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Primeira Edição: ....
Fonte:Resistir.info - https://www.resistir.info/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
"A peste já está aqui,
que fazer quando chega a peste?"
Homero
A recessão instalou-se no centro do império. O debate agora gira em torno da sua profundidade, duração e alcance mundial. A corte de admiradores direitistas ou progressistas do capitalismo global, que nos sufocou nos últimos anos com as suas reiterações acerca da solidez do sistema, está agora em pleno recuo táctico. Seus integrantes já não negam a crise mas tentam retirar-lhe dramatismo, reduzir suas raízes e amplitude. Alguns ensaiam explicações anedóticas, outros classificam-na como "crise cíclica", ou seja, passageira. A maior parte refugia-se na explicação simplista que reduz o fenómeno a uma grande perturbação financeira combinada com um surto pessimista dos consumidores norte-americanos provocado pelos devedores morosos dos Estados Unidos (que não pagam os seus créditos imobiliários)... e por aqueles que lhes concederam empréstimos de modo demasiado generoso. Segundo esta gente, os problemas serão prontamente superados graças às intervenções da Reserva Federal, da Casa Branca e da autoridades políticas e monetárias das outras grandes potências. O mítico estandarte do poder invencível dos donos do sistema ainda drapeja nas alturas, ainda que se vá desgastando rapidamente ao ritmo dos trovões globais.
Se se circunscrever a crise ao desinchar da bolha imobiliária norte-americana e seus impactos colaterais nos Estados Unidos e no resto do mundo, a "solução" parece clara: estimular os consumidores e investidores, subir a despesa pública e injectar liquidez no mercado. É o que estão a fazer agora o governo de Bush e a Reserva Federal. O primeiro acaba de promover uma baixa de impostos e uma despesa estatal récorde para 2009 de mais de US$3 milhões de milhões e, em consequência, um défice fiscal gigantesco pelo que a dívida em breve ultrapassará os US$10 milhões de milhões. Naturalmente Bush fá-lo com posições de direita: as reduções fiscais beneficiarão basicamente os ricos e a classe média alta. A maior despesa pública privilegiará as forças armadas que disporão do mais alto volume de fundos de toda a história norte-americana: a despesa militar total dos Estados Unidos em 2008 chegou a cerca de US$1,2 milhões de milhões (se somarmos às verbas do Departamento da Defesa as dos demais sectores do Estado), segundo o projecto de orçamento enviado por Bush ao Parlamento. Em 2009 o referido número será muito mais alto. Por sua vez, a Reserva Federal baixa cada vez mais as taxas de juros.
O que eles estão a fazer agora é uma espécie de repetição, em condições infinitamente mais graves, daquilo que já fizeram em 2001 – não têm outro libreto. Mas naquele momento a dívida pública norte-americana atingia os US$5,7 milhões de milhões e agora ronda os US$9,2 milhões de milhões. E se somarmos à mesma as do resto dos sectores público privado chega-se aos US$50 milhões de milhões (o equivalente ao Produto Bruto Mundial). A isto é necessário acrescentar a acumulação de défice fiscais e comerciais, e um volume de gastos militares totais que em 2009 poderia chegar a representar 10% do PIB norte-americano.
Em 2001 a situação era difícil mas existiam margens económicas e políticas que permitiram ao poder (mediante o auto-atentado terrorista) sair da recessão acelerando as tendências dominantes do sistema: hipertrofia especulativa, concentração de rendimentos, consumismo (com forte queda da poupança pessoal), crescimento das dívidas publicas e privadas e keynesianismo militar. Todos estes aspectos exacerbaram-se ao extremo nos últimos sete anos. As aventuras coloniais na Eurásia terminaram no pântano (o aparelho militar surge agora como uma maquinaria pesada tão refinada e cara quanto incompetente) enquanto o Estado e a população estão esmagados pelas dívidas.
