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Primeira Edição: ....
Fonte:Resistir.info - https://www.resistir.info/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O fatalismo global abandona a sua máscara optimista neoliberal de outros tempos (que sobreviveu durante o período inicial da crise desencadeada em 2008) e vai assumindo um pessimismo não menos avassalador. No passado, os meios de comunicação explicavam-nos que nada era possível fazer diante de um planeta capitalista cada dia mais próspero (ainda que praguejado por crueldades), só nos restava a possibilidade de nos adaptarmos. Uma ruidosa massa de peritos asseverava as grandes orientações com argumentos científicos irrefutáveis (os críticos não se podiam fazer ouvidos frente à avalanche mediática). Isso foi chamado de discurso único, surgia como um formidável instrumentos ideológico e prometia acompanhar-nos durante vários séculos ainda que tenha durado umas poucas décadas e se tenha esfumado em menos de um lustro.
Agora a reprodução ideológica do sistema mundial de poder começa a chegar a um novo fatalismo profundamente pessimista baseado na afirmação de que a degradação social (estendida como resultado da "crise" ) é inevitável e prolongar-se-á durante muito tempo.
Tal como no caso anterior os meios de comunicação e sua corte de peritos explicam-nos que nada mais é possível fazer senão adaptar-nos (novamente) perante fenómenos universais inevitáveis. Tal como qualquer outra civilização, a actual em última instância controla os seus súbditos persuadindo-os acerca da presença de forças imensamente superiores às suas pequenas existências impondo a ordem (e o caos) perante as quais devem inclinar-se respeitosamente. O "mercado global", "Deus" ou outra potência de dimensão oceânica cumprem a referida função e seus sacerdotes, tecnocratas, generais, empresários ou dirigentes políticos não são senão executores ou intérpretes do destino, o que aliás legitima os seus luxos e abusos.
É assim que em Setembro de 2012 Olivier Blanchard, economista chefe do Fundo Monetário Internacional, anunciava que "a economia mundial precisará de pelo menos dez anos para sair da crise financeira que começou em 2008"(1). Segundo Blanchard, o resfriamento duradouros dos quatro motores da economia global (Estados Unidos, Japão, China e União Europeia) obriga-nos a afastar qualquer esperança numa recuperação geral a curto prazo. Ainda mais duro, em Agosto do mesmo ano o Banco Natixis, integrante de um grupo que assegura o financiamento de aproximadamente 20% da economia francesa, publicava um relatório intitulado "A crise da zona euro pode durar 20 anos"(2).
Encontramo-nos diante de um problema que as elites dominantes dificilmente podem resolver: a cultura moderna é filha do mito do progresso, repetidas vezes pode cativar os de baixo com a promessa de um futuro melhor neste mundo e ao alcance da mão, o que a diferencia de experiências históricas anteriores. As épocas de penúria são sempre descritas como provisórias, preparatórias de um grande salto rumo a tempos melhores. A reconversão da cultura dominante a um pessimismo de longa duração aceite pelas maiorias não parece viável, pelo menos é muito difícil realizá-la com êxito não só nos países ricos como também na periferia, sobretudo nas chamadas sociedades emergentes. Só populações radicalmente degradadas poderiam aceitar passivamente um futuro negro sem saída à vista, as elites imperialistas golpeadas, desestabilizadas pela decadência económica, sem projectos de integração social poderiam encontrar na degradação integral dos de baixo (os seus pobres internos e os povo periféricos) uma possível alternativa arriscada de sobrevivência sistémica.
O capitalismo como civilização entrou num período de declínio acelerado. Uma primeira aproximação ao tema mostra que nos encontramos perante o fracasso das tentativas de superação financeira da crise desencadeada em 2008, ainda que uma avaliação mais profunda nos levasse à conclusão de que o objectivo anunciado pelos governos dos países ricos (a recomposição da prosperidade económica) ocultava o verdadeiro objectivo: impedir o derrube da actividade financeira que fora a droga milagrosa das economias durante várias décadas. Desse ponto de vista, as estratégias aplicadas tiveram êxito: conseguiram adiar durante cerca de um lustro um desenlace que se aproximava velozmente quando desinchou a borbulha imobiliária norte-americana.
Uma visão mais ampla nos indicaria que o ocorrido em 2008 foi o resultado de um processo iniciado entre fins dos anos 1960 e princípios dos anos 1970, quando a maior crise económica da história do capitalismo não seguiu o caminho clássico (tal como o mostrado no século XIX e na primeira metade do século XX) com gigantescas quedas empresariais e uma rápida mega avalanche de desemprego nas potências centrais, e sim que foi controlada graças à utilização de poderosos instrumentos de intervenção estatal em combinação com reengenharias tecnológicas e financeiras dos grandes grupos económicos.
Essa resposta não permitiu superar as causas da crise, na realidade potenciou-as até níveis nunca antes alcançados, desencadeando uma onda planetária de parasitismo e de saqueio de recursos naturais que engendrou um estancamento produtivo global em torno da área imperial do mundo, impondo a contracção económica do sistema não como fenómeno passageiro e sim como tendência de longa duração.
Trata-se de um processo de decadência complexo. Basta repassar dados tais como o do volume da massa financeira equivalente a vinte vezes o Produto Mundial Bruto e seu pilar principal: o super endividamento público-privado nos países ricos que bloqueia a expansão do consumo e do investimento, o do declínio dos recursos energéticos tradicionais (sem substituição decisiva próxima) ou o da destruição ambiental. E também o da transformação das elites capitalistas numa teia de redes mafiosas que marcam o seu selo as estruturas de agressão militar, convertendo-as numa combinação de instrumentos formais (convencionais) e informais onde estes últimos vão predominando através de uma articulação inédita de bandos de mercenários e manipulações mediáticas de alcance global, "bombardeios humanitários" e outras acções inscritas em estratégias de desestabilização integral que apontam para a desestruturação de vastas zonas periféricas. Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria... México ilustram o futuro burguês das nações pobres.
A área imperial do sistema degrada-se e, ao mesmo tempo, tenta degradar, tornar caótico o resto do mundo quando pretende controlá-lo, super-explorá-lo. É a lógica da morte convertida em pulsão central do capitalismo tornado senil e estendendo seu manto tanático (sua cultura final) que é, em ultima instância, auto-destruição, ainda que pretenda ser uma constelação de estratégias de sobrevivência.
