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Primeira Edição: O original encontra-se em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=5675
Fonte:Resistir.info - https://www.resistir.info/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Gradualmente o governo argentino vai-se desprendendo da máscara progressista e começa a mostrar o seu verdadeiro rosto mafioso. Uma sucessão de acontecimentos aparentemente sem ligação entre si assinala o arranque da nova etapa oficial. As denúncias póstumas do ex-ministro do Interior, Gustavo Beliz, davam pistas muito claras sobre as ligações entre o poder executivo e funcionários da Secretaria de Informações do Estado (SIDE) cuja trama remonta à última ditadura militar. A seguir precipitaram-se factos como a acusação de Arslanián (ministro da Segurança da província de Buenos Aires) acerca do apoio presidencial ao rebento neofascista encabeçado pelo empresário Blumberg ou a impunidade judicial estabelecida no caso AMIA (difícil de ser concretizada sem algum tipo de piscadela do poder). E a seguir uma cantata repressiva sincronizada com uma esmagadora campanha mediática concebida na Casa Rosada.
Isto faz parte de uma realidade mais ampla, que inclui o fracasso da operação transversal que pretendia dotar Kirchner de um movimento político próprio, e a sua consequência lógica: a recomposição da aliança com as camarilhas políticas tradicionais. Mas sobretudo o fim da débil recuperação da economia, atravessada pela lógica predadora do sistema que exige novas transferências de rendimentos para cima, o que requer em primeiro lugar a eliminação dos protestos sociais e a sua radicalização política. A desqualificação mediática dos piqueteiros e a mobilização fascista das classes altas são dois componentes imprescindíveis da estratégia repressiva em curso.
Trata-se de um momento decisivo para o governo, que deverá enfrentar uma oposição de esquerda cuja onda ascendente pode ser muito grande a médio prazo se a situarmos num contexto sócio-económico marcado pela extensão da miséria.
O aprofundamento deste modelo de ajuste perpétuo obriga o regime a jogar fora o lastro progressista. O preservativo rosado já cumpriu a sua tarefa principal. Foi muito útil para o restabelecimento da governabilidade, chegou a hora de lançá-lo ao caixote de lixo (o presidente preferiria fazê-lo em parcelas cómodas).
Em síntese: Kirchner, com um jogo próprio cada vez mais restrito, deve co-governar com camarilhas políticas repudiadas pelo grosso da população. E em articulação com tramas mafiosas que se estendem ao conjunto do sistema sob a monitoragem do FMI.
Esta mudança de imagem da era k não é senão um instante da longa marcha da decadência nacional, da qual emergem mutações – algumas de difícil visualização, que vão formando uma nova realidade social, impondo a sua presença para além da dinâmica confusa dos intermináveis imbróglios na superfície do pantanal.
Um observador perspicaz teria percebido nos princípios da década de 1940 que em nosso país estavam a ocorrer transformações destinadas a reflectir-se cedo ou tarde no cenário político. Um leque de novos grupos sociais associados à industrialização irrompia, ultrapassando a velha sociedade oligárquica: operários e burgueses industriais, camadas médias urbanas ascendentes superpunham-se, deslocavam ou combinavam-se com um conjunto não menos complexo proveniente da ascensão económica precedente com sinal agroexportador. Tratava-se de um processo de integração ao capitalismo local em crescimento. Agora encontramo-nos perante um fenómeno de sinal contrário iniciado há cerca de meio século com a Revolução Libertadora (1955), acelerado a partir de 1976 e que deu um salto decisivo no colapso de 2001.
O que se verificou aqui nos anos 40 conjugou-se a (e acabou por fazer parte de) um gigantesco movimento de regeneração e expansão da economia mundial que se prolongou durante várias décadas. Um dos seus traços distintivos foi a liderança estatal, tanto no Ocidente que se tornou keynesiano como na maior parte da periferia, desde o estatismo nacionalista burguês de Perón ou Nasser até o socialismo de Estado da URSS, Europa do Leste ou China. O mundo actual já é outro, após quase trinta anos de ascensão do parasitismo financeiro e de desaceleração produtiva global, com numerosos Estados periféricos entrados em colapso, o desaparecimento da União Soviética, a exclusão crescente de populações na áreas subdesenvolvidas. Atravessado pelo fracasso ideológico do neoliberalismo e pela irrupção de formas embrionárias de re-autonomização periférica.