A recessão estado-unidense é mais uma crise de dívida do que uma depressão provocada pelo arrefecimento do consumo, a primeira é o fundamento da segunda. A super dívida estatal chegou a um ponto tal que a sua expansão entrou num círculo vicioso que liga de maneira perversa emissões de títulos públicos e de dólares cada vez mais depreciados. Caso contrário, o Estado deveria travar seus gastos e/ou incrementar a arrecadação fiscal, o que afundaria a economia numa recessão ainda mais profunda.
A população com rendimentos médios e baixos, por sua vez, sofreu as consequências do estancamento dos seus salários reais (e da descida num importante sector). O rendimento familiar médio actualmente é inferior ao do ano 2000. Quando foi lançada a bolha imobiliária com uma avalanche de créditos baratos estava-se em simultâneo a restringir a solvência a médio prazo de uma grande massa de devedores. A serpente neoliberal acabou por morder a sua própria cauda: em meados de 2006 o mercado imobiliário estava saturado, os preços das habitações começaram a descer em 2007 explodiram os incumprimentos. O que se seguiu é bem conhecido.
Nos anos do auge o tema do iminente esgotamento do crescimento da economia norte-americana sobrecarregada de dívidas havia sido abertamente ignorado ou negado por jornalistas, peritos, grandes empresários e dirigentes políticos da super-potência. Os negócios prosperavam. Quem se teria atrevido nesse período a dizer que os grandes lucros dessa época eram a base de um desastre próximo? Os poucos que se atreveram foram marginalizados ou ridicularizados, assinalados como catastrofistas, pessoas amargas ou amantes dos terramotos.
Mas se a direita pretende fazer mais do mesmo, o progressismo imperial não vai muito mais longe. Joseph Stiglitz, expressão desse sector, acaba de propor uma variante "popular" do remédio. A variante orienta-se também para a reabilitação do consumo incrementando a despesa pública e consequentemente o défice fiscal e a dívida. Segundo esta proposta não seriam beneficiados e os ricos e sim os desempregados, os programas de desenvolvimento da infraestrutura, do sector educativo, da saúde, da poupança de energia e de redução da contaminação ambiental(1). A aspirina progressista (incompatível com o actual sistema de poder estado-unidense) e a repetição conservadora não senão pequenos paliativos impotentes perante uma realidade que os ultrapassa.
Agora que a recessão chegou ao centro da economia mundial, suas autoridades entram em pânico. Percebem que as suas acções são ineficazes ou inclusive contra-producentes. As medidas anti-recessivas como os cortes fiscais em curso, as drásticas baixas na taxa de juro ou o incremento da despesa pública trarão mais défices e dívidas. E se chegarem a ter algum êxito, ainda que seja medíocre, alentarão a inflação. Em ambos os caos impulsionarão a depreciação internacional do dólar. A recessão e a inflação chegam juntas porque a crise financeira converge com a crise energética que faz subir o preço do petróleo, arrastando para cima um amplo leque de matérias-primas. Os custos de produção aumentam não só quando cresce a economia mundial e em consequência a procura desses produtos como também quando a mesma se estanca e inclusive quando cai. Isto é assim porque a extracção petrolífera mundial está a chegar ao seu máximo nível e atrás dela as de outros recursos energéticos não renováveis como o carvão e o urânio – que se encaminham para a mesma situação a mais longo prazo, mas bem antes de meados do século XXI.(2) E, como sabemos, a substituição do petróleo pelos biocombustíveis leva ao rápido encarecimento generalizado dos preços da produção agrícola, em especial a dos alimentos.
Em síntese, as autoridades norte-americanas sabem que se tentarem reverter a recessão reanimando o mercado alentarão a inflação e a queda do dólar, o que terminará por trazer mais recessão. Mas sabem também que procurarem travar a inflação arrefecendo a economia aprofundariam a recessão: um beco sem saída.