Cada passo das potências centrais rumo à superação da sua crise é na realidade um novo empurrão rumo ao abismo. Os subsídios concedidos aos grupos financeiros avultaram as dívidas públicas em conseguir a recomposição durável da economia e quando a seguir tentam travar o referido endividamento restringindo gastos estatais ao mesmo tempo que esmagam salários com o objectivo de melhorar os lucros dos empresários agravam o estancamento convertendo-o em recessão, deterioram as fontes dos recursos fiscais e eternizam o peso das dívidas. Frente ao desastre impulsionado pelas máfias financeiras levanta-se um coro variegado de neoliberais moderados, semi-keynesianos, regulacionistas e outros grupos que exigem a suavização dos ajustes e o estímulo ao investimento e ao consumo... ou seja, continuar a inchar as dívidas públicas e privadas... até que se recomponha um suposto círculo virtuoso de crescimento (e de endividamento) encarregado de pagar as dívidas e restabelecer a prosperidade... ao que os tecnocratas duros (sobretudo na Europa) respondem que os estados, as empresas e os consumidores estão saturados de dívidas e que o velho caminho da exuberância monetário-consumista deixou de ser transitável. Ambos os lados têm razão porque nem os ajustes nem as repartições de fundos são viáveis a médio praxo, na realidade o sistema é inviável.
As agressões imperiais quando conseguem derrotar os seus "inimigos" não conseguem instalar sistemas coloniais ou semi-coloniais estáveis como no passado e sim engendrar espaços caóticos. Assim é porque a economia mundial em declive não permite integrar as novas zonas periféricas submetidas, os espaços conquistados não são absorvidos por negócios produtivos ou comerciais medianamente estáveis da metrópole e sim saqueados por grupos mafiosos e por vezes simplesmente empurrados para a decomposição. Enquanto isso os gastos militares e paramilitares dos Estados Unidos, o centro hegemónico do capitalismo, incrementam o seu défice fiscal e as suas dívidas.
Fica assim a descoberto um aspecto essencial do imperialismo do século XXI em mutação rumo a uma dinâmica de desintegração geral de alcance planetário. Isto é advertido não só por alguns partidários do anti-capitalismo como também, desde há algum tempo, por um número crescente de "prestigiosos" (mediáticos) defensores do sistema como o guru financeiro Nouriel Roubini quando proclamava em meados de 2011 que o capitalismo havia entrado num período de auto-destruição(3).
É um lugar comum a afirmação de que o capitalismo não ruirá por si só e sim que é necessário derrubá-lo. Em consequência, aqueles que assinalam a tendência para a auto-destruição do sistema são acusados de ignorar suas fortalezas e sobretudo de fomentar a passividade ou as ilusões acerca de possíveis " vitórias fáceis" que desarmam, distraem os que lutam por um mundo melhor.
Na realidade, ignorar ou subestimar o carácter autodestrutivo do capitalismo global do século XXI significa desconhecer ou subestimar fenómenos que sobredeterminam seu funcionamento, como a hegemonia do parasitismo financeiro, a catástrofe ecológica em curso, o declínio dos recursos naturais especialmente os energéticos catalisado pela dinâmica tecnológica dominante, a incapacidade da economia mundial para continuar a crescer, o que a leva a acelerar a concentração de riquezas e a marginalização de milhares de milhões de seres humanos que "estão a mais" do ponto de vista da reprodução do sistema. Em suma a entrada numa era marcada pela reprodução ampliada negativa das forças produtivas da civilização burguesa, ameaçando a longo prazo a sobrevivência da maior parte da espécie humana.
Presenciamos então uma subestimação de aparência voluntarista que oculta a devastadora radicalidade da decadência e, em consequência, a necessidade da irrupção de um voluntarismo insurgente (anti-capitalista) capaz de impedir que o derrube nos sepulte a todos. Dito de outra maneira, não nos encontramos diante de uma "crise cíclica" com alternativas de recomposição de uma nova prosperidade burguesa, ainda que seja elitista, e sim diante de um processo de degeneração sistémica total.
A história das civilizações recorda-nos numerosos casos (a começar pelo do Império Romano) em que a hegemonia civilizacional que conseguia reproduzir-se em meio a decadência anulava as tentativas superadoras engendrando decomposições que incluíam vítimas e verdugos.
A contra-revolução ideológica que dominou o pós guerra fria cunhou uma espécie de marxismo conservador que caricaturou a teoria da crise de Marx reduzindo-a a uma sucessão infinita de "crises cíclicas" das quais o capitalismo sempre conseguia sair graças à exploração dos trabalhadores e da periferia. O ogre era denunciado, ficando demonstrado uma vez mais quem era o vilão do filme.
Mas a história não se repete. Nenhuma crise cíclica mundial se parece com outra e todas elas, para serem realmente entendidas, devem ser incluídas no percurso temporal do capitalismo, no seu grande e único super-ciclo. É o que nos permite, por exemplo, distinguir as crises cíclicas de crescimento, juvenis do século XIX, das crises senis de finais do século XX e do século XXI.
Por outro lado, é necessário descartar a ideia superficial de que a auto-destruição do sistema equivale ao suicídio histórico isolado das elites globais libertando automaticamente das suas cadeias o resto do mundo, o qual um bom dia descobre que o amo morreu e então dá largas à sua criatividade. É o mundo burguês na sua totalidade o que iniciou a sua auto-destruição e não só as suas elites. É toda uma civilização com suas hierarquias e mecanismos de reprodução simbólica, produtiva, etc que chega ao seu teto histórico e começa a contrair-se, a desordenar-se pretendendo arrastar todos os seus integrantes, centro e periferia, privilegiados e marginais, opressores e oprimidos... O naufrágio inclui todos os passageiros do navio.
A auto-destruição surge como o culminar da decadência e abrange o conjunto da civilização burguesa não como um fenómeno "estrutural" e sim como totalidade histórica com todas as suas tendências às costas: culturais, militares, produtivas, institucionais, religiosas, tecnológicas, morais, científicas, etc. Trata-se da etapa descendente de um prolongado processo civilizacional com um auge de pouco mais de duzentos anos, antecedido por uma prolongada etapa preparatória e que chegou a assumir uma dimensão planetária.
Decadência geral, muito mais que "crise" (as crises que se vão sucedendo aparecem como turbulências, sacudidelas no percurso da enfermidade), o fenómeno inclui as duas configurações básicas do sistema: a central (imperialista, "desenvolvida", rica) e a periférica ("subdesenvolvida", globalmente pobre, "emergente" ou submersa, com suas áreas de prosperidade dependente e de miséria extrema).
