Inflação, agronegócios e crise de governabilidade

Jorge Beinstein

21 de julho de 2008


Primeira Edição: O original encontra-se em http://www.resumenlatinoamericano.org , nº 1075

Fonte:Resistir.info - https://www.resistir.info/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Em meados de Junho a confrontação entre o governo e as associações patronais do campo parecia haver chegado a um ponto de ruptura total –, mas não foi assim, pois poucos dias depois acalmavam-se as águas. A presidente decidiu transferir para o Parlamento a decisão final sobre os impostos à exportação de produtos agrícolas. Era o que esperavam os empresários rurais para levantar o seu lockout que começava a desgastar-se rapidamente, tal como a popularidade do governo. Foi o fim provisório de mais de cem dias de enfrentamento após os quais, como dizem agora alguns politólogos, "a Argentina já não é a mesma".

A imagem da presidenta havia chegado a um nível de deterioração apenas comparável com o do ex-presidente De la Rua em Dezembro de 2001. Sua convocatórias para a mobilização em apoio ao governo haviam inflamado contra si as classes altas e sectores crescentes das classes médias. Por sua vez, os ruralistas haviam estendido sua influência unificando atrás de si o conjunto da oposição de direita e vastos sectores das classes médias rurais e urbanas – neste último caso inclusive grupos médio-baixos afectados por um processo inflacionário que ao longo dos últimos meses deteriorou o seu nível de vida.

Cartoon de Langer.

Contudo, sua radicalização levava-os a um beco sem saída, especialmente no caso da pequena burguesia agrária próspera, uma espécie de "novos ricos" furiosos diante das cargas fiscais que turvavam suas expectativas de lucros abundantes e crescentes. A intransigência extremista a que haviam chegado nas suas exigências era de facto uma convocatória para o golpe de estado. No passado, talvez o seu desejo pudesse ter-se materializado, mas agora, a um quarto de século do fim da última ditadura militar, a capacidade de intervenção das Forças Armadas é quase nula – a sua degradação institucional e a pedra tumular moral que pesa sobre elas devido ao genocídio torna impraticável essa possibilidade. A outra alternativa golpista seria um tumulto de direita (uma espécie de 2001 ao contrário) amplificado pelos meios de comunicação e finalmente manipulado por um sector do sistema institucional (judicial, parlamentar nacional, governos provinciais, etc).

Mas os dirigentes das direitas política e rural não estavam dispostos a tentar semelhante aventura, em primeiro lugar porque o actual governo para além da sua imagem progressista respeitou integralmente o sistema neoliberal dominante herdado dos anos 1990. Em consequência, núcleos decisivos do poder económico não apoiariam de modo algum o derrube da presidenta. Em segundo lugar porque esse facto teria aberto uma espécie de caixa de Pandora, uma desordem geral que unido ao mais que provável afundamento das classes populares encurraladas pela alta dos preços dos alimentos poderia ter gerado uma avalanche muito extensa de protestos sociais. E finalmente porque em meados de Junho, apesar da persistente agitação dos meios de comunicação, a popularidade do movimento de direita mostrava sérios sinais de deterioração. A alta de preços e a ameaça do desabastecimento começavam a produzir reacções hostis para com os ruralistas provenientes de importantes sectores das classes médias e baixas.

As associações tradicionais da burguesia latifundiária, como a Sociedad Rural, que ao longo do conflito haviam mantido um perfil relativamente moderado, pressionaram com força para desacelerar o protesto. Os novos ricos do mundo agrário (pequenos e médios rentistas e agricultores) foram de facto a massa de manobras do bando dos agronegócios, acreditaram-se sujeitos de uma espécie de cruzada gaúcha contra o "estado ladrão" que lhes queria cobrar tributos extraordinários. Por debaixo dos emblemas e bandeiras pátrias movia-se, açulada pelas classes altas, uma classe média agrária mesquinha que pretendia apropriar-se de uma parte substancial do botim de super lucros do negócio exportador.