Enquanto a nossa (lumpen)burguesia local sobrevive como mafia, é possível detectar alguns fenómenos que podem ajudar-nos a construir um quadro medianamente racional da situação do país. Dentre eles, parece-me importante assinalar cinco:
O peronismo foi convertido no principal sustentáculo do sistema, completamente esvaziado da sua velha mística, reduzido à sua raiz burguesa no pior sentido da expressão. Tornou-se refúgio de camarilhas cada vez mais afastadas do povo. O Dezembro de 2001 incluiu-os no lapidar que-se-vayan-todos. Kirchner, toscamente, tentou superar o problema fabricando a partir de cima uma espécie de renovação transversal (para além do Partido Justicialista que o engendrou) com náufragos da segunda linha do sistema político. Fracassou porque os restos humanos recrutados, sem base social significativa e aplicando a estratégia do FMI, limitaram-se a entoar melodias dos anos 70 e a reproduzir as práticas mafiosas dos seus velhos chefes. Uma vez concluída a modesta aventura do presidente voltaram ao palanque, Duhalde dando o seu visto bom à repressão anti-piqueteira e Alfonsín, como de costume, denunciando um futuro golpe de Estado de direita contra um governo também de direita.
Os politicólogos costumam chamar a isto crise de representatividade , mas é muito mais do que isso: trata-se da desintegração da política burguesa num processo de longo prazo, com idas e vindas, renovações frustradas, grandes vazios duradouros (fenómeno institucional profundo ligado ao declínio do Estado).
Conceito que inclui o fenómeno anterior, estendendo-se ao conjunto do regime (juizes, polícias, meios de comunicação, grandes empresários...); o sistema de poder é visto pelos de baixo como um conjunto de bandos de ladrões.
Trata-se da agudização do ocorrido a seguir a 1955, quando foi imposto um esquema político restringido (proscrição do peronismo) que gerou formas extra-institucionais de oposição popular (entre elas a luta armada contra ditaduras militares e governos civis de escassa representatividade). A brecha foi aparentemente fechada em 1983, mas a democracia elitista que se instaurou tornou-se parte do processo de concentração de rendimentos, degradação do Estado e do tecido produtivo, desnacionalização económica e desintegração social. O que desencadeou, nos princípios da década actual, o repúdio maciço dos mecanismo institucionais na sua forma colonial concreta, degradada.
A breve era progressista do governo K não conseguiu melhorar a situação. Ao contrário, seu fracasso e o desvendar do verdadeiro rosto (sinceramiento) mafioso aprofunda a ilegitimidade do poder, seu afastamento em relação ao grosso da população, ao mesmo tempo que relegitima as mais diversas formas de oposição, especialmente as que se colocam fora do sistema.
Após o fim do triunfalismo neoliberal (privatista, individualista, pró-norteamericano), a elitização social não encontra um discurso ideológico que a justifique. O neoliberalismo dos anos 90 prometia prosperidade para todos ainda com sacrifícios iniciais iniludíveis (Menem: "estamos mal mas vamos bem" ), o sistema actual, em que se acelera a desigualdade e a miséria de milhões de pessoas, carece de ilusões. Só lhe restam os repentes (exabrupto) neofascistas, a bofetada em defensa dos privilégios fundados na cultura do apartheid . Os meios de comunicação podem produzir golpes de efeitos eficazes, mas em pouco tempo perdem influência sob o peso da realidade. O caso Blumberg é ilustrativo, a campanha mediática a exigir mão dura contra o delito, amalgamando-o com a delinquência social e a partir daí com a rebeldia dos pobres, acabou por chocar-se contra factos evidentes como a associação entre crime organizado e mafia policial-judicial ou a trama delitiva entre políticos e empresários com êxito . Além disso, as classes altas mobilizadas (incluindo Blumberg) não podem evitar suas exaltações reaccionárias que afugentam numerosos seguidores. Finalmente, a cruzada surgiu como aquilo que realmente era: um ensaio de consenso social para o disciplinamento repressivo dos de baixo.
A instauração de uma cultura de apartheid , de segregação policial-judicial dos excluídos, que eventualmente poderia substituir o neoliberalismo como discurso legitimador do sistema, enfrenta problemas de solução difícil. O principal deles é a crise desarticuladora da velha integração social cuja dinâmica não se deteve ao empurrar crescentes sectores médios e baixos em direcção à oposição ao regime. Outro obstáculo não menos importante é o apodrecimento do Estado, a que é necessário acrescentar o caos gangsteril das elites económicas. Foi diferente a situação na Europa ocidental a seguir à crise dos anos 70, onde um amplo espectro de classes privilegiadas relativamente estáveis constituiu a base do neofascismo de apartheid contra trabalhadores provenientes da periferia e outros grupos reprimidos.