Alguns peritos, por enquanto discretos, começam a iludir-se com a possibilidade de um estancamento prolongado mas ordenado, sem explosões sociais nem crises institucionais graves – o modelo seria o Japão da década de 1990. Entretanto, esquecem que se tratava de uma potência de segunda ordem que dispunha naquele momento de duas tábuas de salvação extremas que suavizaram a sua aterragem. Em primeiro lugar, as bolhas de prosperidade da Ásia do Leste que lhe deram oxigénio até a crise de 1997, e sobretudo os Estados Unidos, seu principal cliente, cujo mercado absorveu exportações e investimentos japoneses. Mas os Estados Unidos são demasiado grandes, não existe uma tábua de salvação externa à sua media, o resto do mundo já vinha amenizando seus desajustes fiscais e comerciais acumulando montanhas de papeis dolarizados que cada diz valem menos. Mas essa capacidade está quase esgotada.
Na última reunião de Davos discutiu-se muito acerca do possível "desligamento" entre os Estados Unidos e as outras potências industriais que desse modo tomariam distância do naufrágio do seu irmão maior.
Até hoje a globalização era apresentada pela propaganda neoliberal como uma teia da qual ninguém podia escapar. Agora, sem maiores explicações, afirma-se o contrário. A rede global, ao que parece, permitiria a uma ampla variedade de países que saíssem do desastre. Dirigentes e comunicadores de algumas economia desenvolvidas incluem-nos na lista de sobreviventes. Até mesmo em numerosos países periféricos os meios de comunicação locais tentam tranquilizar as suas populações explicando-lhes que graças ao nível das suas reservas (dolarizadas), da natureza das suas exportações, da sua localização geográfica ou outra bênção do destino, esse país não será afectado pela recessão estado-unidense (ou se-lo-á muito pouco).
Mas acontece que – para desgraças dos neoliberais – os neoliberais tinham razão: as interdependências económicas mundiais são tão densas que, como estamos a comprovar diariamente, não há maneira de desconectar os solavancos estado-unidenses (bancários, bursáteis, etc) do funcionamento financeiro internacional. A bolha imobiliária norte-americana foi a vanguarda de uma variada série de bolhas semelhantes em diferentes lugares do planeta. Países como a Espanha, Inglaterra, Holanda, Austrália, Irlanda, Nova Zelância foram parte activa da festa. Na Espanha já começou o desinchamento. Recentemente Carlos March, dirigente de um dos grupos financeiros decisivos desse país, declarou que "a crise imobiliária (espanhola) vai durar muito tempo, pelo menos três anos".(3) Além disso, numerosos bancos europeus e asiáticos são golpeados pela desvalorização dos títulos norte-americanos apoiados em dívidas hipotecárias de alto risco que compraram a mãos cheias em pleno auge especulativo. A recessão estado-unidense já afecta o Japão, estreitamente associado à super-potência aos níveis comercial, financeiro, político-militar, etc. O Japão e os Estados Unidos compram o grosso das exportações industriais da China, coluna vertebral da sua prosperidade económica que por sua vez acumula nas suas reservas mais de US$1,4 milhões de milhões de dólares e papéis dolarizados e é atravessada por várias bolhas (bursátil, imobiliária, etc).(4)
Muito mais fortes ainda são as inteconexões entre a União Europeia e os Estados Unidos... o que não impediu o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, de declarar (em princípios de Fevereiro de 2008 e sem que se movesse um só músculo da sua cara) que "na Europa não há risco de recessão, ao contrário dos Estados Unidos".(5)
Estas inter-relações planetárias do capitalismo por vezes foram explicada em termos de "roubo" da super-potência ao resto do mundo, o qual durante um longo período forneceu-lhe bens e capitais em troca da papéis de valor decrescente. Isto permitiu ao Império consumir e fazer guerras muito acima das suas possibilidades produtivas. É o que acaba de afirmar George Soros(6). Aquilo que durante muitos anos era apresentado como um argumento "anti-imperialista", "a partir da esquerda", foi agora assumido pelo personagem-paradigma da especulação financeira mundial. Segundo ele, a actual crise, "a mais grave desde o fim da Segunda Guerra Mundial", marcaria o fim do reinado do dólar, a recessão no mundo desenvolvido e a ascensão de países como a China, a Índia e alguns países exportadores de petróleo. Em síntese, os Estados Unidos e possivelmente uma parte da Europa teriam chegado ao seu ocaso mas o capitalismo global ficaria a salvo graças à injecção de sangue jovem proveniente da periferia... o que permitiria a Soros e seus colegas continuarem de modo renovada os seus engenhosos negócios...