Os primeiros anos posteriores à ruptura de 2008 mostram o começo do fim da prosperidade das economias dominantes, ao passo que um bom número de países periféricos continuavam a crescer – sobretudo a China em torno da qual teceram-se ilusões acerca de uma recomposição mundial do capitalismo a partir do subdesenvolvimento convertido em avalanche industrial-exportadora. Mas a expansão da economia chinesa dependia do poder de compra dos seus principais clientes: os Estados Unidos, Japão e a União Europeia. Como já se pôde ver em 2012, o desinchar desses compradores desincha o engendro industrial exportador da periferia (o negócio da super-exploração da mão-de-obra barata chinesa encontra limites significativos). Em síntese: não há nenhuma desconexão capitalista possível do declínio mundial do sistema.
A decadência é, antes de mais nada, decadência ocidental, degradação do centro imperialista. Desde fins do século XVIII, quando se iniciou a ascensão industrial, até os primeiros anos do século XIX, o capitalismo esteve marcado pela dominação inglesa-norte-americana. A Inglaterra no século XIX e os Estados Unidos na maior parte do século XX cumpriram a função reguladora do conjunto do sistema, impondo a hegemonia ocidental e ao mesmo tempo subordinando os rivais que apareciam no interior do Ocidente. A França foi deslocada nos princípios do século XIX e a Alemanha na primeira metade do século XX.
A marca ocidental do capitalismo é dada não só por factores económicos e militares como também por um conjunto mais vasto de aspectos decisivos do sistema (estilo de consumo, arte, ciência, perfis tecnológicos, concepções políticas, etc). O que agora é visto como despolarização ou fim da unipolaridade, ou seja, como perda de peso do imperialismo norte-americano (paralelo ao declínio europeu) sem substitutivo à vista. Ela exprime a desarticulação do capitalismo enquanto sistema global que deve ser entendida não só como desestruturação política e militar como também cultural no sentido amplo do conceito. É a história de uma civilização que entra no ocaso.
Dito de outra maneira, a reprodução ampliada universal mas não ocidentalista do capitalismo é uma ilusão sem base histórica, sem embriões visíveis reais no presente. Recordemos o fiasco do chamado milagre japonês dos anos 1960-1970-1980 e os prognósticos dessa época acerca do "Japão primeira potência mundial do século XXI" seguidos até há pouco por especulações não menos fantasiosas sobre a iminente ascensão chinesa à categoria de primeira potência capitalista do planeta.
É possível assinalar fenómenos que assinalam o declínio sistémico. Um deles é o da hipertrofia financeira que, como sabemos, foi-se expandindo enquanto desciam as taxas de crescimento do Produto Mundial Bruto a partir dos anos 1970. Quando estalou a crise de 2008 a massa financeira global equivalia aproximadamente a umas vinte vezes do PMB. Sua coluna vertebral visível, os produtos financeiros derivados registados pelo Banco da Basileia em Junho de 2008 representavam 11,7 o PMB (contra 2,5 vezes em Junho de 1998, 3,9 vezes em Junho de 2002, 5,5 vezes em Junho de 2004, 7,8 vezes em Junho de 2006). Mas desde meados de 2008 essa massa deixou de crescer tanto na sua relação com o PMB como em termos absolutos. Havia chegado nesse momento a uns 683 milhões de milhões de dólares nominais, alcançou os 703 milhões de milhões em Junho de 2011 baixando para 647 milhões de milhões em Dezembro de 2011(4).
Encontramo-nos agora diante de um fenómeno de esgotamento financeiro. No passado (posterior aos anos 1970) a expansão das dívidas dos estados, das empresas e dos consumidores permitiu o crescimento das economias dos países ricos mas o endividamento foi chegando ao limite enquanto eram saturados mercados importantes (como os do automóvel e outros bens duradouros). Dívidas, consumos tradicionais e parasitários, redes comerciais, etc em torno dos quais eram inchadas as actividades especulativas alcançaram sua fronteira em 2007-2008. A droga havia terminado por esgotar a dinâmica capitalista e, ao decaírem, os clientes estancaram os negócios dos dealers, ou seja, do espaço hegemónico do sistema.
O capitalismo financiarizado, resultado de uma prolongada crise de super-produção potencial controlada mas não resolvida, parasita cada dia mais voraz, finalmente esgotou a sua vítima e ao fazê-lo bloqueou a sua própria expansão.
Visto de outro modo, a reprodução ampliada do capitalismo ao atravessar com êxito uma longa sucessão de crises de super-produção deu finalmente asas ao filho de um dos seus pais fundadores: as finanças. Fê-lo para sobreviver, porque sem essa droga não teria podido sair do atoleiro dos anos 1970-1980. Iniciado o caminho, ficou aprisionado para sempre. Quanto mais difícil era o crescimento mais droga necessitava o viciado e, depois de cada breve onda de prosperidade económica global (sua euforia efémera) chegava o estado depressivo que exigia mais droga. As taxas de crescimento ziguezagueavam em torno de uma linha com tendência declinante e a massa financeira mundial expandia-se em progressão geométrica. A festa terminou em 2008.
Outro fenómeno importante é o do bloqueio energético. O capitalismo industrial pôde alçar voo em finais do século XVIII porque a Europa imperial acrescentou à exploração colonial e à desestruturação do seu universo rural (que lhe proporcionou mão-de-obra abundante e barata) um processo de emancipação produtiva em relação às limitadas e caras fontes de energia convencionais como as correntes dos rios que permitiam o funcionamento dos moinhos, a madeira das florestas e a energia animal. A solução foi o carvão mineral e em torno do mesmo a ampliação sem precedentes da exploração mineira. Seu pólo dinâmico foi o capitalismo inglês.
A depredação crescente de recursos naturais atravessou todos os modelos tecnológicos do capitalismo e, se considerarmos a totalidade do ciclo industrial (entre fins do século XVIII e a actualidade), poderíamos referir-nos ao sistema tecnológico da civilização burguesa baseado na dissociação cultural entre o homem e a "natureza" – assumindo esta última como universo hostil, objecto de conquista e pilhagem.
O auge do carvão mineral do século XIX foi sucedido pelo do petróleo no século XX e nos princípios do século XXI fora esgotada aproximadamente a metade da reserva original desse recurso. Isso significa que já não encontramos na zona qualificada como pico, ou nível máximo possível de extracção petrolífera a partir do qual estende-se um inevitável declínio extractivo. Desde meados da década passada deixou de crescer a extracção de petróleo bruto.
Supondo que existam substitutivos energéticos viáveis em grande escala e a longo prazo quando aceitamos as promessas tecnológicas do sistema (para um futuro incerto) e os introduzimos no mundo real com seus ritmos de reprodução concretos a médio e longo prazo, encontramo-nos diante de um bloqueio energético insuperável. Se pensarmos no que resta da década actual comprovaremos que não aparecem substitutivos energéticos capazes de compensar o declínio petrolífero.
