Uma entrevista para o Jornal do Brasil

Carlos Nelson Coutinho

14 de Dezembro de 2003


Primeira Edição: Jornal do Brasil, 14 dez. 2003.

Fonte: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=67

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A expulsão da senadora Heloísa Helena é a gota d´água a transbordar o copo dos que criticam os rumos do atual PT? 

Carlos Nelson Coutinho: Trata-se precisamente disto, da gota d’água. Na verdade, não estamos nos afastando do PT, Milton Temer, Leandro Konder e eu, apenas por causa da expulsão da Heloísa e de outros companheiros. Começou há algum tempo a nossa sofrida reflexão sobre as transformações experimentadas pelo PT, que vêm ocorrendo já bem antes da sua chegada ao governo federal. Essa reflexão nos levou à constatação de que há graves processos involutivos no Partido. Foi muito doloroso para nós tomar esta decisão, depois de 14 anos de militância e de dedicação ao Partido. 

E quais são estes processos involutivos? 

No plano programático, por exemplo, a corrente majoritária do PT abandonou qualquer referência concreta ao socialismo. Quando ela ainda fala em socialismo, o que de resto ocorre cada vez menos, é para dizer que o socialismo não é um novo modo de produção, uma forma inédita de sociabilidade, mas um ideal ético que nos estimula a tentar “melhorar” o capitalismo, a “humanizar” o mercado, considerados agora como eternos. Não é casual que Lula tenha declarado recentemente que nunca foi de esquerda. No plano organizativo, o PT tem sofrido um forte processo de burocratização, que se reflete numa centralização dos processos decisórios nas instâncias dirigentes, formadas cada vez mais por funcionários. A democracia interna praticamente desapareceu. A isso se soma um recrutamento sem critérios, que não só permite mas estimula o ingresso de pessoas que nada têm a ver com os princípios que até recentemente orientaram a ação do PT. É emblemática a decisão de recrutar Narriman Zito e Flamarion Portela, no mesmo momento em que se propõe a expulsão de Heloísa Helena, pelo simples fato de que ela continua a defender o que o PT sempre defendeu. 

Se, por um milagre, o Diretório Nacional voltar atrás e desistir da expulsão, fica tudo bem, passa-se a borracha ou se mantém a intenção de montar um movimento ou mesmo de formar um partido para recuperar as causas abandonadas pelo PT ao chegar ao Planalto? 

Nossa decisão de abandonar o PT foi precipitada pela brutalidade com que se pretende resolver divergências internas, mas não resulta apenas disso. É preciso deixar claro, contudo, que não temos a menor intenção de propor a formação imediata de um novo partido. Um partido não surge da decisão de três, de vinte ou de cem intelectuais. Resulta de exigências que vêm da própria sociedade, da dinâmica das lutas sociais. As origens do próprio PT são iluminadoras neste sentido. Compreendemos, por isso, as razões dos muitos companheiros, intelectuais ou não, que ainda acreditam na luta interna, que ainda têm esperanças de reverter o quadro atual e devolver o PT ao seu velho leito socialista e democrático. Embora extremamente céticos, até torcemos por eles. 

Trata-se, então, de abandonar a militância e voltar à academia? 

Não, de modo algum. O que pretendemos fazer agora é contribuir para a formação de um fórum de debates, no qual se encontrem não só os que estamos dispostos a sair do PT, mas também aqueles que, embora pensem como nós, ainda pretendem prosseguir na luta interna. Eles não são poucos. Este fórum deveria envolver ainda intelectuais e personalidades de outras origens, desde os que nunca militaram no PT até os que fazem parte de outros partidos de esquerda ou simplesmente não têm partido, mas que se identificam na luta comum para refundar no Brasil uma esquerda socialista e democrática. 

Isso significa que o senhor participa da opinião dos que acham que os partidos devem ser substituídos pelos movimentos sociais?

Acreditamos que as transformações radicais pelas quais lutamos não podem ser efetivadas apenas pelos movimentos sociais e pelas ONGs. Por isso, no nosso horizonte, está a intenção de apoiar a criação de um novo partido. Ainda não se inventou nada que possa substituir o partido político na função de universalizar as lutas setoriais pela transformação radical da sociedade. Mas é preciso evitar aqui qualquer precipitação. Não nos interessa participar da criação de mais um partidinho que se limite a dar testemunho da pureza de nossas convicções. O fórum que estamos propondo poderá ser um estímulo à criação de um novo partido, socialista, democrático e de massas. Mas, para que isso ocorra, é preciso que as condições amadureçam. Por enquanto, este fórum já cumpriria sua função se mantivesse viva a esperança de que um outro mundo é possível, de que o socialismo não é uma utopia anacrônica. Não estamos saindo do PT para cultivar nosso jardim, mas para continuar a luta por uma sociedade socialista e democrática, por aquilo que o PT batalhou em seus primeiros vinte anos de existência. 

Acredita que ainda há volta para o PT e para o governo Lula? 

