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Primeira Edição: Exposição realizada pelo historiador Augusto Buonicore no 2º Encontro nacional sobre igualdade racial da CTB, realizado em Minas Gerais, entre os dias 28 e 29 de agosto de 2015
Fonte: http://www.grabois.org.br/portal/artigos/153129/2016-10-27/marxismo-luta-de-classes-e-a-questao-racial
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O “racismo moderno” foi aquele que se desenvolveu ao lado da expansão mundial do sistema capitalista. Estava ligado à retomada do projeto colonial sob novas bases. O capitalismo, precisando de novas fontes de matérias-primas e de mercados, voltou-se para os continentes africano e asiático. Foi nesse momento que começaram a ganhar força as ideias racistas. Mas, a ideologia racista da segunda metade do século 19 não poderia ter por base os mesmos elementos da ideologia preconceituosa da Idade Média, em geral de caráter religioso, ou do início do capitalismo comercial nos séculos 16 e 17.
O novo racismo deveria se revestir de uma roupagem nova, científica, adequada à época de expansão da indústria e da técnica. No final do século 19 o racismo moderno (ou científico) se transformou numa ideologia justificadora da dominação da Europa e dos Estados Unidos sobre a África, Ásia e América Latina e também da dominação de uma elite proprietária desses países em relação ao conjunto da população trabalhadora nativa, em geral não branca.
Era a época do darwinismo social que advogava serem as leis da seleção natural descobertas por Darwin aplicáveis ao entendimento das sociedades humanas, como a tese da “sobrevivência dos mais aptos”. Em 1883, Francis Galton fundou a eugenia, propondo o “melhoramento” das raças através do controle da reprodução dos seres geneticamente inferiores. Apavorava-o a ideia de que as elites – depositárias dos melhores caracteres humanos – procriavam menos que as classes pobres (perigosas). Vários países adotaram políticas de esterilização compulsória.
Foi justamente nesse período – segunda metade do século XIX – que Marx e Engels elaboraram a teoria mais avançada e radical que o mundo havia conhecido. Nada mais democrático e humanista estava sendo produzido pela intelectualidade europeia ou estadunidense. Mas, apesar disso, eles não podiam extrapolar os limites impostos por sua época histórica. Eles não podiam propor-se aresponder questões que ainda não haviam sido colocadas claramente. Isso, sem dúvida, explica as possíveis lacunas na maneira como ainda encaravam a questão dos povos coloniais e o racismo.
Assim, não podemos negar que persistia nas suas primeiras obras certa visão eurocêntrica de mundo. Isto pode ser notado, por exemplo, no próprio Manifesto do Partido Comunista, publicado no início de 1848. Ali existia ainda certo otimismo quanto às possibilidades civilizacionais do capitalismo europeu e estadunidense. A sua expansão em escala planetária, destruindo velhas estruturas, era visto como algo fundamentalmente positivo. Apesar de doloroso para suas vítimas coloniais, e Marx não escondia isso, esse processo abriria a senda do progresso futuro para todos os povos.
Contudo, mesmo nesta fase inicial de sua produção teórica não havia em Marx e Engels qualquer conotação racial essencialista na distinção entre povos.Os povos se distinguiam apenas pelo nível de desenvolvimento de suas forças produtivas. Não havia raças e povos biologicamente – ou essencialmente – inferiores e superiores. A raça humana era uma e toda ela chegaria ao socialismo e ao comunismo, ainda que por caminhos e ritmos diferentes.
Em escritos posteriores, eles se mostrarão mais críticos e menos otimistas em relação à expansão do capitalismo. Numa carta Marx se colocou de forma decisiva a favor dos irlandeses oprimidos, contra seus opressores ingleses. Escreveu ele: “A tarefa especial do Conselho Central em Londres é despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é para ela uma abstrata questão de justiça e de humanitarismo, mas condição primeira de sua própria emancipação social”. Em 1869,ele retomou a mesma ideia ao afirmar: “um povo que subjuga outro povo forja suas próprias cadeias”, a “escravização da Irlanda” impede a “emancipação da classe operária inglesa”. E condena duramente a postura de parte da classe operária inglesa que é solidária com a sua própria burguesia.
Essas fórmulas citadas acima não têm validade apenas na Europa, elas têm um caráter histórico-universal. Em 1857, num artigo sobre a Argélia, Engels denunciou “os horrores e brutalidade” e a “guerra bárbara” que os franceses levavam contra os povos nativos. Para estes povos a independência era “um bem precioso” e o “ódio à dominação estrangeira, o primeiro imperativo de sua vida”. Em 1861, Marx se referiu à intervenção europeia no México como “o mais monstruoso empreendimento dos anais da História Universal”.
Marx e Engels tiveram um grande papel no processo de conscientização dos operários europeus durante a guerra civil estadunidense (1861-1865), convencendo-os a ficarem do lado dos abolicionistas. Defenderam praticamente sozinhos a necessidade de formação de regimentos negros e a transformação a guerra civil numa verdadeira revolução antiescravista. A emancipação dos trabalhadores em geral – brancos e negros – passaria pela abolição da escravatura: “Nos Estados Unidos da América todo o movimento operário autônomo ficou paralisado enquanto a escravatura desfigurou uma parte da república. O trabalho de pele branca não se pode emancipar onde o de pele negra é estigmatizado”, assim escreveu em O Capital.
