Entrevista ao «Jornal do Brasil»

Vasco Gonçalves

Novembro de 1974


Fonte: Vasco Gonçalves - Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas. Organização e Edição Augusto Paulo da Gama.
Transcrição: João Filipe Freitas
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Fernando A. S. Araújo.

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PerguntaGostaríamos que definisse o modelo de sociedadeem organização sócio-política e económica — pretendido para Portugal pelo M. F. A.. Gostaríamos ainda que definisse quais as forças que podem ser mobilizadas para viabilizar esse modelo e quais outras lhe são antagónicas?

Resposta —Só um jornalista distraído pode ainda fazer perguntas destas.

Os elementos do M. P. A. têm vindo a afirmar desde o 25 de Abril que não têm modelos, nem se regem por cartilhas.

Já demonstraram que derrubaram o fascismo não para tomar o poder mas para o restituir ao seu detentor legítimo, o Povo Português. Se têm neste momento alguns representantes no Governo Provisório foi apenas porque se revelou necessária a sua entrada para o Governo de modo a ser assegurado o cumprimento sem desvios ou alterações do seu programa. No ponto 6 do Programa do M. F. A., tornado preceito constitucional pela Lei 3/74 de 14 de Maio, vem estatuído: «6 — O Governo Provisório lançará os fundamentos de:

  1. Uma nova política económica, posta ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia anti-monopolista;
  2. Uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os Portugueses».

Como pode apreciar, o M. F. A. deseja apenas «lançar os fundamentos».

Ao Povo Português cumprirá, através de eleições livres, fazer as escolhas.

Para realização deste programa de democratização contamos com todas as forças que aceitam a ordem democrática, conscientes que estamos de que a democracia só pode ser construída com democratas.

PerguntaParece-nos que a empresa privada submeteu a máquina económica nacional a um funcionamento moroso. Admitida como correcta a informação, colocamos duas questões: A) Tratar-se-ia de simples efeito da instabilidade política ou de gesto deliberado dos empresários para agravar as dificuldades? B) Quais medidas concretas poderia o Governo adoptar para persuadir os empresários a agir?

Resposta — Não tenho elementos que me permitam responder com rigor a esta questão. Afirmei há tempos, e mantenho, que houve uma retracção injustificada de certos meios financeiros.

Devo afirmar porém que da grande maioria dos empresários tenho recebido provas de manifesto desejo de colaborarem no processo de democratização iniciado a 25 de Abril. Para os mais renitentes poderão ser tomadas medidas que poderão ir desde a impugnação criminal à nacionalização. Estou no entanto convencido que não será necessário tomar medidas extremas pois confio no poder persuasivo das vantagens da sociedade democrática.

Pergunta — O Governo considera que o general António de Spínola poderá vir a ter — e como, e qualum papel na revolução portuguesa?

Resposta — A única coisa que se pode afirmar é que o sr. general Spínola desempenhou um papel na revolução portuguesa. Quanto à sua pergunta, penso que ela é uma boa pergunta para ser feita ao sr. general Spínola.

PerguntaAté onde poderá ir o Governo — com quais metas e medidas concretas novasno combate ao fascismo?

Resposta — O Governo pode ir e terá de ir até onde prevê o Programa do MFA. Em resumo pode-se dizer que o Governo Provisório terá que descolonizar, institucionalizar a democracia dotando Portugal de estruturas democráticas que nos salvaguardem de novas aventuras fascistas e lançar os fundamentos de uma política económico-social de desenvolvimento.

Ao cumprir rigorosamente o Programa do MFA, o Governo estará a cumprir as metas e a tomar as medidas necessárias no combate ao fascismo.