Dito de outro modo, o preço do petróleo tende a subir e a especulação financeira em torno do produto pressiona-o ainda mais para cima. Além disso, alguma vez aventura militar ocidental, como por exemplo um ataque israelense-estado-unidense contra o Irão e o consequente encerramento do estreito de Ormuz, levariam o preço às nuvens. Tudo isso significa que os custos energéticos da economia converteram-se num factor decisivo limitativo da sua expansão e num cenário turbulento causariam uma contracção catastrófica das actividades económicas a nível global.
Não se trata só do petróleo e sim de um amplo leque de recursos minerais que se encontram no pico da sua exploração, próximo do mesmo ou já na fase de extracção em declínio(5) afectando a indústria e a agricultura. Exemplo: o declínio da produção mundial de fosfatos, componente essencial da produção de alimentos, desde há pouco mais de duas décadas(6).
Passamos então do tema do bloqueio energético a outro mais amplo, o do bloqueio dos recursos minerais em geral e daí ao do sistema tecnológico da civilização burguesa que o engendrou. No referido sistema temos de incluir suas matérias-primas básicas, seus procedimentos produtivos e seu apoio técnico-científico, sua dinâmica e estilo de consumo civil e de guerra, etc, ou seja, do capitalismo como civilização.
Assistimos agora à busca vertiginosa de "substitutivos" energéticos, de diversos minerais, etc, destinados a continuar a alimentar uma estrutura social decadente cuja dinâmica de reprodução nos diz que mais da metade da humanidade "está a mais" e que em consequência a "civilização" traçou um caminho futuro assinalado por uma sucessão de mega genocídios.
Mas a decadência leva-nos a pensar que todos esses "recursos necessários" para o sustento de sociedades e elites parasitárias não são necessários em outro tipo de civilização ou pelo menos são-no em volumes muito mais reduzidos. Não estão a mais os pobres e excluídos do planeta, está a mais o capitalismo com seus objectos de consumo luxuoso, seus sistema militares, seu desperdício obsceno.
É possível descreve o trajecto de algo mais de quatro décadas que conduziu à situação actual. No começo, entre aproximadamente 1968 e 1973, encontrámo-nos perante uma grande crise de super-produção nos países centrais. Como já assinalei, esta não derivou num derrube generalizado de empresas nem numa avalanche de desemprego no estilo "clássico" e sim num complexo processo de controle da crise que incluiu instrumentos de intervenção pública destinados a sustentar a procura, a liberalização dos mercados financeiros, esforços tecnológicos e comerciais das grandes empresas. E também a ampliação do espaço do sistema, integrando por exemplo a ex União Soviética como fornecedora de gás e petróleo e a China como fornecedora de mão-de-obra industrial barata.
As mudanças não se verificaram de maneira instantânea e sim gradualmente em resposta às sucessivas conjunturas, mas finalmente converteram-se num novo modelo de gestão do sistema chamado neoliberalismo. Este gira em torno de três orientações decisivas marcadas pelo parasitismo: a financiarização da economia, a militarização e o saqueio desenfreado de recursos naturais.
O processo de financiarização concentrou capitais parasitando sobre a produção e o consumo, a incorporação de centenas de milhões de operários chineses e de outras zonas periféricas e o saqueio de recursos naturais permitiu baixar custos, desacelerar a queda dos lucros industriais.
O resultado visível ao principiar o século XXI foi o afogamento financeiro do sistema, a degradação ambiental e o começo do declínio da exploração de numerosos recursos naturais, tanto os não renováveis como os renováveis (ao serem rompidos seus ciclos de reprodução).
Finalmente, a crise de super-produção controlada engendra uma crise prolongada de sub-produção que agora está a dar os seus primeiros passos. O sistema encontra "barreiras físicas" para a reprodução ampliada das suas forças produtivas, os recurso naturais declinam, não se trata de "fronteiras exógenas", de bloqueios causados por forças sobre-humanas e sim de auto-bloqueios, dos efeitos da actividade produtiva do capitalismo, prisioneiro de um sistema tecnológico muito dinâmico baseado na exploração selvagem da natureza e na expansão acelerada das massas proletárias do planeta (povoações miseráveis da periferia, operários pobres, camponeses submersos, marginais de todo tipo, etc).
Assistimos então ao paradoxo de indústrias como a automobilística com altos níveis de capacidade produtiva ociosa. Se por alguma magia dos mercados essas empresas chegassem a encontrar procuras adicionais significativas verificar-se-iam saltos espectaculares nos preços de uma ampla variedade de matérias-primas, como o petróleo por exemplo, que anulariam as referidas procuras.
Não estamos a passar do crescimento ao estancamento. Este último não é senão o trânsito rumo à contracção, mais ou menos rápida, mais ou menos caótica do sistema, rumo à reprodução ampliada negativa das forças produtivas ao ritmo da concentração de capitais, da marginalização social e do esgotamento dos recursos naturais. Não tem de ser um processo de declínio inexorável da espécie humana, trata-se da decadência de uma civilização, dos seus sistema produtivos e perfis de consumo.
Deste processo faz parte a mutação do núcleo dirigente do capitalismo mundial num conglomerado de redes parasitárias mafiosas. Uma de suas características psicológicas é o encurtamento temporal de expectativas, curto-prazismo que juntamente com outras perturbações leva-a a uma crescente crise de percepção da realidade. O negócio financeiro, enquanto cultura hegemónica do mundo empresarial, o gigantismo tecnológico (especialmente no capítulo militar), a super concentração económica e outros factores convergentes impulsionam esta desconexão psicológica libertando uma ampla variedade de projectos irracionais que servem como apoio de políticas económicas, sociais, comunicacionais, militares, etc (o corpo parasitário engorda e a mente racional do obeso contrai-se). A elite global dominante (imperialista) vai-se convertendo num sujeito extremamente perigoso obstinado com o emprego salvador do que considera o seu instrumento imbatível: o aparelho militar (ainda que experiências concretas como no passado a sua derrota no Vietname e actualmente o atolamento no Afeganistão demonstrem o contrário).
É possível abordar a história da civilização burguesa, sua gestação, ascensão e decadência, a partir de três visões de longo prazo.
A primeira delas enfoca uma trajectória de aproximadamente quinhentos anos. Arranca entre fins do século XV e princípios do século XVI europeu com a conquista da América e a pilhagem das suas riquezas gerando uma efusão de ouro e prata sobre as sociedades imperiais europeias e impulsionando a sua expansão económica e transformação burguesa.
A seguir ao primeiro enfartamento (século XVI) chegou o tempo da digestão e da desestruturação dos bloqueios pré-capitalistas e da emergência de embriões sólidos do estado e da ciência modernos, bem como de núcleos capitalistas emergentes, tudo isso exprimido como a "longa crise do século XVI".
