sua acreditação pelo Presidente da República, general Spínola, e pelo governo português. Éramos aliados dos EUA, membros da NATO e uma atitude dessas seria considerada pelos americanos um acto hostil.
Mas com todas essas cautelas (e reservas) de parte a parte como decorriam os vossos encontros?
A melhor resposta à sua pergunta poderá ser aquilo que disse aos jornalistas aquando do nosso primeiro encontro. Quando terminou, estavam muitos jornalistas para saber como decorreu. Disse-lhes que acertara um modus vivendi com ele. Que tínhamos falado com franqueza e que, se esta prevalecesse, as relações poderiam correr bem. Franqueza era, naturalmente, uma expressão de circunstância, diplomática. Agora dessa franqueza também fazia parte a ideia, que penso que lhe transmiti, de que quando os governos têm a noção da sua dignidade, do respeito pela independência nacional, podem, de certa forma, contrariar tentações de intervenções nos seus assuntos internos. O próprio Carlucci, no primeiro encontro que teve comigo, disse-me que pensava dar uma conferência de imprensa e perguntou-me se eu via nisso algum inconveniente. Respondi--lhe que poderia dizer o que entendesse, desde que não molestasse o MFA e o governo português, nem se intrometesse nos nossos assuntos internos.
Foi então esse o tom do primeiro encontro.
Ao contrário do que se possa pensar, tive muito poucos encontros com ele. Então a partir do meu regresso de Bruxelas, em fins de Maio de 75, não tive praticamente nenhum. Penso que, depois das conversações na capital belga com o presidente dos EUA e o secretário de Estado Henry Kissinger, e tendo eles verificado, no decorrer do encontro, que não resultaria pressionarem-me, que eu não era influenciável, apostaram noutras pessoas dentro e fora do MFA, o que, aliás, já vinham fazendo. O final do encontro, embora correcto, foi visivelmente inamistoso por parte do presidente Ford. É que ele queria, quase explicitamente, que eu lhe garantisse que, apenas chegado a Lisboa, afastaria os comunistas do Governo. É claro que eu lhe respondi que não, que não eram os comunistas que detinham o poder, que eles integravam um governo com a mesma legitimidade dos outros partidos.
Mas voltando aos seus contactos com Carlucci. Tenho informação de que, logo no primeiro encontro, ele o tentou convencer de que a CIA estava a mudar substancialmente os seus métodos de trabalho, e que agora apostava fundamentalmente em apoiar social e economicamente os países em desenvolvimento...
Não me lembro de ele ter falado concretamente da CIA, mas disse-me, de facto, que o governo dos EUA pretendia apoiar-nos em diversos domínios da nossa vida económica. Mais tarde andou pelo país, nomeadamente no Norte, com variados programas de apoio.
Mas não com o Quinto Governo...
É verdade, mas o que eu lhe disse foi que todos os apoios que os EUA nos quisessem dar deviam ser canalizados para o nosso Governo, que, depois, administraria esses apoios segundo os seus próprios critérios. Quer dizer, eles atribuíam as verbas, e nós é que depois as utilizaríamos como melhor nos parecesse. Eu percebi que ele queria andar aí pelo país a fazer a política do governo americano e a propaganda dos «melhores amigos de Portugal». Clarifiquei assim o âmbito das suas actividades no sector económico e social, nomeadamente o da habitação social. Portanto, nunca perdi de vista que estava a falar com um homem da CIA, e procurava limitar o seu campo de actuação de modo a ser, quanto possível, controlado pelo governo. Este devia ser sempre o intermediário para qualquer tipo de apoio, e não seria a administração americana a entrar directamente em contacto, fosse para o que fosse, com empresas, autarquias, etc...
Mas foi mais ou menos isso que aconteceu com o Sexto Governo.
Sim, foi. Ele passou a deslocar-se por sua conta por todo o país, no papel de benemérito desinteressado e carinhoso, que só queria ajudar e beneficiar o nosso povo.
Voltando um pouco atrás: apesar das dificuldades referidas em apresentar provas concretas, é quase um lugar-comum assinalar a presença de vários serviços secretos europeus (franceses, alemães, espanhóis), e particularmente da CIA, em todas as datas críticas do nosso processo revolucionário: 28 de Setembro, 11 de Março, 25 de Novembro...
