MIA > Biblioteca > George Breitman > Novidades
O movimento negro continua a crescer com uma força e alcance cada vez maiores, mas, assim como a maioria dos movimentos de massa, o faz de maneira empírica – descobrindo o seu caminho através da experiência, da tentativa e erro. E ele ainda está elaborando sobre suas posições, políticas e orientações, pouco a pouco conforme as pressões da realidade imediata.
Sendo o capitalismo o sistema contra o qual o movimento se rebela, suas políticas estão assumindo um caráter cada vez mais anticapitalista, na maioria dos casos, de maneira implícita, mas eventualmente de maneira explícita também. Entretanto, os elementos mais avançados do movimento (racialistas e nacionalistas) ainda não elaboraram nem adotaram uma ideologia clara ou um amplo programa de revolução social baseado em uma análise detalhada do sistema capitalista monopolista norte-americano, e os caminhos e meios para a sua destruição.
A necessidade é sentida pelo movimento, para possibilitar uma ampliação de suas perspectivas e a formulação de uma teoria fundamental para sua ação. Alguns intelectuais negros estão tentando superar essa necessidade. Isso começa, inevitavelmente, com a análise e crítica das teorias existentes na atualidade. Tendo rejeitado o liberalismo, isto é, o liberalismo capitalista, defendido de maneira unificada por Lyndon Johnson, Walter Reuther, Roy Wilkins, James Farmer e Martin Luther King, os intelectuais do movimento negro são confrontados com a tarefa de definir sua atitude frente ao marxismo, a teoria e prática do socialismo revolucionário científico.
Os marxistas recebem alegremente a busca e crítica dos ativistas negros. Apenas pedimos que o marxismo seja discutido como ele realmente é, e não como uma das muitas distorções pelas quais foi substituído, pela malícia ou ignorância, no lugar onde a produção de interpretações erradas do marxismo virou uma indústria nacional.
Essa condição elementar para uma discussão frutífera não é atingida no artigo de Harold Cruse, “Marxism and the Negro” (Marxismo e o Negro), publicado nas edições de maio e junho da Liberator. Inicialmente uma polêmica contra a Socialist Workers Party(1), esse artigo é projetado para sustentar a tese de Cruse de que o marxismo é irrealista, incapaz de se ajustar à realidade revolucionária, dominada por pensamentos “brancos”, e que tem a intenção de explorar e dominar o movimento negro. A representação de Cruse do marxismo está um nível acima da representação da maioria da imprensa capitalista, mas ela também sofre de muitos erros e distorções. Vamos começar, portanto, com a concepção geral dele sobre o marxismo.
Cruse tira o chapéu para Marx, reconhecendo que ele foi um grande pensador, cujo método do materialismo dialético aumentou grandemente a compreensão mundial sobre a sociedade. Porém, ele é incapaz de dizer algo positivo ou crível sobre os marxistas do século XX. Os acusa todos de meramente repetirem o que Marx disse, de serem inflexíveis, de se prenderem a ideias ultrapassadas e fracassarem em se ajustar às novas condições. Ao mesmo tempo, ele os acusa, também, de cometerem os erros exatamente opostos – de não repetirem o que Marx disse, de serem muito flexíveis, de se desviarem tanto de Marx que sequer merecem serem chamados de marxistas.
De uma forma ou de outra, estaremos sempre errados(2): quando marxistas modernos repetem exatamente o que Marx disse, eles estão sendo meros papagaios, e quando eles não o fazem, então não são marxistas. Para começar, vamos analisar o segundo desses crimes – o “desvio” de Marx.
Enquanto teoria, o marxismo começou com Marx, porém ele não terminou com ele. Se este fosse o caso, se o marxismo fosse apenas o que Marx descobriu e formulou há um século ou mais, então ele não teria nenhum direito de ser chamado de científico; ele seria classificado, atualmente, como um tipo de dogma ou culto, e o mundo teria parado de debater sobre ele há muito tempo. Marx desenvolveu sua teoria e algumas de suas leis tendo como base o conhecimento e condições de seu tempo. Sua teoria seria de fato inútil para a atualidade se outros pensadores, utilizando-se de seu método, não houvessem adicionado ao marxismo e o atualizado frente aos novos conhecimentos, diferentes condições e novas experiências.