Contudo, seria um erro grosseiro limitar o fenómeno a esse aspecto sócio-económico. O leque civil mobilizado contra o governo foi muito mais amplo, estendeu-se às cidades, ganhou ímpeto nos grandes conglomerados urbanos incorporando importantes sectores médios, a maior parte deles sem vínculos materiais directos com o mundo agrário.

É certo que nos bairros acomodados de Buenos Aires, por exemplo, a vanguarda dos cacerolazos foram as "caçarolas de teflón" esgrimidas pelos ricos acompanhados por nostálgicos da última ditadura militar, mas o movimento estendeu-se às zonas de classe média e foi visível a simpatia despertada em sectores importantes da classe média urbana baixa.

A desestabilização

As mobilizações promovidas pelo governo realizaram-se a força de aparelho, o clima entre os trabalhadores foi de apatia ou indiferença e em certos casos de repudio não muito entusiasta à direita. O activismo pró governamental, por vezes auto-qualificando-se como "anti-oligárquico", foi claramente minoritário.

Um factor decisivo da ascensão opositora nas camadas médias e de afastamento em relação ao oficialismo nas classes baixas (onde a presidenta colheu mais votos em 2007) é a inflação que deteriorou rapidamente os rendimentos reais dos assalariados.

Actualmente a direita política e seu guarda-chuva empresarial designam a inflação como o inimigo principal a combater para a qual voltam a levantar a tradicionais receitas neoliberais centradas no chamado "arrefecimento da economia" alcançado através da redução da despesa pública e do travão aos salários. O resultado seria um rápido incremento do desemprego e a precarização laboral e a redução da procura das classe baixas – mas não dos lucros empresariais que se manteriam ou aumentariam graças à descida dos custos salariais reais. Com menores gastos o Estado poderia preservar o superávite fiscal sem necessidade de aumentar os impostos, o que obviamente beneficiaria os empresários e as classes altas em geral. Ali de detém a ofensiva liberal, porque segundo eles o Estado deveria continuar a intervir no mercado cambial acumulando dólares e sustentando assim um dólar artificialmente muito alto, o que permitiria manter ou aumentar os altos rendimentos em pesos dos exportadores industriais e agropecuários. Neste esquema económico, a governabilidade só poderia ser sustentada com doses crescentes de repressão social e com a consolidação do bloco reaccionário (classes altas e média) tal como foram formando nos últimos meses. Mas ambas as condições são de obtenção muito difícil, as bases populares mudaram muito desde a década passada, a experiência de 2001-2002 marca um ponto de inflexão quase irreversível. Se se impuser a opção neoliberal a generalização e radicalização dos protestos populares daria lugar a um panorama de alta turbulência ao qual seguramente se incorporariam sectores intermédios que, afectados pela concentração de rendimentos, abandonariam seus delírios elitistas para voltar a olhar com simpatia os de baixo.

Pelo seu lado, o governo tenta desde há pouco mais de um ano enfrentar a inflação com medidas pontuais que não conseguem travar o processo. Desde o ocultamento da realidade com a manipulação de estatísticas até os acordos de preços sectoriais passando por toda classe de negociações com grupos empresariais e burocracias sindicais, foi desenvolvido um complicado jogo destinado a afugentar o clima inflacionário preservando a aliança social e mediática que havia sido a base da governabilidade desde 2003.

O governo temia que a referida aliança se rompesse a partir de baixo, a partir do espaço dos trabalhadores devido à persistente degradação dos salários reais, mas rompeu-se por cima, a partir do mundo dos agronegócios, a partir das camadas sociais mais beneficiadas pela estratégia económica kirchnerista desencadeando uma onda reaccionária cuja magnitude e radicalidade surpreendeu todos, ao governo naturalmente mas também aos seus instigadores directos, os dirigentes empresariais rurais.