Mas a realidade é menos simples. O mercado norte-americano foi o espaço decisivo para a colocação de mercadorias e excedentes de capitais do resto do mundo. Graças à sua capacidade de absorção (reforçada pelo conjunto do capitalismo mundial), as burguesia da Europa, Ásia e outros continentes puderam realizar operações especulativas, investimentos produtivos e exportações sem os quais suas prosperidades teriam sido impossíveis. A partir da crise crónica de super-produção mundial (com centro nos países desenvolvidos) iniciada em fins dos anos 1960, a economia estado-unidense, cada vez mais parasitária, foi o principal sustentáculo da procura global. As classes dirigentes da China, Índia, Japão ou Europa não foram roubadas nem coagidas a cederem bens e capitais à super-potência... só estavam a sustentar o seu principal cliente com créditos e preços acessíveis.
Trata-se de uma tecido internacional muito complexo em cuja cúspide encontram-se as elites dirigentes dos Estados Unidos e numerosos países ricos e pobres, ao passo que na base apinham-se os excluídos e trabalhadores super-explorados da periferia e uma massa crescente de empobrecidos dos países industrializados. A fractura desse pilar central faz agora cambalear o sistema mundial.
O discurso acerca da ascensão do capitalismo periférico enquanto futuro líder do mundo surge como a componente tragicómica da ilusão do desligamento. Os dirigentes chineses, por exemplo, prosseguiriam seu enriquecimento vertiginoso (talvez um pouco mais suave) ainda que não se saiba muito bem como o fariam se se afundarem os mercados norte-americao e japonês.
A Índia e o Brasil marchariam por um caminho semelhante com as suas burguesias transnacionalizadas talvez a fazer negócios Sul-Sul e atrás deles um variada série de países subdesenvolvidos. A sombra da recessão cobriria as chamadas economias desenvolvidas (em geral enquadradas na OCDE), que em 2007 representaram quase 70% das importações mundiais, enquanto numerosos países do resto do mundo, vá-se lá saber graças a que milagre, salvar-se-iam do desastre. Não esqueçamos que os maiores e mais dinâmicos deles baseiam o seu crescimento na expansão das suas exportações... de preferência destinadas aos países ricos.
A fábula é inconsistente não só do ponto de vista do comércio internacional como também (e muito mais) quando enfocamos a composição e o comportamento destas burguesias periféricas, transnacionalizadas, submergidas até o pescoço nas bolhas financeiras globais, boa parte dela presas à cultura do curto prazo (o estilo de vida dos especuladores), educadas na rapina e na super-exploração dos seus próprios países. Mundializam os seus excedentes financeiros diante da "estreiteza relativa" dos seus mercados locais e inclusive regionais (do ponto de vista das suas expectativas de altos lucros) ou então puxados pela "necessidade" de estenderem os seus interesses ao interior das teias empresariais globais das quais fazem parte, ou por vezes inclusive perante a possibilidade de abastecer as classes privilegiadas dos seus próprios países a partir de firmas ou marcas estrangeiras "de prestígio". Três exemplos recentes chegados da China ilustram bem esta realidade: o primeiro deles refere-se à suspensão na terça-feira 22 de Janeiro de 2008 da cotação das acções do Bank of China (o segundo banco da China) na Bolsa de Shanghai quando este informou haver perdido uns US$8 mil milhões nos seus títulos ligados a empréstimos hipotecários norte-americanos de risco (subprimes). O segundo é a compra realizada por Aluminium Corp. of China (Chinalco) de uma participação na empresa de mineração anglo-australiana Rio Tinto por uma quantia próxima aos US$14 mil milhões(7). O terceiro exemplo é a recente "aquisição de luxo" por parte do grupo Longhai, da cidade de Quingado, na China, do vinhedo francês do Chateau Latour-Laguens. A empresa chinesa aproveitou a marca francesa para rebatizar "Latour-Laguens International Wine Co" o seu ramo importador de bebidas que vende aos novos ricos do seu mercado interno vinhos australianos, italianos e sul-africanos(8).