Cruse crítica os marxistas do século XX por incrementarem àquilo que Marx deu início, adaptando suas ideias a condições que não existiam em seu tempo, e aplicando sua teoria a circunstâncias que nem Marx nem qualquer outro ser humano de seu tempo poderiam ter previsto. Isso apenas faria sentido se esperássemos que sua teoria tivesse algum tipo de qualidade mágica: estar desenvolvida logo após sua concepção, para poder ser aplicada a qualquer tempo e lugar, da mesma forma, perfeita e irrefutável. Tal exigência jamais é feita a nenhuma outra teoria e ciência. A teoria moderna da evolução não é, e não o pode ser, a mesma de quando foi descoberta por Darwin há um século; ela se desvia do original, é sua extensão. O mesmo se aplica ao marxismo.
Cruse provavelmente concordaria de maneira geral com essas afirmações, dizendo que suas críticas não são contra as extensões da teoria de Marx, mas sim desvios dela – desvios estes tão grandes que levaram o marxismo a uma crise incorrigível. Nós poderemos entender o que ele quer dizer com desvios do marxismo, e, portanto, o que ele quer dizer com marxismo, quando nos voltamos aos únicos exemplos que ele fornece sobre tais desvios: a Revolução Russa de 1917. (Como veremos mais a frente, o papel do marxismo na Revolução Russa nos dá importantes esclarecimentos sobre a real relação entre o marxismo e a luta negra.)
O máximo usurpador de Marx, diz Cruse, foi Leon Trotsky, “quem afirmou pela primeira vez que a revolução era sequer uma possibilidade na Rússia. Isso foi em 1905, momento em que nenhum outro marxista russo concordou que isso era possível (nem mesmo Lênin). Trotsky foi denunciado como um visionário ridículo, porém mais tarde acabou por ganhar outros marxistas russos para seu pensamento”.
“O marxismo, da maneira como Marx o desenvolveu, não previa uma ‘revolução socialista’ em um país atrasado como a Rússia. De acordo com Marx, a revolução que ele previu teria de acontecer em um país altamente industrializado, que necessariamente haveria de ter criado uma grande classe de trabalhadores industriais [...] (que) se revoltariam e expropriariam os donos [...]
(A Revolução Russa) colocou os partidos marxistas da Europa ocidental, Estados Unidos, etc., em um sério dilema – que só se aprofundaria com o passar dos anos em uma série de crises. Isso se deu porque toda a revolução que aconteceu desde a Revolução Russa se desenvolveu em condições agrárias, de indústria atrasada, de semicolônia ou de colônia [...]
De acordo com uma interpretação ortodoxa das formulações marxistas, Trotsky adulterou as ‘leis’ marxistas, e colheu uma tormenta [...]”
É verdade que Marx esperava que a revolução do proletariado contra o capitalismo começasse nos países com um desenvolvimento industrial avançado, e também é verdade que ela se deu em um país atrasado e semicolonial. Mas nenhum desses fatos invalida o marxismo ou condenam Lênin e Trotsky de terem “adulterado” o marxismo. Pelo contrário! A derrubada do capitalismo na Rússia sinalizou o começou do fim do capitalismo como o sistema dominante mundial, e portanto foi, na realidade, a primeira grande confirmação da teoria de Marx.
As previsões temporais de Marx sobre as revoluções se mostraram erradas ou ultrapassadas, mas isso é apenas um detalhe frente ao fato de que a revolução proletária prevista por Marx de fato aconteceu, de que os trabalhadores demonstraram de maneira decisiva a sua habilidade para tomar o poder dos capitalistas, de que uma enorme ferida foi aberta dentro do mundo capitalista.
Uma crise? Sim, de fato a Revolução Russa criou uma crise – para o capitalismo e o imperialismo, uma crise que ainda assombra eles. Pois, apesar da subsequente degeneração da União Soviética, a Revolução Russa se tornou um exemplo para as massas oprimidas de tantos países e serviu de inspiração para outras revoluções vitoriosas contra o capitalismo e o imperialismo, em outros países coloniais e semicoloniais. Mais algumas dessas “crises do marxismo”, e o sistema capitalista estará liquidado.
Lênin e Trotsky foram capazes, ao contrário de Marx, de ver a possibilidade de a revolução acontecer primeiro em um país com um desenvolvimento industrial atrasado, pois viveram anos depois de Marx e, “subindo em seus ombros”, foram capazes de enxergar mais longe. Muito aconteceu para mudar o mundo durante o terço de século que separou a morte de Marx e a Revolução Russa. Esse foi o período em que o capitalismo definitivamente passou de seu estágio industrial, e entrou definitivamente em seu estágio monopolista (imperialista).