A aplicação de impostos ou retenções móveis às exportações agrícolas, que apontam centralmente às vendas externas de soja, não constituem uma medida fiscalista. O estado dispõe de uma ampla variedade de fontes tributárias alternativas e conta com um superávite fiscal considerável, seu objectivo é o sistema de preços, a inflação pressionada pela repercussão interna da alta internacional dos preços dos produtos agrícolas. Mediu muito mal as possíveis repercussões da medida, mas quem as mediu bem? Nem os dirigentes patronais agrários, nem os meios de comunicação que os apoiam, suspeitavam a onda de protestos que se desencadearia e muito menos a rápida formação de uma massa social reaccionária cujo volume e dinamismo não tem precedentes no último meio século. Para encontrar algo parecido deveríamos retroceder até 1955 quando um enorme bloco de classes médias e altas apoiou (impulsionou) o golpe militar anti-peronista, também então, tal como agora, salpicado com manifestações racistas contra os pobres.

Inflação, capitalismo realmente existente e agronegócios

O processo inflacionário não é o resultado de um suposto "reaquecimento" económico e sim de uma combinação de factores internos e externos cuja convergência ultrapassa tanto o oficialismo como a sua oposição de direita.

Do ângulo dos custos de produção, a inflação internacional fez subir os preços de uma ampla variedade de insumos importados. Essa tendência viu-se reforçada pela política de dólar alto em benefício dos exportadores.

Mas um factor decisivo foi a corrida entre salários e lucros empresariais. Tomando por base as estatísticas oficiais, os salários reais caíram em média uns 30% em 2002 e começaram a recuperar-se no ano seguinte. Por volta de 2007 já se encontravam quase ao nível de 2001, antes do derrube, mas ainda eram inferiores aos de meados dos anos 1990.

Temos de levar em conta tendências a longo prazo como as do crescimento da taxa de desocupação e da concentração de rendimento. Estas foram avançando lentamente desde meados dos anos 1950 através de um movimento zigzagueante, expressão da correlação de forças entre os sindicatos e as empresas. O golpe militar de 1976 acelerou sua marcha, que adquiriu maior velocidade nos anos 1990. Em 2001-2001 verificou-se a derrocada dos salários e da despesa pública em termos reais, mas desde 2003 a recomposição económica produziu um incremento gradual do emprego, que cresceu cerca de 20% entre 2003 e o primeiro trimestre de 2007, dos salários reais (cresceram pouco mais de 30% no mesmo período) e da participação dos trabalhadores no Rendimento Nacional: 23% em 2003 e 28% em princípios de 2007, ainda que inferior à de 2001 próxima dos 31%, tudo isto de acordo com as estatísticas oficiais(1). É muito provável que as referidas estatísticas exagerem os números positivos. Além disso, a recomposição salarial foi muito díspar. Entretanto, torna-se evidente que entre 2003 e 2006, o período de glória do kirchnerismo, as três variáveis acima mencionadas aumentaram. Frente a isto, numa primeira etapa o conjunto da classe capitalista aproveitou os baixos salários reais para acumular lucros festejando a expansão geral da procura interna.

Mas quando, entre fins de 2006 e princípios de 2007, os salários reais começaram a aproximar-se dos níveis de 2001, os empresários reagiram tentando reverter a situação. Comerciantes, industriais, produtores agropecuários, etc foram aumentando os preços dos seus produtos. Do seu ponto de vista, os aumentos nos preços dos insumos e dos salários estavam a comprometer margens de lucros até níveis "inaceitáveis". Para eles, 2001-2002 (tal como 1976) marcava um ponto histórico irreversível.

A primeira onda inflacionária foi suave e pode ser absorvida pelo conjunto da população (inclusive os assalariados) e as relativamente pequenas retracções iniciais da procura nas classes baixas foram mais que compensadas por incrementos paralelos na procura das classes superiores. Mais adiante, a reconcentração de rendimentos (paralela à deterioração dos salários reais) impulsionou com mais força o fenómeno da "inflação de procura" proveniente dos sectores médios-superiores e altos.