Estas burguesias são a antítese viva do que os optimistas do desligamento e da recomposição periférica do capitalismo possam imaginar como classes dirigentes medianamente estáveis e portadoras de projectos produtivos e comerciais autónomos ("nacionais") de longo prazo.
Para entender o que está ocorrendo é necessário reflectir acerca do período de "mais de 60 anos de duração" que nos propõe George Soros, ainda que não devesse ser visto como um único ciclo ascendente do crédito e sim, antes, como a sucessão de dois períodos, um ascendente entre o fim da Segunda Guerra Mundial (aproximadamente) e o final dos anos 1960 ou o princípio dos anos 1970 e outro descendente, desde esse ponto de inflexão até à actualidade.
A era dourada do mundo capitalista reconstituído com centro no império norte-americano e no dólar como moeda universal, baseada na intervenção económica do Estado, combinando conforme os casos keynesianismo civil e militar, talvez tenha dado os seus primeiros passos por volta de 1939 nos Estados Unidos. Nesse momento o keynesianismo militar conseguiu ali a decolagem que se transformou numa prolongada prosperidade que está a acabar agora. O início também pode ser localizado em finais dos anos 1940 quando os capitalismos recompostos da Europa Ocidental e do Japão incorporaram-se à onda norte-americana.
O dinamismo produtivo do sistema começou a decair globalmente no fim dos anos 1960, exprimindo-se a seguir como uma crise de super-produção crónica que se prolonga até hoje(9). Uma das manifestações mais evidentes foi o declínio no longo prazo da taxa de crescimento da economia mundial onde o papel negativo principal foi protagonizado pelos países de alto desenvolvimento. A economia global cresceu a uma taxa anual média de 4,9% entre 1950 e 1973, 3,4% entre 1974 e 1979, 3,3% na década de 1980 e 2,3% na de 1990. A década actual, que começou com um pequeno arrefecimento, continuou com a expansão-bolha da era Bush para concluir com uma recessão (ou estancamento) que anuncia ser prolongada. A desaceleração económica internacional engendrou uma via de escape às rentabilidades produtivas em baixa: a expansão financeira. Um bom exemplo disso é a contraposição entre a redução da taxa de crescimento da economia mundial e o crescimento veloz dos negócios com produtos financeiros derivados que entraram no período de especulação desenfreada nos princípios da década actual. Segundo o Banco da Basiléia, em meados do ano 2000 os derivados representavam aproximadamente o dobro do Produto Bruto Mundial, em meados de 2006 eram oito vezes superiores, e dez vezes um ano depois: somavam um US$510 milhões de milhões. Se a este número acrescentarmos o resto do empapelamento (acções, dívidas públicas, etc) estaríamos a aproximar-nos dos US$1000 milhões de milhões (20 vezes o Produto Mundial Bruto)...