Ao começar o século XVIII essas sociedades já estavam culturalmente preparadas para a grande aventura capitalista. Seu arranque foi assinalado por uma crise de média duração entre fins do século XVIII e começos do século XIX marcado pela revolução industrial inglesa, pela revolução francesa e pelas guerras napoleónicas. Foi atravessando todo o século XIX ao ritmo das expansões coloniais e neocoloniais e das transformações industriais e políticas.
Cerca de 1900 o capitalismo, com centro no Ocidente, havia estabelecido o seu sistema imperial a nível planetário. Até chegar à primeira guerra mundial que assinala o fim da juventude do sistema e o início da uma nova crise de média duração entre 1914 e 1945, ponto de inflexão entre a etapa juvenil ascendente e uma era de turbulências que começam a mostrar os limites históricos de um sistema que dispõe de recursos (financeiros, tecnológicos, naturais, demográficos, militares) para prolongar a sua existência em meio a ameaças como a aparição da União Soviética e a seguir a revolução chinesa, etc.
E depois de uma recomposição que traz a prosperidade a um capitalismo amputado, acossado (entre fins dos anos 1940 e fins dos anos 1960) o sistema entra numa crise longa (que consegue apanhar os grandes ensaios proto-socialistas: a URSS e a China) que se prolonga até o presente. Esta última etapa, que já dura mais de quatro décadas, caracteriza-se pela descida gradual ziguezagueaste e persistente das taxas globais de crescimento económico sobredeterminado pela desaceleração das economias imperialistas (em primeiro lugar os Estados Unidos) e pelo incremento das mais diversas formas de parasitismo (principalmente o financeiro).
Nesta etapa é possível distinguir um primeiro período entre 1968-1973 e 2007-2008 de desaceleração relativamente lenta, de perda gradual de dinamismo, e um segundo período (no qual nos encontramos) de esgotamento do crescimento apontado à contracção geral do sistema.
Em síntese: a partir do primeiro impulso colonial com êxito (no século XVI, o anterior das Cruzadas havia fracassado) é possível fazer girar a história da civilização burguesa em torno de quatro grandes crise; a longa crise do século XVII vista como etapa preparatória do grande salto, a crise média duração de nascimento do capitalismo industrial (fins do século XVIII – princípios do XIX), uma segunda crise de média duração (1914-1945) seguida por uma prosperidade de aproximadamente um quarto de século e finalmente uma nova crise de longa duração (que se inicia nos fins dos anos 1960) de decadência do sistema, suave primeiro e acelerada desde fins da primeira década do século XXI.
Um segundo enfoque, restrito a pouco mais de duzentos anos, arranca com a revolução industrial inglesa, a Revolução Francesa, a independência dos Estados Unidos, as guerras napoleónicas e outros acontecimentos que assinalam o início do capitalismo industrial, consolidando-se numa longa etapa juvenil do sistema abrangendo a maior parte do século XIX. As turbulências são curtas, as crises de super-produção seguindo o modelo desenvolvido por Marx são "crises de crescimento" do sistema que vão acumulando feridas, deformações, problemas que acabam por provocar o grande desastre de 1914. Karl Polanyi refere-se ao papel da cúpula financeira europeia na manutenção de equilíbrios económicos e políticos, nessa elite está a base da futura hipertrofia financeira dos finais do século XX(7).
A seguir à etapa juvenil desenvolve-se um período de maturidade assinalado por guerras, fortes depressões uma prosperidade de média duração (1945-1970).
Com a crise dos anos 1970, o fim do padrão dólar, a derrota norte-americana no Vietname, a estagflação e os choques petrolíferos, etc, o capitalismo entra na sua velhice que deriva em senilidade. O conceito de "capitalismo senil" foi introduzido por Roger Dangeville nos fins dos anos 1970 assinalando que a partir desse momento o sistema tornava-se senil(8), desagregava-se, perdia o rumo. Na realidade, a senilidade do sistema torna-se evidente três décadas depois, a partir da explosão financeira-energética-alimentar de 2008 quando se acelera a queda do crescimento até nos aproximarmos agora de crescimentos iguais a zero ou negativos no conjunto da zona central do capitalismo e quando o motor financeiro parou apontando para a queda.
Um terceiro enfoque, de desagregação do superciclo em "ciclos parciais", permite pormenorizar fenómenos decisivos da história do sistema. É necessário limitar os aspectos de autonomia desses "ciclos" fazendo-os interactuar entre si e referindo-os sempre à totalidade sistémica.
O crepúsculo do sistema arranca com as turbulências de 2007-2008, a multiplicidade de "crises" que estalaram nesse período (financeira, produtiva, alimentar, energética) convergiu com outras como a ambiental ou a do Complexo Industrial-Militar do Império atolado nas guerras asiáticas.
O cancro financeiro irrompeu triunfal entre fins do século XIX e princípios do século XX e obteve o controle absoluto do sistema sete ou oito décadas depois, mas o seus desenvolvimento havia começado muito tempos antes (vários séculos) financiando estados imperiais onde se expandiam as burocracia civis e militares ao ritmo das aventuras coloniais-comerciais e a seguir também em negócios industriais cada vez mais concentrados. A hegemonia da ideologia do progresso e do discurso produtivista serviu para ocultar o fenómeno, instalou a ideia de que o capitalismo, ao contrário das civilizações anteriores, não acumulava parasitismo e sim forças produtivas que ao se expandirem criavam problemas de adaptação superáveis no interior do sistema mundial, resolvidos através de processo de "destruição-criadora".
Pela sua parte, o militarismo moderno afunda as suas raízes mais fortes no século XIX ocidental, desde as guerras napoleónicas, chegando à guerra franco-prussiana até irromper na Primeira Guerra Mundial como "Complexo Militar-Industrial" (ainda que seja possível encontrar antecedentes importantes no Ocidente nas primeiras indústrias de armamentos de tipo moderno aproximadamente a partir do século XVI). Foi percebido a princípio como um instrumento privilegiado das estratégias imperialistas e mais adiante como reactivador económico do capitalismo. Só se viam certos aspectos do problema mas ignorava-se ou subestimava-se sua profunda natureza parasitária, o facto de que por trás do monstro militar ao serviço da reprodução do sistema ocultava-se um monstro muito mais poderoso: o do consumo improdutivo, causador de défices públicos que não incentivam a expansão e sim o estancamento ou a contracção da economia.