O empurrão final foi produzido pela aceleração da alta dos preços internacionais dos produtos agrícolas, repercutindo sobre o sistema interno de preços (e sobre as expectativas de super-lucros nas classes altas e médias do mundo rural).

Como já assinalei, o governo – cujo negócio é a "governabilidade", mãe do poder político e de todos os negócios oficiais – reagiu tentando impor retenções móveis às exportações agrícolas partindo do princípio de que os seus preços futuros, num horizonte previsível, serão cada vez mais altos. Foi ao mesmo tempo uma medida defensiva e preventiva que provocou o motim já conhecido, o que por sua vez acelerou o processo inflacionário.

Num dos seus primeiros discursos, ao iniciar-se o protesto rural, a presidenta assinalou estar "contra a luta de classes". Declarou isso como uma espécie de "princípio doutrinário" irrenunciável. Como se está a ver, poder-se-á estar a favor ou contra, mas a luta de classes existe. O fundador do seu movimento costumava repetir há várias décadas, repetidas vezes, que "a única verdade é a realidade". Fica aberto o debate sobre se se tratava ou não de um princípio doutrinário ou sobre o significado filosófico do conceito de "realidade", etc, mas não poderá ser negado que constituía um apelo à sensatez e à dessacralização de fantasias irracionais. Por exemplo, se nos situarmos na Argentina actual, a ilusão quanto a um capitalismo harmónico, estável, ainda que subdesenvolvido e cada vez mais dominado pelos agronegócios (imersos numa avalanche de super-lucros especulativos) e em meio a uma formidável crise global.

A longa marcha do parasitismo financeiro

O agronegócio surge hoje como a cabeça, a área mais próspera do capitalismo argentino. A agressividade das suas hostes, seu tom autoritário, levou diversos grupos e comunicadores pró governamentais a qualificar o fenómeno como "renascimento oligárquico", de resultado da "reprimarização económica", de retorno ao velho sistema agro-exportador sobre o qual a aristocracia latifundiária colonial assentou o seu poder há mais de um século, deslocado depois pela industrialização e o primeiro peronismo.

Essa imagem oculta, o carácter claramente "financeiro" dos agronegócios e em consequência sua pertença ao movimento global de financeirização que cresce há quatro décadas e acabou por estabelecer sua hegemonia sobre a economia mundial. A massa total de fundos que circulam em suas redes especulativas aproxima-se dos mil milhões de milhões de dólares (equivalente a quase 16 vez o Produto Bruto Mundial). Só os negócios com os chamados "produtos financeiros derivados", registados pelo Banco da Basiléia, rondam os 600 milhões de milhões de dólares. Esta hipertrofia parasitária impôs seu selo subcultural às mais variedades produtivas, tanto nos países centrais como nos periféricos. Isto é uma das causas decisivas da inflação internacional (cujo pilar fundamental é obviamente a explosão do preço do petróleo) e a principal fonte nutritiva da depredação ambiental planetária.

A referida tendência, expressão de decadência civilizacional, aprisionou as sociedades latino-americana já há muito tempo. O início do declínio da economia argentina habitualmente é estabelecido no segundo lustro dos anos 1970, durante a ditadura militar, quando emergiu dominante o sector financeiro como cabeça de um sistema mais vasto de actividades especulativas que foi deixando em segundo plano os sectores produtivos, principalmente a industria. Entre 1975 e 1981 o sector industrial cresceu apenas uns 2% em termos reais, ao passo que o financeiro fê-lo em quase 150%.(2)