Para além do que atrás fica dito a sua pergunta sugere-me mais um comentário. O MFA fez o 25 de Abril para derrubar o fascismo; em 25 de Abril o MFA era constituído, por razões de segurança, por um núcleo restrito de oficiais; agora o núcleo inicial está substancialmente alargado daí também que seja maior a força dos oficiais antifascistas nas Forças Armadas Portuguesas. Sabe-se que o Povo Português não quer o fascismo. O MFA respeitará e defenderá a vontade do Povo Português contra todas as tentativas reaccionárias, venham elas de onde vierem e assumam as formas que assumirem.

PerguntaComo conciliar tantos antagonismos (diferentes orientações militares, diferentes orientações partidárias, diferentes orientações populares e diferentes orientações empresariais) para estabelecer formas de harmonia adequadas à eficiência do processo político português?

Resposta — Só o desconhecimento do que é a democracia justifica uma pergunta deste teor; na verdade em democracia as pessoas ou os vários grupos de pessoas são livres de ter as suas próprias opiniões; de estabelecerem as suas opções. Além disso o desenvolvimento social e histórico é um processo profundamente antagónico mas isso não quer dizer que não haja harmonia de pontos de vista ou de orientações; mais, em minha opinião só há harmonia de pontos de vista ou orientações quando na base desta harmonia houver inicialmente discussão das diferentes hipóteses de harmonização. Portugal é neste momento uma prova real do que afirmo; o MFA ao derrubar o fascismo em 25 de Abril desencadeou um processo revolucionário ainda em desenvolvimento, que apesar de contar no seu interior os antagonismos que refere e que aliás são próprios de todas as sociedades em estádio de evolução comparáveis ao nosso, tem sido profundamente harmónico e de razoável eficiência. Um observador atento e objectivo se apreciar estes seis meses de democracia em Portugal chegará facilmente a esta conclusão. Mas um observador atento e objectivo tem necessariamente que se lembrar, ao fazer este balanço, que no dia 24 de Abril havia em Portugal a ditadura mais velha da Europa, uma política feroz, uma guerra colonial com 13 anos de idade, um país com a taxa de inflação mais elevada da Europa, um país desprezado e isolado do resto do mundo. E deve ainda lembrar as consequências sociais, económicas, psicológicas e morais deste panorama. E lembrar mais uma coisa — «que Roma e Pavia não se fizeram num dia».

PerguntaGostaríamos que definisse a estrutura ideológica do MFA, de um lado, e das Forças Armadas em geral, de outro. Gomo vê a relação entre essas orientações ideológicas e as do povo português, expressadas pelos órgãos de representação partidária (os partidos) e de representação classista (os sindicatos e associações)?

Resposta — O avanço do processo de democratização de Portugal faz concomitantemente avançar o processo de democratização das suas Forças Armadas, daí que tenha cada vez menos sentido a dicotomia Movimento das Forças Armadas — Forças Armadas.

O Movimento das Forças Armadas pode-se dizer que desempenhou o papel de detonador ao derrubar o fascismo em 25 de Abril. Cumpriu nesse dia o seu papel histórico primordial. Agora mantém-se como garante e fiscalizador do processo de democratização do País que tem de ser cumprido como vem estatuído no Programa que apresentou à Nação. Trata-se de um movimento de unidade antifascista. Os oficiais que integram o movimento estabeleceram a sua unidade de acção sobre os seguintes pontos fundamentais: necessidade do derrubamento do fascismo, e do fim das guerras de África, da restauração dos direitos fundamentais da pessoa humana, do desenvolvimento do País e da melhoria das condições de vida das classes mais desfavorecidas. São pois oficiais no seu conjunto democratas, antifascistas e profundamente amantes do seu povo e da sua Pátria. Dado que somos oficiais identificados com o nosso povo é bem natural que soframos a sua influência, daí que o nosso Programa e as nossas acções tenham tido o aplauso e o apoio da generalidade do povo português.

É aliás na força da aliança entre Forças Armadas e anseios do povo português que reside a maior originalidade e maior garantia do êxito do processo de democratização português. As Forças Armadas Portuguesas, são, não há dúvida, a emanação organizada do povo português em armas.


Abriu o arquivo 05/05/2014