Actualmente, o Complexo Militar-Industrial norte-americano (em torno do qual reproduzem-se os dos seus sócios da NATO) gasta em termos reais mais de um milhão de milhões de dólares por ano, contribui de maneira crescente para o défice fiscal e em consequência para o endividamento do Império (e para a prosperidade dos negócios financeiros beneficiários do referido défice). Sua eficácia militar é declinante mas a sua burocracia é cada vez maior, a corrupção penetrou em todas as suas actividades, já não é o grande gerador de empregos como em outras épocas, o desenvolvimento da tecnologia industrial-militar reduziu significativamente essa função. A época do keynesianismo militar como estratégia anti-crise eficaz pertence ao passado.
Presenciamos actualmente nos Estados Unidos à integração de negócios entre a esfera industrial-militar, as redes financeiras, as grandes empresas energéticas, as camarilhas mafiosas, as "empresas" de segurança e outras actividades muito dinâmicas que formam o espaço dominante do sistema de poder imperial. A história das decadências de civilizações, a do Império Romano por exemplo, mostram que já começado o declínio geral e durante um longo período posterior a estrutura militar continua a expandir-se sustendo tentativas desesperadas e inúteis de preservação do sistema.
Em consequência a decadência geral e a exacerbação da agressividade militarista do Império poderiam chegar a ser perfeitamente compatíveis, donde se deriva a conclusão de que ao cenário previsível de desintegração mais ou menos caótica da super-potência deveríamos acrescentar outro cenário não menos previsível de declínio sanguinário, belicoso.
Tão pouco a crise energética em torno da chegada do "Peak Oil" [ http://resistir.info/jf/centralidade_ignorada.html ] deveria ser restrita à história das últimas décadas. É necessário entendê-la como fase declinante do longo ciclo da exploração moderna dos recursos naturais não renováveis. Esse ciclo energético de dois séculos condicionou todo o desenvolvimento tecnológico do sistema e exprimiu-o, foi a vanguarda da dinâmica depredadora do capitalismo estendida ao conjunto dos recursos naturais e do ecosistema em geral.
Aquilo que durante quase dois séculos foi considerado como uma das grandes proezas da civilização burguesa, a sua aventura industrial e tecnológica, aparece agora como a mãe de todos os desastres, como uma expansão depredadora que põe em perigo a sobrevivência da espécie humana.
Em síntese, o desenvolvimento da civilização burguesa durante os últimos dois séculos (com raízes num passado ocidental muito mais prolongado) acabou por engendrar um processo irreversível de decadência, a depredação ambiental e a expansão parasitária estão na base do fenómeno.
Existe uma inter-relação dialéctica perversa entre a expansão da massa global de lucros, sua velocidade crescente, a multiplicação das estruturas burocráticas civis e militares de controle social, a concentração mundial de rendimentos, a ascensão da maré parasitária e a depredação do ecosistema.
As revoluções tecnológicas do capitalismo aparentemente foram as suas tábuas de salvação. Assim aconteceu durante muito tempo incrementando a produtividade industrial e agrária, melhorando as comunicações e os transportes, mas o longo prazo histórico, no balanço de vários séculos constituem sua armadilha mortal, acabaram por degradar o desenvolvimento que impulsionaram por estarem estruturalmente baseadas na depredação ambiental, ao gerar um crescimento exponencial de massas humanas super-exploradas e marginalizadas.
O progresso técnico integra assim o processo de auto-destruição geral do capitalismo (é sua coluna vertebral) na rota em direcção a um horizonte de barbárie. Não se trata da incapacidade do actual sistema tecnológico para continuar a desenvolver forças produtivas e sim da sua alta capacidade enquanto instrumento de destruição líquida de forças produtivas. Confirma-se assim o sombrio prognóstico formulado por Marx e Engels em pleno auge juvenil do capitalismo:
"Dado um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas, surgem forças de produção e de meios de comunicação tais que, nas condições existentes só provocam catástrofes, já não são mais forças de produção e sim de destruição"(9).
Finalmente, o ciclo histórico iniciado em fins do século XVIII contou com dois grandes articuladores hoje em declínio: a dominação imperialista anglo-norte-americana (etapa inglesa no século XIX e norte-americana no século XX) e o ciclo do estado burguês desde a sua etapa "liberal industrial" no século XX, passando pela sua etapa intervencionista produtiva (keynesiana clássica) em boa parte do século XX para chegar à sua degradação "neoliberal" a partir dos anos 1970-1980.
Capitalismo mundial, imperialismo e predomínio anglo-norte-americano constituem um só fenómeno. Uma primeira conclusão é que a articulação sistémica do capitalismo surge historicamente indissociável do articulador imperial (história imperialista do capitalismo). Uma segunda conclusão é que ao tornar-se cada vez mais evidente que no futuro previsível não surge nenhum novo articulador imperial ascendente à escala global, então desaparece do futuro uma peça decisiva da reprodução capitalista global – a menos que suponhamos o surgimento de uma espécie de mão invisível universal (e burguesa) capaz de impor a ordem (monetária, comercial, político-militar, etc). Nesse caso estaríamos a extrapolar ao nível da humanidade futura a referência à mão invisível (realmente inexistente) do mercado capitalista apregoada pela teoria económica liberal.
O declínio imperial do Ocidente inclui o do seu suporte estatal abrangendo uma primeira etapa (neoliberalismo) marcada pelo endividamento público, a submissão do estado aos grupos financeiros, a concentração de rendimentos, a elitização e perda de representatividade dos sistemas políticos e uma segunda etapa de saturação do endividamento público, arrefecimento económico e crise de legitimidade do estado.
O colonialismo-imperialismo e o estado moderno, em termos históricos, foram pilares essenciais da construção da civilização burguesa. Sobre os antecedentes coloniais do capitalismo não há muito mais a acrescentar. Quanto à relação estado-burguesia é evidente sobretudo a partir do século XVI na Europa a estreita interacção entre ambos os fenómenos. Não é possível entender a ascensão do estado moderno sem o apoio financeiro e de toda a articulação social emergente da burguesia nascentes cujo nascimento e consolidação teriam sido impossíveis sem o aparelho de coerção e o espaço de negócios oferecido pelas monarquias militaristas. E também é necessário levar em conta o mútuo apoio legitimador, cultural, social que permitiu a ambos crescer, transforma-se até chegar à instauração do capitalismo industrial e sua contrapartida estatal. A história da modernidade sugere-nos tratá-los como partes de um único sistema (heterogéneo) de poder.
No final, na fase descendente do capitalismo enviesado pela financiarização integral da economia, o Estado (em primeiro lugar os estados da grandes potências) também se financiariza, vai-se convertendo numa estrutura parasitária (uma componente das redes parasitárias), entra em decadência.