Na Argentina, o nascimento da hegemonia financeira – que desde o princípio assumiu formas mafiosas – surgiu em resultado do esgotamento e decomposição do processo de industrialização (subdesenvolvida) evidente desde fins dos anos 1960, cuja mais alta expressão política foi o primeiro governo peronista (1945-55). O referido processo nunca pôde superar o velho esquema agro-exportador, com o qual coexistiu de maneira instável e confusa: para funcionar dependia das divisas das exportações provenientes do sector rural, o que determinava uma debilidade estratégica fundamental na sua inserção internacional. Isto prosseguiu até meados dos anos 1970, num contexto de interminável sucessão de golpes e contra-golpes de Estado e associações inter-sectoriais das quais participavam as transnacionais que iam ocupando posições, os credores externos, os industriais mais ou menos "nacionais", os interesses da alta burguesia rural e comercial, os sindicatos, etc, numa espécie de eterno "empate" onde nenhum sector conseguia prevalecer de modo duradouro. De facto ia-se verificando pouco a pouco a recolonização do aparelho económico argentino (através da dívida externa, dos investimentos estrangeiros, do enfraquecimento comercial) ao mesmo tempo que se concentravam os rendimentos e degradava-se o Estado. Este retrocesso geral debilitava, quebrava uma após a outra as zonas de protecção económicas, institucionais e sociais, transformando o capitalismo local no seu conjunto.

A ditadura instalada em 1976 produziu uma mudança qualitativa, marcada pela avalanche especulativa, a queda salarial e a abertura importadora selvagem, que coincidiu na especificidade periférica argentina com o processo global de dominação financeira.

Em consequência, o predomínio dos agronegócios deve ser visto como a resultante (a mais recente degeneração socio-económica nacional) desse movimento externo-interno. A dinâmica do mundo rural argentino de hoje é inexplicável sem a introdução de termos como "pool de sementeira", "fundo fiduciário" ou "rentista rural". Por outro lado, seu auge é o produto da alta acelerada dos preços internacionais dos produtos agrícolas: componente da crise mundial do capitalismo, resultado do esgotamento tecnológico da modernização agrícola convertida em mega depredadora de recursos naturais, geradora de fomes em vastas zonas subdesenvolvidas, desestabilizadora de economias centrais e periféricas.

De qualquer forma, a "cultura financeira" dos centros dinâmicos do sistema rural argentino não significa a presença de uma "nova burguesia" apagando completamente as velhas raízes oligárquicas. O processo histórico foi mais complexo, as antigas classes dominantes agrárias foram mutando nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 1990, alguns sectores desapareceram do cenário, outros adaptaram-se com dificuldades e finalmente os ganhadores incorporaram-se de modo pleno nos novos tempos. Estes associaram-se com os recém chegados, em geral especuladores, estruturas financeiras locais e transnacionais (em numerosos casos é quase impossível diferenciar estas duas últimas categorias). Hoje, quando observamos a elite dirigente da economia agrária, encontramos velhos apelidos da aristocracia rural combinados com personagens surgidos dos negócios rápidos da era neoliberal, grupos financeiros globais, etc. Neste processo de "financiarização" ingressaram amplas camadas da classe média agrária como sócias dos novos empreendimentos ou como rentistas.

Por outro lado, não deveríamos opor de maneira esquemática os novos comportamentos da antiga cultura "oligárquica", muitas vezes assinalada erroneamente como "pouco capitalista", "atrasada" do ponto de vista do desenvolvimento burguês. Desde as suas origens no século XIX a elite dos pampas esteve impregnada de uma grande dinâmica comercial-financeira, seu carácter colonial concedeu-lhe uma identidade "internacional" (pró europeia), diversificou seus negócios na área urbana onde em geral residia, etc.

Em consequência, sua última mutação rumo aos agronegócios de alta tecnologia não significou a entrada num mundo totalmente novo e sim, antes, o salto qualitativo de processos recentes e também de outros muito longínquos no tempo.

Crise de governabilidade

A economia mundial, com centro nos Estados Unidos, está a entrar numa situação caracterizada pela combinação de inflação e desaceleração produtiva. A desordem inflacionário global chegou para ficar, certamente por muito tempo, embalada pela hipertrofia financeira, pressionada pela alta incessante dos preços do petróleo, dos alimentos e das commodities em geral.