Ela surge desafiante, pela primeira vez após um longo ostracismo, com uma inserção cada vez mais extensa nos sectores submersos (até há pouco couto fechado do peronismo) e também a crescer em certos segmentos das camadas médias empobrecidas. A irrupção piqueteira foi até agora a sua expressão mais destacada, ganhando a rua e no centro dos conflitos sociais, deixando de lado as burocracias sindicais. Num primeiro momento o fenómeno foi subestimado, sobretudo pelos dirigentes peronistas que haviam congelado a velha imagem da esquerda marginal implantada na pequena burguesia. Mas também foi mal interpretado pelo progressismo que compartilhava os preconceitos peronistas aos quais acrescentava teorizações perversas acerca da inevitável fascistização do conjunto das classes médias arruinadas e outras previsões derrotistas no mesmo estilo. Para surpresa do establishment , a esquerda protagoniza o descontentamento popular e passa a constituir um autêntico facto maldito : não se institucionaliza como desejariam os manipuladores do sistema, despejando toda a sua energia numa interminável corrida desde o elementar até a sua banalização burguesa. Falta-lhe capacidade para institucionalizar-se porque emerge como um movimento de recusa ao capitalismo subdesenvolvido, realmente existente, e não com a pretensão historicamente impossível de integração no mesmo. É inepta para competir no terreno da politicagem do regime mas (recentemente) demonstrou sua habilidade para lançar raízes entre os de baixo através de uma multiplicação incessante de organizações, tendências e facções de todo tamanho e de orientações teóricas muito diversas. É a sua forma específica, plural, de crescer e consolidar-se. Por trás dessa aparência caótica vão-se gestando de maneira irregular embriões de articulação estratégica. Os partidos políticos tradicionais deveriam recordar a definição de Hipólito Irigoyen: "toda oficina de ferreiro assemelha-se a um mundo que entra em derrocada".
Componente essencial do sistema, super-endividado, dependente de superávites comerciais incertos baseados no achatamento das importações (ou seja, do mercado interno) e na obtenção de grandes superávites fiscais graças a fortes pressões tributárias directas ou indirectas contra as classes médias e baixas, desvalorizações, e sobretudo salários super-baixos e massas crescentes de excluídos. Com um contexto regional turbulento e fazendo parte de um império acossado pelos seus fracassos militares e económicos.
Com esse horizonte à vista, não é possível estabilizar o esquema de super-exploração imposto a partir de 2002, os pagamentos da dívida externa e os super-lucros das empresas privatizadas, dos bancos e dos grandes exportadores reduzem a zero a perspectiva de um crescimento durável e, em consequência, do bloqueio ou reversão da desintegração social. Isto torna ilusórios os projectos de governabilidade a longo prazo incluídos os de carácter elitista-autoritário porque todos eles carecem, entre outras coisas, de uma retaguarda económica minimamente estável, o que antecipa a reprodução ao infinito de lutas selvagens pela repartição do botim no interior das classes dominantes e o renascimento inevitável de rebeldias entre as massas submersas.
Em última instância, o futuro da decadência (ou seja, da continuidade do regime) depende do desenvolvimento do anti-sistema , da esquerda pensada como desenvolvimento insurgente, como catalisador de uma possível avalanche dos pobres. Essa eventualidade tira o sono ao poder, que oscila entre a dissuasão mais ou menos legal (judicialização e isolamento mediático das organizações populares) e a repressão selvagem. Sabendo que a ruptura cultural de Dezembro de 2001 está viva, que se reproduz (misteriosamente) e aguarda uma nova oportunidade para exprimir-se.
Isto conduz à reflexão sobre os caminhos da revolução necessária, da liquidação de um regime que não admite reformas, cujo nível de apodrecimento afasta qualquer ilusão de mudança a partir do interior da institucionalidade colonial.
Por enquanto o governo dedica-se a fazer repressão e a garantir a rapina, ainda que tentando reduzir ao máximo o custo político das suas decisões. Kirchner sabe (ou deveria saber) que a sua margem de manobra se vai esgotando. Se não endurecer a sua política tal como exigem o FMI, os grandes grupos económicos e a direita canibal será descartado pela mafia que o engendrou – ainda que se o fizer desencadeará o repúdio do povo, o que por sua vez o converterá um objecto imprestável no jogo das classes dominantes que nem por um instante terão dúvidas em lançá-lo às feras (o seu amigo Alfonsin pode contar-lhe experiências muito esclarecedoras). Um verdadeiro círculo vicioso.