A convergência de numerosas "crises" mundiais pode indicar a existência de uma perturbação grave mas não necessariamente o arranque de um processo de decadência geral do sistema. A decadência surge como a última etapa de um longo super ciclo histórico, sua fase declinante, seu envelhecimento irreversível (sua senilidade). Extremando os reducionismo tão praticados pela "ciências sociais" poderíamos falar de "ciclos" parciais: energético, alimentar, financeiro, produtivo, estatal e outros, e assim descrever em cada caso trajectórias que têm início no Ocidente entre fins do século XVIII e princípios do século XIX com raízes anteriores e envolvendo espaços geográficos crescentes até assumir finalmente uma dimensão planetária para a seguir declinar cada um deles. A coincidência histórica de todas essas declinações e detecção fácil de densas inter-relações entre todos esses "ciclos" sugere-nos a existência de um único super ciclo que os inclui a todos. Dito de outro modo, trata-se do ciclo da civilização burguesa que se exprime através de uma multiplicidade de aspectos parciais.
A partir de um enfoque multi-secular do capitalismo é possível avançar uma explicação da ascensão e derrota da onda anti-capitalista que abalou o século XX. A Revolução Russa inaugurou em 1917 uma longa sucessão de rupturas que ameaçaram erradicar o capitalismo como sistema universal. O arranque revolucionário apoiava-se numa crise profunda e prolongada do sistema que poderíamos localizar aproximadamente entre 1914 e 1945 e cujas sequelas estenderam-se para além desse período.
A referida crise foi interpretada pelos revolucionários russos como o começo do fim do sistema mas este, ainda que sofrendo sucessivas amputações "socialistas" (Europa do Leste, China, Cuba, Vietname...) e a proliferação de rebeldias e autonomizações nacionalistas na periferia pôde finalmente recompor-se e seus inimigos foram caindo um após o outro através de restaurações explícitas como no caso soviético ou sinuosas como no caso chinês. As elites ocidentais puderam então afirmar que o tão anunciado declínio do capitalismo e sua substituição socialista não foi mais que uma ilusão alimentada pela crise mas que esta ao ser superada a ilusão se foi esfumando. E alguns gurus, como o agora esquecido Francis Fukuyama, até proclamavam o fim da história e o pleno desenvolvimento de um milénio capitalista liberal.
Existe uma visão falsa (mas não totalmente falsa) da decadência ocidental frente à emergência do mundo novo a partir da Revolução Russa. Mesmo se entendida como "decadência hegemónica", essa visão pareceu ficar desmentida pela realidade com o submetimento chinês (1978) e o derrube soviético (1991). Contudo era sustentada desde 1958-73 quando começaram a declinar as taxas de crescimento do Produto Mundial Bruto e parcialmente confirmada desde 2008 porque o sistema degrada-se velozmente (condição necessária para a sua superação) ainda que seu coveiro não apareça ou apareça numa dispersão de pequenas doses historicamente insuficientes.
A contrapartida positiva da decadência poderia ser sintetizada como a combinação de resistências e ofensivas de todo tipo contra o sistema a operarem como um fenómeno de dimensão global e a actuarem em ordem dispersa, exprimindo uma grande diversidade de culturas, diferentes níveis de consciência e de formas de luta.
Desde os indignados europeus ou norte-americanos que (por agora) só pretendem depurar o capitalismo dos seus tumores financeiros e elitistas, até os combatentes afegãos a lutarem contra o invasor ocidental ou a insurgência colombiana animada pela perspectivas anti-capitalista passando um muito complexo leque de movimentos sociais, minorias e pequenos grupos críticos e rebeldes.
Oposições a governos abertamente reaccionários e a ocupações mas também às fachadas democráticas mais ou menos deterioradas que tentam dar governabilidade ao capitalismo. O que coloca a hipótese da convergência e radicalização desses processos e então a possibilidade de aprofundar o conceito de insurgência global pensado como realidade em formação alimentada pelo declínio da civilização burguesa. A alternativa insurgente a emergir como recusa e a apontar à negação radical do sistema e ao mesmo tempo a abrir o espaço das utopias pós capitalistas.
O sujeito central da insurgência é a humanidade à qual a dinâmica da marginalização e da super-exploração (a dinâmica da decadência) empurra à rebelião como alternativa à degradação extrema. Trata-se de milhares de milhões de habitantes dos espaços rurais e urbanos. Este proletariado é muito mais extenso e variado do que a massa de operários industriais (inclui suas franjas periféricas e empobrecidas), não é o novo portador da tocha do progresso construída pela modernidade e sim seu negador potencial absoluto o qual, na medida em que vá destruindo as posições inimigas (suas estruturas de dominação), estará construindo uma nova cultura libertária.
Contudo, a irrupção universal desse sujeita demora, um gigantesco muro de ilusões bloqueia sua rebelião. É que a auto-destruição do sistema global mal está no seu início, sua hegemonia civilizacional ainda é muito forte, é quase impossível prognosticar, estabelecer teoricamente o percurso temporal, o calendário da sua desarticulação. É possível sim estabelecer teoricamente a trajectória descendente, ainda que sem etiquetá-la com datas.
Aqui surge o pós capitalismo como necessidade e possibilidade histórica concreta, como utopia radical lança suas raízes nos passado revolucionário dos séculos XIX e XX e muito mais além, na culturas comunitárias pré capitalistas da Ásia, África, América Latina e da Europa anterior à modernidade. Não se trata de uma etapa inevitável (uma espécie de "resultado inexorável" do declínio do sistema decidido por alguma "lei da história") e sim do resultado possível, viável, do desenvolvimento da vontade das maiorias oprimidas.
Na génese do sistema já existia o seu inimigo absoluto, negando, recusando sua expansão opressora. Na Europa, em torno do século XVI, emergiam os desdobramentos coloniais, a indústria de guerra sob moldes pós artesanais, as primeiras formas estatais modernas, os capitalistas comerciais e financeiros associados às aventuras militares das monarquias. E a super-exploração dos camponeses, a destruição das suas culturas, dos seus sistemas comunitários gerando rebeliões como a encabeçada pelo comunista cristão Tomas Müntzer no coração da Europa sob a palavra-de-ordem: "Omnia sunt communia" (Todo es de todos, todas las cosas nos son comunes).
O amanhecer da modernidade burguesa foi também o da sua negação absoluta. Ambos os lados traziam novas culturas mas ao mesmo tempo herdavam velhas culturas de opressão e emancipação.
A aliança de banqueiros, latifundiários e príncipes que derrotou os camponeses na batalha de Frankenhausen (Maio de 1525) e assassinou Müntzer unia seus novos apetites burgueses aos velhos privilégios feudais (convertidos em base de acumulação das novas formas de poder) enquanto os camponeses rebeldes reinterpretavam os evangelhos de maneira comunista e assumiam a herança da liberdade comunitária do passado, incluídas valiosas tradições pré-cristãs. A construção de alternativas inovadoras (de opressão e de emancipação) lançava suas raízes no passado.