Encontramo-nos agora no espaço de saturação da hipertrofia especulativa que talvez possa prolongar-se um pouco mais mas que, de maneira irresistível, vai entrando numa zona de múltiplas turbulências onde algumas bolhas desincham outras expandem-se rapidamente em meio a uma desordem financeira generalizada. Devemos ter presente que o que está a cambalear é o maior balão financeiro da história do capitalismo.
A primeira etapa da longa crise-decadência global iniciada há quase 40 anos concluiu-se quanto a expansão financeira esgotou o seu papel amortecedor para converter-se no seu contrário. Se antes era o pilar do consumismo e da sobrevivência concentradora das grandes empresas, agora constitui o centro da recessão.
O ponto de início do novo período costuma ser situado em 2007 quando explodiu a bolha imobiliária norte-americana, ainda que com uma visão mais ampla devêssemos localizá-lo em 2001 – o momento em que a ameaça de recessão foi "iludida" graças à louca fuga para a frente das piores tendências do sistema: militarismo, especulação, concentração de rendimentos, corrupção institucional. Esse facto sobre-determinou a marcha do mundo, não na direcção que pretendiam os falcões da Casa Branca (instalação do domínio imperial por muitas décadas) e sim em sentido oposto: acelerou-se a decadência. A princípio predominou uma aparência enganosa de prosperidade imposta pela maquinaria mediática ocidental, as economias desenvolvidas tinham altas taxas de crescimento, a China, a Índia e outros "países emergentes" expandiam como nunca suas estruturas capitalistas... mas a base do boom era uma especulação financeira sem peias e com uma esperança de vida muito limitada.
Para entender melhor o que agora se passa deve ser ampliado o espaço da crise financeira para dar lugar a "outras crises" que com ela convergem. Em primeiro lugar a crise energética que está a manifestar o fim da era do petróleo barato (o princípio do estancamento da extracção seguido a mais longo prazo do seu declínio) introduzindo um sólido bloqueio inflacionário às políticas anti-recessivas.
A referida crise deve ser incluída na bicentenária história do capitalismo industrial (baseado nos recursos energéticos não renováveis) cujo funcionamento expansivo teria sido impossível se não se tornasse independente dos limites e ritmos da reprodução dos recursos energéticos renováveis, embaratecendo e submetendo a sua dinâmica às novas fontes de energia que surgiam como reservas infinitamente grandes, sempre disponíveis. Isso foi possível graças a uma série de proezas tecnológicas, trágicas a longo prazo, que conformaram um mecanismo de depredação que não se podia prolongar indefinidamente.
A explosão da crise energética coloca agora o capitalismo diante de um beco sem saída, pelo menos a médio prazo, tempo mais que suficiente para que a desordem depressiva do sistema termine por produzir danos irreversíveis que impeçam sua recomposição sob condições civilizadas. Isto significa que a futura sobrevivência da civilização burguesa deve ser associada à ascensão de formas de barbárie jamais vistas antes. O paliativo dos biocombustíveis como substitutivo à escala planetária esclarece bem esta afirmação, com as suas sequelas de destruição do recurso agrícola básico – a terra cultivável – e o encarecimento dos alimentos com os quais compete na ocupação desse recurso.
Outra crise decisiva é a do centro do mundo: os Estados Unidos. O declínio do Império é não só económico ou institucional como também militar. Seu complexo industrial-militar, na cúspide do seu arranque económico e tecnológico, demonstra sua incompetência no terreno concreto da guerra, de maneira directa no Iraque e no Afeganistão e indirecta na recente invasão israelense do Líbano. Esta crise da tecnologia e do desperdício militar modernos pode ser focada como o mais recente degrau de uma sequência iniciada em fins do século XIX de militarização da ciência e da tecnologia, da concentração industrial no objectivo bélico, atravessando duas guerra mundiais quentes e uma fria até chegar à degradação actual.