Marx havia mostrado que o capitalismo estava inevitavelmente em direção aos monopólios, mas ele não viveu para ver isso acontecer. A conquista do mundo pelo imperialismo, o domínio e divisão da Ásia e África pelas potências capitalistas, criou uma nova situação. Fez com que se apresentassem novas e mais profundas contradições no capitalismo – e abriu novas possibilidades para a revolução contra o capital.
Nessa nova situação, Lênin e Trotsky aplicaram o método que fora deixado por Marx. A teoria de Lênin sobre o imperialismo, e seu perspicaz estudo sobre o colonialismo e nacionalismo, junto com a teoria da revolução permanente de Trotsky, adicionaram novos e indispensáveis aspectos à teoria marxista. Revelaram fraquezas na estrutura capitalista que não podiam ser vistos na metade do século XIX: o imperialismo quebraria primeiro em seu elo mais fraco, as classes dominantes em países industrialmente atrasados não poderiam resistir com tanta força à revolução como seus irmãos mais avançados.
Aplicadas com consequência na Rússia, essas contribuições à teoria marxista resultaram na separação de um sexto do mundo da fortaleza capitalista. Como alguém pode pedir por um exemplo mais magnífico da aplicação inovadora do marxismo para um país específico com problemas e relações específicas? O que Cruse chama de “adulterar” é apenas o enriquecimento da teoria marxista e sua aplicação concreta em condições únicas e especiais. O marxismo estaria hoje morto se não fosse por essas contribuições.
Quando Cruse vê desvios porque Lênin e Trotsky não meramente repetiram aquilo que Marx disse, ele mostra uma inabilidade, ou relutância, em reconhecer importantes aspectos do marxismo – sua riqueza, variedade, habilidade para lidar com situações diversas, sua incompletude. O marxismo não é apenas o que Marx elaborou há mais de um século, nem é apenas o que Lênin e Trotsky adicionaram quando aplicaram o método marxista às condições de seu tempo, mas também é o que marxistas posteriores fizeram, fazem e farão conforme eles aplicam a teoria marxista a diferentes situações, incluindo algumas que podem ser inteiramente novas.
O marxismo é uma teoria em processo de desenvolvimento, que cresce em potência e alcance conforme é aplicado a situações específicas e a condições novas. Ele cresceu quando Lênin e Trotsky o aplicaram às condições específicas da Rússia na época do imperialismo (o “russificaram”). Ele cresceu quando o Socialist Workers Party o aplicou às condições específicas dos Estados Unidos (o “americanizaram”). E ele continua a crescer conforme a SWP o aplica às condições específicas da comunidade negra nos Estados Unidos (o “enegrece”, conforme a SWP colocou nas resoluções da convenção de 1963, Freedom Now: The New Stage in the Struggle for Negro Emancipation, Pioneer Publishers).
Teoria é algo derivado da realidade; quanto melhor uma teoria corresponder à realidade, melhor ela é. Marx estudou as condições e dificuldades dos trabalhadores da Europa ocidental, aprendeu suas lições e as incorporou em sua teoria. Lênin e Trotsky fizeram o mesmo com os trabalhadores e camponeses russos. E desde sua fundação a SWP vêm fazendo o mesmo com as condições e dificuldades da população negra dos Estados Unidos, que sempre foram únicas em vários aspectos. Em sua teoria e programa, estão incorporadas muitas lições aprendidas da luta dos negros, e de ideias, sentimentos e perspectivas do “gueto negro”
E isso não é tudo. As dificuldades dos negros em 1964 não são as mesmas que existiram há dez ou cinco anos – muito mudou. Falando no recente comício da Freedom Now Party(3) em Detroit, seu presidente estadual, Albert B. Cleage, observou:
“em todo lugar a concepção geral do negro sobre si mesmo, de sua luta, mudou. Você pode não saber o dia em que começou a pensar de modo diferente, mas isso definitivamente aconteceu.” (Illustrated News, Junho de 1929)
Com essa mudança da percepção do negro sobre si mesmo e sua luta, veio muitas outras mudanças – seus objetivos, estratégicas, táticas – e mesmo mudanças na maneira como certas palavras são definidas.
