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(Diwaldo Miranda, médico e militante comunista, faleceu em novembro de 1944. Oito dias depois da sua morte o Partido, apesar da ilegalidade, prestou uma homenagem à sua memória, no seu túmulo. Diwaldo dera o melhor da sua inteligência e da sua dedicação ao Partido. Vieram dos subterrâneos, para saudá-lo, homens que não apareciam em parte alguma, como o velho Lima. Diwaldo era um ser querido por nós todos, bom e grande companheiro. Coube-me falar-lhe em nome dos companheiros. Quero colocar nesse folheto sobre o Partido as palavras que disse então, entre lágrimas, e que jamais foram publicadas.)
Não é tempo de rosas, amigo, mas fomos buscar todas as rosas vermelhas da Bahia e te trouxemos essa estrela nas mãos tristes. Conversemos nesta manhã de domingo como fazíamos antes, não vamos perder o hábito bom de todos os dias. Porque a tua memória, companheiro, esta continua conosco, é lição, exemplo e incentivo.
Nosso tempo não é de flores, não é mesmo um tempo de claras alegrias primaveris. Nosso tempo é de balas, cadáveres sangrando, cidades sitiadas, canhões e bombas. Esse é um tempo de morte para que sobre o estrume dos cadáveres cresça mais bela e feliz a vida. Amanhã serão as flores novamente, e será o pão de todos e a alegria de todos, a doce alegria que trazias na face serena.
Teu tempo era um tempo curto de doente. Mas, ah!, não eras feito do barro frágil da gente que fica apenas olhando o mundo andar. Eras feito daquele barro dos que constroem com seu sangue, eras daqueles que vivem para que todos sejam melhores e para que seja breve a espera das flores e da primavera. E fazias longo o teu tempo de doente, longo para os trabalhos da pátria antifascista, para as tarefas de cidadão brasileiro em guerra contra o nazismo. Não foste um doente, companheiro, foste um soldado.
Na porta noturna deste cemitério, quando já havias partido com a tarde, como fazias diariamente, alguém nos disse:
— Hoje mesmo ele ia fundar em São Gonçalo um comitê de ajuda aos soldados expedicionários brasileiros.
Na cidade de doentes eras um soldado. Na tua roupa de civil e médico, com tua face serena onde não permitiste jamais que se revelasse a angústia da doença, com teu peito comido, abafando a febre, a saudade e a tristeza, tu, que esperavas a morte, trabalhavas pela vida, pela vida de todos, e teu olhar, que era bom e triste, enxergava o futuro como uma primavera.
Não é tempo de rosas, amigo, esse nosso tempo de matar e morrer. E tu que eras amigo das flores, das crianças e dos pobres, dos livros, dos versos e dos rios, tu não cultivaste rosas quando a doença quis teu tempo necessário ao mundo.
Eras como um soldado e não deste baixa. No dia mesmo em que partiste estavas no teu posto e morreste como a sentinela ferida à traição. Nós te trazemos uma estrela vermelha nas mãos tristes, são flores da madrugada que surge. Ah! companheiro, nós te trazemos vitórias, pois essa é a estrela vermelha dos guerrilheiros, dos soldados soviéticos, dos expedicionários, da liberdade. Nessa manhã de domingo nós te dizemos as últimas notícias: a liberdade triunfa em todas as frentes. Segue descansado. Eles, os assassinos, as feras, os inimigos das flores e dos bons, não vencerão. As flores nascerão de novo e o teu filho e os filhos de todos os homens saberão amanhã o gosto da primavera.
Não estamos aqui para te dizer adeus. Adeus, porque, se venceste o tempo? Não eras apenas um homem em meio a um conflito. Eras um lutador ferido que não se entregava. Um soldado antifascista não morre porque sua memória é o exemplo para amanhã, será o canto das crianças no mundo melhor, será a nova poesia dos novos poetas que falarão da felicidade e dos que a construíram. Não te dizemos adeus. Tua memória viverá conosco nas ladeiras da Bahia, nas tardes de comentário, nos meetings, nas conferências, nos livros, em tudo que amavas e que amamos. Estarás conosco no dia da vitória e pensaremos em ti na hora em que saudarmos a liberdade sobre o mundo. Por ti, companheiro, levantaremos nosso primeiro brinde.
Eras bom e digno, eras decente e limpo. Existem palavras que parecem feitas para determinados homens, a eles se adaptam como se com eles houvessem surgido e então parecem pronunciadas pela primeira vez. Nesta clara manhã, amigo, eu penso em todos e em ti, nos mortos nas trincheiras, nos pobres nos casebres, em Prestes prisioneiro como uma estrela, como esta estrela vermelha, no viajante que não sabe que partiste, na mãe que chora o filho morto na luta, na esposa que espera o soldado antifascista, na criança que espera o futuro.
E vejo que uma só palavra sai de todas as bocas em tua homenagem nesta hora de despedida: companheiro! Eis que eu também a digo e todos a repetem: companheiro, até logo, companheiro, companheiro...
Inclusão | 08/04/2014 |