O facto surpreendente é a convergência histórica de todas as crises assinaladas que surge como o encontro de vários ciclos de diferentes durações se pensarmos num ciclo dos recursos energéticos não renováveis (desde o carvão até o petróleo partindo do século XVIII) cujo ponto de inflexão para baixo coincide com pontos semelhantes nos outros ciclos, o financeiro e o militar-industrial, nascidos em fins do século XIX. Mas a reflexão simplifica-se quando visualizamos três ciclos paralelos partindo aproximadamente no mesmo momento se, no caso da energia, nos limitarmos ao do petróleo. Neste último caso podemos referir-nos a componentes de um só ciclo de algo mais de um século de antiguidade marcado pelo desenvolvimento cada vez mais rápido e intenso do parasitismo (principalmente financeiro e militar) e da degradação do eco-sistema.
Notas de rodapé:
(1) Joseph Stiglitz, "How to Stop the Downturn", The New York Times, January 23, 2008. (retornar ao texto)
(2) Segundo dois estudos recentes do Energy Watch Group o máximo da produção economicamente viável de carvão, se se mantiver o actual ritmo de extracção, ocorreria em torno do ano 2025 (Energy Watch Group, "Coal:Resources and Future Production", March 2007) e a do urânio dez anos depois (EnergyWatch Group, "Uranium Resources and Nuclear Energy", December 2006). Neste último caso, a partir desse primeiro máximo, os incrementos na produção (continuando o ritmo actual) poderiam prolongar-se mais três décadas mas com uma ascensão exponencial dos custos. (retornar ao texto)
(3) "Segundo as sua contas, tomando em consideração que neste momento estão a ser construídas, em qualquer das suas fases, cerca de 1,2 milhão de habitações em Espanha, e que a procura situa-se entre 300 e 400 mil unidades, o lógico é que esse stock de habitações não seja liquidado até que transcorram três anos. Carlos March, admitiu, durante a apresentação dos resultados do banco, que a situação é "preocupante" pelo que não será fácil recuperar níveis de actividade "aceitáveis". O representante de uma das fortunas – maiores e históricas – do país foi categórico em relação à actual crise, que vive na sua própria carne. Corporación Financiera Alba, o braço investidor cotado da família March, acumula uma queda na bolsa de 33% nos últimos oito meses". Cotizalia, 05-02-2008. (retornar ao texto)
(4) "Os preços dos imóveis na China crescem imparáveis situando-se acima dos 8% inter-anual, de nada serviram as medidas dispostas pelo governo do país para tentar deter a escalada de preços. O incremento de 8,2% converte-se em 10% nas cidades onde as especulação imobiliária é mais notória, e a tendência está a generalizar-se por todo o país. Aqueles que realmente estão a aproveitar-se desta situação são os bancos e entidades financeiras que concedem os créditos hipotecários. Tamanho é o auge das hipotecas que inclusive começou a popularizar-se uma expressão entre os cidadãos chineses: "escravos das hipotecas". Programa Inmobiliario, "Se infla la burbuja inmobiliaria en China" , 03-10-2007, http://www.programainmobiliario.tv/detalle.php?id=264 . (retornar ao texto)
(5) "No habrá recesión en Europa", adnmundo.com, 04-02-2008. (retornar ao texto)
(6) Segundo Soros nos encontraríamos perante "o fim de uma era de expansão do crédito fundada no dólar como moeda de reserva internacional... um boom que durou más de 60 anos (e que) permitiu aos Estados Unidos absorver a poupança do resto do mundo e consumir mais do que produzia". George Soros, "The worst market crisis in 60 years", The Financial Times, January 22 2008. (retornar ao texto)
(7) "Why Chinalco's Buying Into Rio Tinto", Business Week, February 5, 2008. (retornar ao texto)
(8) "Viñedos de Francia para los nuevos ricos de China", Clarin-iEco, Buenos Aires, 10de febrero de 2008. (retornar ao texto)
(9) Jorge Beinstein, "La larga crisis de la economía global", Corregidor, Buenos Aires, 2000. (retornar ao texto)