Os agronegócios actuais são, entre outras coisas, "negócios inflacionários", impulsionados por (e impulsionando) corridas especulativas internacionais (e intranacionais), golpes de mão e operações de curto prazo à procura de super-lucros, acumulações velozes de liquidez destinada a ser reinvestida nessa rubrica ou em outras. A depredação de tudo o que se cruza no seu caminho (recursos naturais, estruturas sociais, etc) é uma manifestação essencial do seu comportamento. No caso específico argentino é possível afirmar que o clima cultural prevalecente em princípios desta década (bem adubado pelo período menemista) estava perfeitamente preparado para essa avalanche capitalista global. O governo dos Kirchner, agora vítima do fenómeno, alentou-o desde a sua chegada porque considerou-o um factor decisivo da "prosperidade económica" que assegurava a estabilidade institucional. Os recordes de exportações agrícolas (ou seja, a ascensão triunfal dos agronegócios) eram apresentados pelo oficialismo como exemplo do êxito empresarial da nova Argentina onde a acumulação de reservas dolarizadas, as altas taxas de crescimento do PIB e o enriquecimento dos poderosos costumavam ser associadas à integração social, a recuperação de salários e empregos e a consolidação da convivência republicana.

Aparentemente, o "progressismo" havia finalmente encontrado a fórmula da quadratura do círculo: subdesenvolvimento capitalista próspero com inclusão dos de baixo e democracia representativa. Mas a festa durou menos de um lustro, os agronegócios foram acumulando poder económico, mediático e político e no primeiro semestre de 2008 já estiveram em condições de expor seu poderio e avançar rumo a uma super concentração de rendimentos.

Ao fazê-lo deterioram gravemente não só a governabilidade progressista como também a governabilidade em geral: a inflação descontrolada e a irrupção de uma massa social reaccionária muito agressiva e extensa, com claros germens protofascistas, pôs a nu a debilidade do regime político, sua insuficiente legitimidade. De maneira aparentemente "inesperada" começou a enésima crise de governabilidade da história argentina. A mesma não foi originada pela derrocada económica e sim pela prosperidade (agroexportadora), seu contexto internacional está sobredeterminado pela crise estagflacionária global, a burguesia ganhadora que a desencadeou dificilmente poderá transformar o seu domínio económico num sistema integral e durável de controle político da sociedade, sua ascensão é desestabilizadora. De qualquer modo, não parece preocupá-la demasiado o futuro em geral e muito menos o futoro da "democracia" virtual argentina. Sua obsessão é acumular grandes lucros o mais rapidamente possível, seu mundo é o do curto prazo e corresponde à voragem nihilista dos centros financeiros do planeta.

Enquanto isso, o governo e a totalidade dos grandes meios de comunicação insistem em que a Argentina se encontra perante "uma grande oportunidade" de enriquecer-se graças à ascensão vertiginosa dos preços dos alimentos. O facto de o mesmo submergir na fome centenas de milhões de seres humanos não parece motivar neles nenhuma reacção ética. Sua pequena "racionalidade" amoral impede-os de perceber, a partir de uma visão racional mais ampla, a catástrofe para qual se encaminham enquanto contabilizam seus lucros extraordinários, ao encharcarem-se no mar turbulento da área mais instável da economia mundial, com seus preços zigzagueantes e seus estouros financeiros.


Notas de rodapé:

(1) Eduardo M. Basualdo, "La distribución del ingreso en la Argentina y sus condiciones estructurales", Memoria Anual 2008, Centro de Estudios Legales y Sociales, Argentina. (retornar ao texto)

(2) Jorge Beinstein, "Crisis de régimen en Argentina. Pujas internas en la dirigencia, descontento social", Le Monde Diplomatique, "el diplo", número 22, abril 2001. (retornar ao texto)

Inclusão: 03/04/2020