É preciso fazer uma distinção entre o PT e o governo Lula, precisamente a distinção que não tem sido feita pela atual direção do Partido. Já em sua campanha eleitoral, Lula e o PT propuseram uma política de alianças, que juntasse o mundo do trabalho e o chamado “capital produtivo”, ou, mais precisamente, a burguesia industrial. O objetivo imediato desta aliança seria romper com a política neoliberal do período FHC-Malan e implementar uma nova proposta de desenvolvimento, com criação de empregos e distribuição de renda. Nenhum de nós exigia de Lula que implantasse por decreto o socialismo no Brasil, mas que encaminhasse uma efetiva e exeqüível política de reformas, capaz de abrir caminho para transformações mais substantivas. Penso em reformas efetivas, como a reforma agrária, e não nas reformas implementadas neste primeiro ano de governo, que - como a chamada reforma da Previdência - não passam na verdade de contra-reformas, já que são voltadas para descontruir conquistas das classes subalternas e favorecer o capital financeiro. Não casualmente estas “reformas” eram propostas pelo governo FHC e pelo FMI, e não foram plenamente aprovadas antes graças precisamente à oposição do PT. Agora que o PT mudou de lado, vai ser mais fácil implementar em sua integralidade a agenda neoliberal. Temos de nos preparar para as anunciadas reformas trabalhista e universitária, entre outras. Em ambos os casos, como diz o Ministro Dirceu, “o pau vai comer” - e, certamente, não no lombo dos banqueiros. 

Isso quer dizer que o senhor é contra a política de alianças? 

Não, sempre considerei um erro do PT, em seu período inicial, ter adotado uma política de isolamento, uma política sectária. Mas é preciso definir claramente o que é uma política de alianças. Quando se propõe uma tal política, é preciso definir ao mesmo tempo os aliados e os adversários. O adversário desta aliança entre os trabalhadores e a burguesia industrial, expressa na chapa Lula-José Alencar, deveria ser o capital financeiro, nacional e internacional. Ou seja: fazer alianças não significa propor uma “concertação”, uma geléia geral em que os adversários não sejam identificados, em que todos sejam tratados como aliados. Ora, como é impossível conciliar todos os interesses conflitantes, esta tal “concertação” tem significado na prática uma capitulação do governo Lula aos interesses do capital financeiro, ou seja, à fração atualmente predominante no bloco de poder. Pelo menos até agora, estamos diante - como diria o Chico de Oliveira - não de uma nova era, a da vitória da esperança contra o medo, mas do terceiro governo da “era FHC”. Acho que somente uma forte pressão social, vinda de baixo, pode modificar a direção adotada pelo governo Lula neste seu pífio primeiro ano de atuação. Sou muito cético quanto a isso, mas não descarto a possibilidade de que ocorram algumas mudanças tópicas. Devemos nos empenhar para que elas ocorram. 

E o PT? 

Acho que aqui o discurso é outro. Como dizem alguns dos seus poucos ideólogos, o governo Lula não seria um governo de esquerda, um governo do PT, mas um “governo de centro-esquerda”. A meu ver, trata-se até agora de um governo de centro-direita. Mas, de qualquer modo, isso significa precisamente que o PT - se quer continuar a ser um partido de esquerda - não pode se identificar inteiramente com o governo. Deveria conservar a autonomia necessária para que a correlação de forças no interior deste governo de alianças pudesse tender para o lado dos trabalhadores, para o lado da esquerda. O que temos visto, ao contrário, é o completo e subalterno alinhamento do PT com o governo. José Genoíno, por exemplo, não atua como o presidente de um partido plural e de massas. É o bedel do governo, encarregado de puxar as orelhas dos petistas que ousam levantar a menor objeção à política capitulacionista implementada pelos donos da escola, digo, pelos donos do poder. Quando fazia parte da extrema-esquerda do PT, que combatia a idéia da democracia como valor universal e entendia a revolução socialista no Brasil como algo semelhante à tomada do Palácio de Inverno, Genoíno certamente defendia os direitos da minoria no interior do Partido e teve estes direitos respeitados. Ninguém nunca pensou em expulsá-lo, nem a ele nem ao partidinho ao qual pertencia. Agora, porém, que chegou ao Palácio do Planalto, tornou-se o algoz de seus companheiros dissidentes e minoritários. Essa drástica conversão de Genoíno é o emblema da trajetória do PT. De Marx e Engels a Toni Blair, a socialdemocracia européia passou quase 150 anos para abandonar o socialismo e tornar-se uma força auxiliar do grande capital. Teve o mérito, pelo menos, de promover esta involução através de congressos, alguns deles históricos, em que os militantes tiveram ocasião de opinar. O PT está realizando esta trajetória em poucos anos, através de decisões tomadas pelo alto. A atual direção não teve a coragem de convocar um congresso do Partido, antes que ele fosse infestado pelas Narriman Zito e pelos Flamarion Portela. Agora, infelizmente, é tarde.


Inclusão 22/06/2019