Discutindo sociedade civil e democracia

Carlos Nelson Coutinho

Setembro de 2007


Primeira Edição: Especial para Gramsci e o Brasil.

Fonte: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=781

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Maria Lúcia Durighetto. Sociedade civil e democracia. Um debate necessário. São Paulo: Cortez, 2007. 240p.

Democracia e sociedade civil estão entre os conceitos mais polissêmicos do pensamento social contemporâneo.  É também com diferentes sentidos e acepções que eles são utilizados nos órgãos de imprensa. Torna-se assim necessário, quando hoje se fala de democracia ou de sociedade civil, saber o que se quer precisamente conotar com estas palavras. Este esclarecimento preliminar é assim um momento ineliminável da batalha das idéias que tem lugar em nosso mundo contemporâneo. Como veremos, contribuir para este esclarecimento é um dos objetivos do livro que o leitor tem agora em mãos.

Tomemos o caso da palavra “democracia”. Não existe hoje nenhuma corrente de opinião significativa que não defenda a democracia e não se afirme democrática. Mas nem sempre foi assim: até pelo menos o início do século XX, o pensamento liberal combatia abertamente a democracia, ou por considerá-la algo ineliminavelmente ligado ao passado (Montesquieu, Constant), ou por apontá-la como responsável pela emergência de uma “tirania da maioria” contrária à liberdade individual (Tocqueville, Stuart Mill). A partir de certo momento, que talvez possamos situar no período posterior à Revolução de Outubro de 1917, o pensamento liberal resolveu adotar positivamente o termo democracia, utilizando-o não só contra o nazifascismo, sobretudo durante a Segunda Guerra, mas talvez principalmente contra o socialismo, apresentado como algo despótico e totalitário. Assim, de termo essencialmente subversivo, democracia passou a fazer parte também de um discurso conservador.

Essa avaliação positiva da democracia pelo liberalismo, contudo, se fez a partir de um drástico esvaziamento do conceito, que deixou de ser sinônimo da afirmação de uma igualdade substantiva e da efetiva soberania popular, como era o caso em Rousseau, para se tornar apenas a afirmação de determinadas “regras do jogo” de natureza formal. Emblemática desta nova posição é a obra de J. A. Schumpeter, que — depois de afirmar, tal como Gaetano Mosca e Weber, que política é sempre ação de minorias, de elites — criou escola ao defender, nos anos 1930, a idéia de que democracia nada mais é do que um regime político que garante a escolha entre elites através de eleições periódicas.

Algo análogo ocorreu com a expressão “sociedade civil”. Não se trata aqui de examinar o uso deste termo nos contratualistas, em Hegel ou em Marx, mas apenas de recordar o fato de que ele foi introduzido no debate contemporâneo graças sobretudo à formulação que lhe foi dada pelo marxista Antonio Gramsci. Neste notável pensador, sociedade civil é a esfera da vida social na qual os diferentes grupos e classes sociais se organizam para disputar hegemonia, ou seja, para interferir diretamente na correlação de forças que determina o conteúdo do poder numa formação social concreta. Em poucas palavras, sociedade civil — enquanto momento constitutivo do Estado contemporâneo — é para Gramsci e os gramscianos um terreno privilegiado da luta de classes.

Progressivamente, contudo, à medida que ganhavam força as idéias neoliberais, foi-se adotando um conceito cada vez mais asséptico de sociedade civil, que aparece agora como um suposto “terceiro setor” situado para além do Estado e do mercado. Em vez de campo de luta e de conflito, a sociedade civil tornou-se o reino do bem, do voluntariado e da filantropia, contraposto ao Estado considerado como o reino do mal, da ineficiência e da coerção. É fácil ver como essa nova formulação serve à proposta neoliberal e privatista de desmonte do Estado, não sendo casual o seu emprego e valorização nas recentes propostas de combate à desigualdade formuladas pelo Banco Mundial.

O principal mérito deste belo livro de Maria Lúcia Durigheto consiste precisamente em propor um resgate das diferentes acepções que democracia e sociedade civil assumem de acordo com o contexto ideológico em que tais termos são utilizados. A este resgate é dedicada sobretudo a primeira parte do livro, na qual Maria Lúcia nos apresenta a evolução e o conteúdo que os dois termos adquirem nas tradições liberal e marxista, deixando bastante claro para o leitor que a similaridade dos termos não deve ocultar a profunda diversidade conteudística e conceitual dos mesmos nas duas diferentes e antagônicas tradições. Surpreende o domínio que a jovem Maria Lúcia revela possuir dos principais conceitos dos autores que expõe e analisa.

No caso da tradição marxista, a autora tem a lucidez de retratar a gênese da estruturação destes conceitos em pensadores como Rousseau e Hegel, mostrando como a assimilação — crítica — dos principais ensinamentos dos mesmos é parte ineliminável da estruturação da teoria social de Marx e de Gramsci, aos quais são dedicados dois dos mais instigantes subcapítulos deste livro. No que se refere à tradição liberal, Maria Lúcia se dedica especificamente ao liberalismo do século XX, momento no qual, como já observamos, o termo democracia passa a assumir nesta tradição um caráter positivo. São aqui analisados os principais autores das correntes elitistas e pluralistas, sobretudo o norte-americano Robert Dahl, mas também a obra de Jürgen Habermas, o qual — embora não seja estritamente um liberal — contribuiu com suas reflexões para a criação de um conceito de democracia e de sociedade civil alheios à tradição marxista e gramsciana.

A segunda parte do livro de Maria Lúcia é dedicado à exposição do modo pelo qual os conceitos de democracia e sociedade civil aparecem no Brasil, constituindo um dos principais temas da batalha das idéias que se inicia com a transição e chega até os dias de hoje, quando parece se afirmar sem contrastes uma hegemonia neoliberal. Ela nos mostra aqui, através da análise de alguns protagonistas do debate teórico ocorrido neste período, como os autores tratados teoricamente na primeira parte, sobretudo Gramsci e Habermas, se tornaram “brasileiros”, ou seja, passaram a fazer parte integrante das tentativas não só de compreender e iluminar traços determinantes da sociedade brasileira contemporânea, mas também de formular programas concretos de intervenção e transformação da realidade.

Sem abandonar em nenhum momento o rigor da análise, Maria Lúcia Durigheto toma explicitamente partido. Ainda que nos apresente com objetividade os autores que examina, ela não nos esconde que suas reflexões se situam no âmbito da tradição marxista, em particular daquela ligada ao nome de Antonio Gramsci. Portanto, este seu primeiro livro — que já nos revela uma pensadora madura — não nos ajuda apenas a compreender a realidade, mas é também um estímulo para transformá-la.


Inclusão 22/06/2019