Em 1870 Marx iria estabelecer os parâmetros da política dos socialistas em relação à questão colonial e racial. Afirmou ele: “Cada centro industrial e comercial na Inglaterra possui uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis, proletários ingleses e proletários irlandeses. O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês como um competidor que rebaixa seu padrão de vida. Em relação ao trabalhador irlandês ele se sente um membro da nação dominante e, assim torna-se num instrumento dos aristocratas e capitalistas de seu país contra a Irlanda, fortalecendo a sua dominação sobre ele próprio. Ele aprecia os preconceitos sociais, religiosos e nacionais contra os trabalhadores irlandeses. A sua atitude é muito parecida com a dos brancos pobres em relação aos negros nos antigos estados escravistas dos Estados Unidos. O irlandês lhe paga com juros na mesma moeda. Ele vê no trabalhador inglês ao mesmo tempo o cúmplice e o instrumento estúpido do domínio inglês na Irlanda. Este antagonismo é mantido vivo artificialmente, e é intensificado pela imprensa, o púlpito, os jornais cômicos, em resumo por todos os meios à disposição das classes dominantes. Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de toda sua organização. É o segredo pelo qual a classe capitalista mantém seu poder. E essa classe é plenamente consciente disso."
Aqui, Marx destaca três coisas fundamentais: primeiro, que o capitalismo promove a concorrência econômica entre os trabalhadores; segundo, que a classe dominante utiliza a ideologia racista para jogar os trabalhadores uns contra os outros; e, finalmente, que, quando um grupo de trabalhadores sofre algum tipo de opressão, ela afeta negativamente toda a classe trabalhadora. Os brancos, apenas aparentemente, se beneficiam da inferioridade social do negro. É uma compensação subjetiva, ilusória, de fazer parte da raça dominante.
É essa concepção – crítica e socialista –, elaborada na segunda metade do século 19, que permitiria a construção de uma política anticolonialista, anti-imperialista e antirracista nos séculos seguintes. O principal herdeiro dessa tradição foi o movimento comunista, capitaneado principalmente pela União Soviética e a China socialista.
No projeto sobre a questão colonialpara o 2º Congresso da Internacional Comunista (1920) o líder soviético Lênin escreveu: “Em toda a sua propaganda e agitação, tanto dentro do parlamento como fora dele, os partidos comunistas devem consistentemente expor que a violação constante da igualdade das nações e dos direitos garantidos das minorias nacionais ocorre em todos os países capitalistas, apesar da sua fachada ‘democrática’”. Por isso, “todos os partidos comunistas devem prestar ajuda direta aos movimentos revolucionários das nações dependentes e desfavorecidas – por exemplo, a Irlanda, os negros americanos etc.”
O Congresso da IC de 1922 aprovou uma tese que dizia: “A guerra mundial, a Revolução russa, os grandes movimentos protagonizados pelos nacionalistas da Ásia e muçulmanos contra o imperialismo despertaram a consciência de milhões de negros oprimidos pelos capitalistas, reduzidos a uma situação de inferioridade há séculos, não somente na África, mas quem sabe, ainda mais nos EUA”. Continua ele: “A Internacional Comunista lutará para assegurar aos negros a igualdade de raça, a igualdade política e social”. O movimento comunista e a URSS – apesar das críticas que pudessem existir contra eles – se tornaram referências dos movimentos anticoloniais e antirracistas.
Mesmo estando afastado e em conflito com os comunistas, George Padmore se posicionou em defesa da URSS quando esta foi invadida por tropas da Alemanha nazista em 1941. Disse ele: “A defesa da União Soviética é a obrigação de todos os trabalhadores, povos colonizados e intelectuais progressistas. Essa não é uma questão sentimental. Esta é uma das coisas que vitalmente ameaça o futuro da classe trabalhadora internacional e a humanidade progressista (...). A outra razão pela qual nós devemos defender a União Soviética é porque ela é a única Grande Potência que solucionou o problema das nacionalidades. Na União Soviética a segregação racial, não tem mais lugar”. Continuou ele: “O (antigo) Império Russo foi transformado numa união de povos livres, iguais em status. É isto o que Hitler quer destruir e substituir por sua ‘Nova Ordem’, onde os alemães serão os Herrenvolk (povos de senhores) e todos os outros povos serão escravos que trabalham em prol da raça ‘superior’ (ariana)”.
A existência do movimento comunista também ajudou no processo de abolição das leis segregacionistas nos próprios Estados Unidos. Em 1954, o ministro da Justiça enviou aos juízes da Suprema Corte uma carta pedindo-lhes para que votassem pelo fim da segregação na qual dizia: “A discriminação racial fortalece a propaganda comunista e gera dúvidas mesmo entre as nações amigas sobre a intensidade de nossa devoção à democracia”. Por isso, o marxismo e o socialismo influenciaram fortemente o movimento negro estadunidense – como no caso dos Panteras Negras e Malcolm X. Uma das mais importantes ativistas negras, Ângela Davis, foi militante do Partido Comunista e candidata a vice-presidente dos Estados Unidos por esse partido.
Marxistas e socialistas também eram algumas das principais lideranças dos movimentos revolucionários de libertação da Ásia, África e América Latina. Basta lembrar os nomes de Mao Zedong, Ho Chi-Minh, Fidel Castro, Lumumba, Samora Machel, Agostinho Neto e Amilcar Cabral.
Muitas das críticas elaboradas por segmentos do movimento negro ao comunismo eram justas, especialmente quanto a pouca atenção dada ao problema racial em alguns momentos da sua história e, como consequência, as soluções inadequadas oferecidas a ele. Mas, sem dúvida, foi graças ao papel decisivo desempenhado pelos comunistas, especialmente na derrota do nazi-fascismo, que se conseguiu criar uma nova correlação de forças que enfraqueceu – e, por fim, aniquilou – o colonialismo e criou as melhores condições para luta antirracista em todo mundo.