O SWP vem tentando estudar essas mudanças, tentando entender suas causas, sua direção, e encaixar suas características revolucionárias em um programa de ação capaz de substituir o capitalismo pelo socialismo. Ele vem escutando e aprendendo de figuras não-marxistas – como Malcom X, Rev. Cleage, William Worthy, Jesse Gray, Daniel Watts, James Baldwin, os exilados Robert F. Williams e Julian Mayfield, e eventualmente até de Harold Cruse – que, em certo grau, expressam o sentimento, aspirações e pensamentos da comunidade negra que, como Robert Bernon recentemente colocou, “é mais verdadeiramente trabalhadora e revolucionária que os sindicatos, ou qualquer outra coisa nos Estados Unidos atualmente”.
Destes estudos e de sua própria participação nas lutas, a SWP no último ano ou dois desenvolveu uma variedade de ideias – ideias marxistas – sobre o nacionalismo-negro, separatismo, independência de ação política dos negros, a relação dos negros com os capitalistas, com os trabalhadores brancos, etc. Independentemente de essas ideias serem perfeitas ou quase perfeitas, de estarem completas ou apenas em seu começo, rumo a uma compreensão mais completa da realidade, ninguém pode negar que elas lidam com questões vitais no que toca a comunidade negra e seus aliados. Certamente nenhum outro partido nesse país avançou mais nesse sentido do que a SWP.
O mais desencorajador no artigo de Cruse não é que ele rejeita o marxismo, mas que ele deliberadamente se recusa a confrontar ou ao menos mencionar as ideias que a SWP defende e pelas quais ela luta. Dando preferência a construir uma visão distorcida do marxismo(4) que até mesmo alguém sem uma grande inteligência(5) conseguiria refutar, ele simplesmente ignora o que o marxismo de fato defende e propõe. Por exemplo, a SWP é a única das organizações que reivindicam o marxismo nesse país que diz que o nacionalismo-negro é algo progressivo, oferecendo sua ajuda e colaboração. Não é estranho que Cruse não pode achar nenhum espaço para esse fato em seu artigo sobre a SWP e o movimento negro? Ou será que mencionar tal fato enfraqueceria toda a estrutura de sua polêmica?
Nos casos em que as posições da SWP são bem conhecidas, Cruse acusa a SWP de fazer afirmações sem de fato acreditar nelas, mas sempre de maneira cuidadosa para não informar aos seus leitores quais são exatamente esses casos, para que eles possam então fazer seu próprio julgamento. Ele nunca oferece evidência da tal desonestidade, meramente afirmando que marxistas não podem acreditar em tais coisas (sem nunca mencioná-las), pois então eles seriam obrigados a abrir mão do marxismo (em qualquer caso, da versão de Cruse do marxismo). Sobre os esforços pioneiros da SWP de enegrecer o marxismo, o que seria de interesse aos leitores de um artigo chamado “Marxismo e o Negro”, ele jamais sequer menciona.
Essa pode ser uma maneira de “ganhar” o debate, ou de criar e fortalecer preconceitos contra o marxismo. Porém, é uma maneira errada de educar os militantes negros, ou qualquer outra pessoa, sobre o marxismo, ou sobre qualquer outra coisa. Cruse tem o direito de não discutir o que a SWP de fato defende, porém um artigo que discute justamente o que a SWP defende é um lugar estranho para exercer tal direito.
Notas de rodapé:
(1) N.T. – SWP, seção da Quarta Internacional dos EUA. (retornar ao texto)
(2) N.T. – Do original “heads I win, tails you lose”, traduzido literalmente para “cara eu ganho, coroa você perde”. (retornar ao texto)
(3) Freedom Now Party (ou Freedom Now Movement) (literalmente: Partido Liberdade Já! ou Movimento liberdade já!) foi uma organização norte-americana que tinha como objetivo criar um partido político negro, independente dos brancos. (retornar ao texto)
(4) N. T. – do original “straw man”: chamado em português de falácia do espantalho (intencionalmente distorcer a posição do adversário em um debate para facilitar sua refutação), foi traduzido nesse trecho por seu significado, para que seu conteúdo seja mais acessível. (retornar ao texto)
(5) N. T. – do original “mental flyweight”: expressão que combina a palavra mental, referente à mente, e flyweight, que é o “peso-pluma” (entre o peso-leve e o peso-médio) no esporte de boxing. Ou seja, um pensador leve, pouco pesado, fraco. (retornar ao texto)
Inclusão | 10/11/2017 |