Revendo a seguir o século XIX europeu e mais adiante a crise ocidental entre 1914 e 1945 e suas consequências vemos como reiteradas vezes o demónio burguês derrota o seu inimigo mortal, que renasce mais adiante para novamente apresentar batalha. Desde as insurgências operárias europeias até chegar à derrota da Comuna de Paris na era do capitalismo juvenil que já assumia uma dimensão imperialista planetária até chegar às revoluções comunistas russa e chinesa concluindo com a degeneração burocrática e a implosão da primeira e a mutação capitalista selvagem da segunda.
Na sua prolongada história a civilização burguesa passou pela sua infância europeia até a sua maturidade no século XX e finalmente a sua velhice e degradação senil desde fins do século XX até os nossos dias.
Na era da decadência do capitalismo vai assomando novamente a figura do seu inimigo. Trata-se de um novo fantasma herdeiro e ao mesmo tempo superador dos anteriores. Um olhar pessimista nos diria que será novamente derrotado. Se isso ocorrer esta civilização planetária ir-se-á submergindo em níveis de barbárie nunca antes vistos uma vez que a sua capacidade (auto)destrutiva supera qualquer outra decadência civilizacional. Agora não está em jogo a sobrevivência de alguns milhões de seres humanos e sim de mais de sete mil milhões.
Mas esse pessimismo apoia-se na história da modernidade pensada como uma infinita repetição de cenários onde muda a dimensão, a complexidade tecnológica, os modelos de consumo, etc mas fica intacta a dinâmica senhor-escravo, o primeiro controlando os instrumentos que lhe permitem renovar sua dominação e o segundo embarcado em batalhas perdidas de antemão. Dessa maneira é ocultado o facto de que a modernidade burguesa entrou em decadência o que abre a possibilidade da ruptura, do colapso da referida dinâmica perversa, abrindo o horizonte à vitória dos oprimidos. Isso não foi possível nas etapas da adolescência, juventude ou maturidade do sistema, mas é possível agora.
É o declínio do Ocidente (entendido como civilização burguesa universal) o que abre o espaço para o novo fantasma anti-capitalista que para se impor precisa irromper sob a forma de um vasto, plural, processo de des-ocidentalização, de crítica radical à modernidade imperialista, seus modelos de consumo e produção, de organização institucional, etc. Trata-se então da abolição do sistema no sentido hegeliano do conceito: negar, destruir, anular as bases da civilização declinante e ao mesmo tempo recuperar positivamente em outro contexto cultura tudo aquilo que possa ser utilizável.
Voltando a Hegel, para superá-lo é necessário afirmar que a marcha da liberdade que ele supunha avançar desde o "Oriente" (entendido como a periferia do mundo ocidental-moderno) para realizar-se plenamente no Ocidente, na realidade avança a partir do subsolo do mundo e pode chegar a dar um salto gigantesco esmagando, ultrapassando os baluartes da opressão ocidental, irrompendo como uma onda universal de povos insurgentes.
O primeiro fantasma foi europeu de corpo e alma e travou sua última batalha em 1871 na Comuna de Paris. O segundo fantasma assumiu uma envergadura planetária, levantou sua bandeira vermelha na Rússia e na China alentando um amplo espectro de rebeliões periféricas. Tinha um corpo universal mas a sua cabeça estava impregnada de ilusões progressistas ocidentais (o tecnologismo, o aparelhismo, o estatismo, o consumismo). Sua data ou período de falecimento pode ser fixada entre 1978 quando a China entra na via capitalista e 1991 (derrube da URSS).
O que o século XXI necessita é o desenvolvimento de um terceiro fantasma revolucionário, completamente des-ocidentalizado, ou seja, negador absoluto da modernidade burguesa e por conseguinte universal de corpo e alma, anti-capitalista radical, construindo a nova cultura pós capitalista a partir da confrontação intransigente com o sistema. Herdando os antigos combates, levantando a bandeira multicolor da rebeldia de todos os povos escravizados do planeta, das suas identidades esmagadas, submergidas, convertidas graças aos seus combates e contra-culturas opostas ao capitalismo.
Em suma, a emergência, a avalanche plural de povos submetidos, da humanidade verdadeira, libertada (em processo de emancipação) da pré história, da história inferior do homem inimigo do seu entorno ambiental, do espaço que lhe permite viver e, em consequência, do homem inimigo de si mesmo.
Não se trata de uma utopia universal única a apontar a uma humanidade homogénea e sim de uma ampla variedade de utopias comunitárias ancoradas em identidades populares inter-relacionadas, conformando um grande espaço plural marcado pela abolição das classes sociais e do estado.
Notas de rodapé:
(1) Blanchard, do FMI, diz que a crise durará uma década, http://www.que.es/ultimas-noticias/internacionales/201210031112-blanchard-dice-crisis-durara-decada-reut.html (retornar ao texto)
(2) Natixis - Banque de financement & d'investissement, La crise de la zone euro peut durer 20 ans [ http://cib.natixis.com/flushdoc.aspx?id=65421 ], Flash Économie – Recherche Économique, 8 Août 2012 – N°. 534. (retornar ao texto)
(3) Ansuya Harjan, "Roubini: My 'Perfect Storm' Scenario Is Unfolding Now", CNBC 9 Jul 2012, http://www.cnbc.com/id/48116835 y Nouriel Roubini, "A Global Perfect Storm", Proyect Syndicate, 15 June 2012, http://www.project-syndicate.org/print/a-global-perfect-storm . (retornar ao texto)
(4) "Banco de Basilea", Bank for International Settlements, Monetary and Economic Department, OTC derivatives market activity. ( www.bis.org ). (retornar ao texto)
(5) Ugo Bardi and Marco Pagani. "Peak Minerals", The Oil Drum:Europe, October 15, 2007, http://europe.theoildrum.com/node/3086 (retornar ao texto)
(6) Patrick Déry and Bart Anderson, "Peak Phosphorus", The Oil Drum:Europe , August 17, 2007, http://www.theoildrum.com/node/2882 (retornar ao texto)
(7) Karl Polanyi, "La gran transformación. Los orígenes económicos y políticos de nuestro tiempo", Fondo de Cultura Económica, Mexico DF, 2011. (retornar ao texto)
(8) Roger Dangeville, "Marx-Engels, La Crise", Union Générale D`Editions-10/18, Paris 1978. (retornar ao texto)
(9) (Marx-Engels, "La ideología alemana", 1845-46) en Marx & Engels, Obras Escogidas, Editorial Progreso, Moscú, 1974. (retornar ao texto)