Vejamos as coisas com mais profundidade. A Revolução de Abril foi, a vários níveis, como tenho afirmado repetidamente, uma revolução desprotegida. Até ao 11 de Março, só dispúnhamos dos serviços da Segunda Divisão do EMGFA e das segundas repartições dos Estados-Maiores dos três ramos. Ambos os serviços dependiam do CEMGFA. Trabalhavam a informação militar e suas implicações políticas, e utilizavam a metodologia e a técnica de tratamento da informação da NATO, em estreito relacionamento com esta aliança. Parte apreciável dos seus militares tinha sido formada, no plano das informações, nas escolas da NATO, dos EUA e doutros países aliados. Depois do 11 de Março, o MFA criou, na dependência do CR, o Serviço de Detecção e Controlo de Informações (SDCI), este já direccionado para a informação sobre actividades contra-revolucionárias. Era um serviço incipiente, inexperiente e limitado de meios, dirigido por militares do MFA, que foi imediatamente extinto pelos vencedores do 25 de Novembro. Mas, importa referir, nessa matéria nós éramos uns aprendizes que davam os primeiros passos. Nas condições concretas do país de que temos falado, e dados os fracos meios de contra-informação de que dispúnhamos para nos defendermos contra actividades conspirativas, necessitaríamos, absolutamente, em primeiro lugar, de unidade, coesão e firmeza político-ideológica do MFA; em segundo, de vigilância e consciência política da população; em terceiro, de uma política nacional favorável aos interesses das mais vastas camadas da população; e, finalmente, de uma política externa de independência nacional. A difícil conjugação de todas estas condições não foi possível. A unidade do MFA foi dramaticamente abalada, como vimos. No respeitante à vigilância popular (decisiva no 28 de Setembro e no 11 de Março) e à consciencialização política da população, a travagem do processo revolucionário por parte do PS, PPD, CDS e outros partidos menores (como o MRPP), as divergências insanáveis no MFA, o regresso da população branca das ex-colónias, etc, criaram inevitável e deliberadamente grandes divisões entre os trabalhadores e o resto da população, que beneficiaram, naturalmente, a contra-revolução.
Mas voltando ao papel da CIA ao serviço da contra-revolução...
Voltamos, então, aos indícios, informações e hipóteses, e, sobretudo, ao que tem aparecido ao longo destes anos em livros, entrevistas, artigos de imprensa, etc. E nesse aspecto o material é muito esclarecedor sobre apoios e contactos da embaixada americana, da CIA e de outros serviços secretos (como os da Espanha franquista), em ligação nomeadamente com o PS, o PPD e o CDS, quer no nosso país, quer nas antigas colónias, durante o processo de descolonização e mesmo antes. Estou a lembrar-me, por exemplo, de declarações recentes de Carlucci e de Mário Soares, elogiando-se mutuamente. Carlucci veio propositadamente a Lisboa, a convite de Balsemão, para entregar o Globo de Ouro da SIC (1996) a Soares, e este disse, entre outras coisas, que o antigo embaixador americano tinha tido um papel «verdadeiramente fabuloso» em Portugal. Mais recentemente, em Junho do ano passado, em cerimónia de homenagem a Carlucci, em Lisboa, Soares enalteceu o papel do homem da CIA na «instauração da democracia em Portugal»! Por sua vez, Hall Temido, antigo embaixador de Portugal nos EUA, escreveu nas suas memórias que Carlucci «foi um protector das forças democráticas, designadamente do PS e de Mário Soares». Recordo ainda que o New York Times, em Setembro de 1975, noticiava que a ajuda americana ao PS para combater o Quinto Governo seria canalizada por intermédio da CIA, por meio dos partidos socialistas e dos sindicatos sob sua influência da Europa ocidental. Segundo a imprensa da época, o Presidente Ford disse que a operação tinha custado apenas dez milhões de dólares. Mas não só. As sensacionais revelações de Rui Mateus sobre o Plano Callagan são deveras esclarecedoras. Trata-se de um plano de intervenção dos serviços secretos americanos (CIA) e ingleses (MI6) de apoio ao golpe contra-revolucionário de 25 de Novembro, em preparação, e que previa o lançamento de operações clandestinas, apoio logístico aos militares contra-revolucionários, utilização de meios aéreos e marítimos para abastecimento da «resistência portuguesa» na zona norte, etc. Neste plano, segundo penso, se integrou a deslocação de Mário Soares, no dia 25 de Novembro, ao Norte, onde Pires Veloso e Lemos Ferreira, da Força Aérea, lhe deram apoio. O plano não veio a ser concretizado porque a esquerda militar, o Partido Comunista e as forças progressistas não se deixaram envolver na provocação do 25 de Novembro e porque Costa Gomes chamou a si a dependência directa de todas as unidades militares do país. Um dos objectivos do plano era provocar o aparecimento da «comuna da Lisboa», a que se seguiria a sua repressão por forças militares a partir da zona norte. A própria expressão «comuna de Lisboa» não pode deixar de suscitar a imediata associação com a matança sanguinária da Comuna de Paris, em 1871. Também Rui Mateus cita Carlucci como um dos heróis do 25 de Novembro. Como vê, as referências não faltam e não precisamos de grande esforço para chegar a conclusões. Aliás, são os próprios autores e actores dessas manobras contra-revolucionárias a confessar, com todo o despudor e até com orgulho, a sua actividade conspirativa, como recentemente mostrou Álvaro Cunhal, com a maior clareza, no seu livro "Verdade e Mentira na Revolução de Abril".
Inclusão | 02/12/2018 |